Dvorák

Variações sinfônicas

E seguimos todos variando aqui na Ilha Quadrada :) Hoje é dia do segundo capítulo de nossa série “Vareia!”, que está apresentando um panorama rápido dos conjuntos de variações orquestrais, começando pelo começo: as Variações sobre um tema de Haydn, de Brahms. Seguimos pertinho, com um autor muito próximo: Dvorák.

A obra de Brahms é de 1873, foi estreada no mesmo ano e criou o imaginário das variações orquestrais. Em 1877, um Dvorák ainda meio desconhecido se aventurou no modelo brahmsiano. Pegou o tema de uma canção para coro masculino a capella que havia acabado de escrever, “Eu sou um rabequista”, e compôs 27 variações e uma fuga sobre ele. Pronto: nasciam as formidáveis Variações sinfônicas. \o/

O quanto as Variações de Dvorák devem às Variações de Brahms? Um bocado, mas creio que menos do que imaginamos. Claro que a linguagem dvorakiana nunca se afasta muito de Brahms, e é fácil classificar alguns trechos – como o que ouvimos por volta dos 13 minutos do vídeo abaixo – como próximos às Variações Haydn. Mas o ponto crucial é que o estilo de desenvolvimento temático de Dvorák é muito diferente.

Ao contrário do conjunto de Brahms, as Variações sinfônicas começam e permanecem muito próximo do tema original por bastante tempo. Somente na segunda metade da obra é que o motivo original começa a ficar menos visível – mesmo assim, ainda sempre identificável. Brahms vai muito mais a fundo, extrai muito mais do tema que está trabalhando, desde o início.

Após 27 variações, a obra termina com uma fuga pra lá de interessante e um epílogo vibrante, com alguns toques folclóricos e todo o colorido orquestral que esperamos de Dvorák. Não à toa a peça fez tanto sucesso quando o regente Hans Richter a apresentou Europa afora, dez anos depois de sua composição.

Como sempre em Dvorák, são de babar a beleza incrível das melodias e a rica inventividade dos acompanhamentos. É uma delícia, com um monte de momentos de puro deleite dvorakiano. Tudo que esse camarada escreveu gera uma satisfação quase física, quase tátil – não me canso de ouvir sua música!

Então, dê uma variada em seu repertório e delicie-se com as Variações sinfônicas de Dvorák. Se gostar, curta. Se não gostar… ah, você vai gostar com certeza! ;-)

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Mozart

Sinfonia concertante para violino, viola e orquestra

Homem é homem, menino é menino, sinfonia é sinfonia, concerto é concerto… e sinfonia concertante é o quê? Bom, aí tem debate pra mais de metro.

Sinfonia, nem precisa dizer, é uma espécie de “grande sonata para orquestra”, a princípio sem solistas. Mas isso não é inteiramente verdade. Aos poucos os compositores foram experimentando: Beethoven mesmo introduziu solistas VOCAIS em sua Nona (fora o coro), Niels Gade enfiou uma enorme parte para piano em sua Quinta, Berlioz compôs uma sinfonia para viola e orquestra e assim por diante (d’Indy, Saint-Saëns, Mahler etc etc).

Concertos, peças para solista e orquestra, têm caráter mais leve: em geral são menos voltados para o desenvolvimento temático e mais focados na exploração técnica e expressiva dos instrumentos solistas. São mais intimistas, líricos, e menos épicos. (Mesmo em obras monumentais como os concertos de Beethoven ou Brahms.) Creio que essa diferença de objetivos é o que realmente divide sinfonias de concertos, muito mais que a presença ou não de solistas.

Legal, chegamos a algum lugar :) Mas e a sinfonia concertante? Na minha opinião, é só um rótulo, criado no século 18 para designar todo concerto com mais de um solista. É um concerto com um nome diferente, e pronto. Tanto que, no romantismo, o termo desapareceu: pensemos no Concerto tríplice de Beethoven, no Concerto duplo de Brahms etc. No final das contas, o título de sinfonia concertante se eternizou por conta de duas obras somente: a Sinfonia concertante para violino, violoncelo, oboé e fagote de Haydn, e esta incrível Sinfonia concertante para violino e viola de Mozart, o assunto de hoje.

Composta em 1779, a Sinfonia concertante de Mozart poderia ser chamada, sem medo, de “Concerto para violino e viola”. Ela começa com a costumeira introdução orquestral, que carrega os temas principais a serem desenvolvidos em seguida pelos dois solistas. O primeiro movimento é a parte principal da obra, ocupando mais da metade de sua duração, e concentrando a maior parte do maravilhoso trabalho temático. Mas o movimento lento, comparativamente menor, não fica atrás em beleza. É, aliás, o ponto culminante emocional da obra – pô, estamos falando de Mozart! É maravilhosamente intenso, quase patético, lindo de doer.

E… é isso. Com Mozart é assim: a música é muita, as palavras, poucas. Ouçam, OUÇAM! :)

[A gravação abaixo é bem curiosa: os solistas são os fabulosos Norbert Brainin e Peter Schidlof, do Quarteto Amadeus, temporariamente fora de seu ambiente natural, a música de câmara. Nesse caso, aturar o som distorcido e cheio de ruído da velha gravação VHS vale a pena!]

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Schumann

“Kreisleriana”

Robert Schumann, o grande compositor romântico alemão, passou a juventude dividido entre a literatura e a música, até que se decidiu pelo piano. Mas sempre tentou unir suas duas paixões.

Foi no piano que Schumann escreveu sua melhor música. Profundamente ligadas ao romantismo literário e às aspirações de sua época, são para o piano obras-primas como “Carnaval”, as Peças de fantasia, os Estudos sinfônicos, a Fantasia em dó maior e aquela que eu considero a maior criação de Schumann: a “Kreisleriana”, um conjunto de oito peças características.

E é justamente a “Kreisleriana” que ganha hoje o SELO DE EXCELÊNCIA DO GRANDE CARVALHO. Viva! \o/O nome vem de Johannes Kreisler, personagem do escritor alemão E.T.A. Hoffmann, talvez o romântico quintessencial. Kreisler é modelado por Hoffmann como um compositor antissocial, hipersensível, de comportamento imprevisível – praticamente o arquétipo do artista do século 19. (Brahms, quando jovem, se identificou tanto com o personagem xará que chegou a assinar suas primeiras obras como “Kreisler Junior”.)

Schumann mesmo, muito no estilo da época, tinha não-somente um pseudônimo, mas três: “Eusebius”, o Schumann sonhador; “Florestan”, o Schumann impetuoso; e “Mestre Raro”, uma espécie de super ego. Os três povoaram por muitos anos toda a produção schumanniana: escritos, artigos e principalmente sua música – “Carnaval” que o diga!

Nesta “Kreisleriana”, Schumann substitui o diálogo entre Eusebius e Florestan pelo comportamento cambiante de Kreisler. São oito peças semi-independentes, ao estilo de uma suíte, cada uma delas com partes internas bastante contrastantes. A obra começa animada, em “modo Florestan”, mas muito rapidamente torna-se reflexiva; é em “modo Eusebius” que a maior parte da obra se desenvolve.

A “Kreisleriana” é um poço de inovação: rítmica, melódica, harmônica. Os motivos, geralmente de desenho irregular, soam como se fossem música folclórica de outro planeta; de quando em quando surgem passagem mais “terrestres”, voluptuosas, líricas. O efeito é inigualável. Certamente pouquíssimos compositores foram tão originais quanto o Schumann das obras para piano.

Entre as alternâncias de humor, dezenas de momento ARREPIO. Penso particularmente no sexto movimento, dos trechos mais emocionantes de toda a literatura pianística. O final é saltitante mas profundamente enigmático, por vezes dramático. É bonito demais, é instigante demais, é moderno demais… e é de 1838!

ESCUTA AÍ! A gravação abaixo, eletrizante, é de Martha Argerich, a nossa querida Martita.

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Stravinsky

“Agon”

12/12/12, 12:12.

It’s twelve tone time! \o/

Certamente todos vocês já ouviram falar do sistema dodecafônico serial, ou “técnica dos doze tons”. Ele foi inventado pelo austríaco Arnold Schoenberg por volta de 1921 (o termo que o próprio Schoenberg usou foi “descoberto”) e trata-se de uma maneira de se evitar conscientemente a tonalidade.

Hmm. Muito técnico. Vou tentar explicar – a superficialidade e meu próprio desconhecimento podem matar a exatidão, perdoem-me. Mas vamos lá: tom é, grosso modo, uma nota ou acorde fundamental que domina uma peça ou trecho musical. Uma música em dó maior, por exemplo, é dominada por esse acorde – provavelmente começa com ele e termina nele, gera tensão quando se afasta dele e tende ao “conforto”, ao “repouso”, quando a ele retorna.

OK, ainda é bastante abstrato. Mas vale dizer que toda a música ocidental composta desde o barroco (i.e., século 17) até o início do século 20 é tonal. A música popular é tonal. Nossos ouvidos estão incrivelmente habituados com a tonalidade. É a nossa língua materna musical.

MAS… as experiências românticas com cromatismo – i.e., a constante mudança de tom – demonstraram o quanto alargar um pouquinho a noção de tonalidade poderia agregar à música em termos de cor e expressão. Era um mundo novo e fascinante. Depois de Wagner e Liszt, vieram Mahler, Strauss e os impressionistas franceses (Debussy e Ravel) para explodir de vez nossos ouvidos. Já não dava para voltar atrás.

Quando Schoenberg sistematizou esse “atonalismo científico”, ele só estava caminhando nessa evolução pessoal que havia começado num cromatismo exacerbado (“Noite transfigurada”) e caído num atonalismo livre, desordenado (“Pierrô lunar”). A técnica que ele bolou consistia em construir suas obras a partir de sequências de doze notas predeterminadas. Nenhuma nota poderia ser repetida antes das outras da série serem tocadas. Assim evita-se que um som domine a música.

O sistema schoenberguiano, que o próprio criador testou em obras de feitura “clássica” como concertos, quartetos de cordas e óperas, estabeleceu-se fortemente, em especial após a Segunda Guerra. Seu caráter científico, abstrato, caiu como uma luva para artistas que desejavam se desassociar de qualquer manifestação mais de massa, “totalitária”, que cheirasse fascismo ou socialismo.

E o público? Sinceramente… nunca se comoveu muito. Se os próprios compositores em geral não estavam muito preocupados com acessibilidade e comunicabilidade, porque os ouvintes deveriam se preocupar com o que eles escreviam? Mas, de qualquer maneira, o dodecafonismo serial foi uma força motriz da música pós-1950 e um milestone histórico bastante importante, que todos devemos conhecer.

E eu? Ah, eu não sou tão fã assim de música serial. O complexo estilo schoenberguiano, levado às raias do pontilhismo por autores como Webern, não fazem a minha cabeça. Mas tenho uma idiossincrasia: gosto muito, muito mesmo, do que Igor Stravinsky empreendeu nos moldes seriais (após a morte de Schoenberg). Vai entender! Acho mesmo que é música difícil mas repleta de “viço” e que tenta, sim, fazer uma conexão mais forte com o ouvinte.

Como exemplo de serialismo vigoroso e atraente, eis a minha obra favorita de Stravinsky nesse estilo: o balé “Agon”, de 1957, para doze bailarinos. DOZE, sacaram? ;-) Não há história, mas uma série de quadros abstratos, de clima variado. A orquestra é grande mas super transparente, com uso proeminente de instrumentos como bandolim, piano, harpa e percussão.

É uma delícia! Não consigo pensar em obra mais bacana para comemorarmos 12/12/12. OUÇAM! :)

[A gravação abaixo, absolutamente fenomenal, é de Robert Craft, secretário particular de Stravinsky por quase toda a sua vivência nos EUA, e provavelmente a maior autoridade viva no compositor.]

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Enescu

Deceto de sopros

Dúvida cruel: qual o limite da música de câmara? Onde começa a música orquestral?

Começo assim indagativo pois a obra de hoje desperta certa dúvida – é o Deceto para sopros do compositor romeno George Enescu, escrito em 1906. Deceto! A palavra é tão rara que tive que pesquisar para ver se existia (Enescu chama a obra, em francês, de “Dixtuor”). Parece que sim.Deceto é uma obra escrita para um grupo de dez instrumentistas. DEZ! É uma orquestra? Ou um conjunto, tipo um quinteto, mas duas vezes maior? Xi… Na dúvida, é música de câmara, OK? :)

Enescu foi um músico realmente prodigioso. Caso raríssimo de duplo virtuose, igualmente fantástico ao violino e ao piano. E era um excepcional regente. E um belíssimo compositor, criador de obras admiráveis. Não à toa tornou-se lenda em seu país, a Romênia. Até a cidade onde nasceu foi renomeada em sua honra: de Liveni para George Enescu. :-O

A obra mais conhecida de Enescu é, sem dúvida, a Rapsódia romena no. 1, de 1901. Mas ele também compôs três notáveis sinfonias, num estilo complexo, hipercromático, próximo de Mahler ou Suk. Mais a ópera “Édipo”, sonatas para piano, sonatas para violino, quartetos de cordas… o cara era FODA mesmo!

Eu particularmente adoro música para sopros. E acho esse Deceto de Enescu – para duas flautas, dois clarinetes, dois fagotes, duas trompas, oboé e corne inglês – uma peça maravilhosa, deliciosa do início ao fim, que deveria ser muito mais conhecida.

Que harmonias lindíssimas…! E a instrumentação é tão variada, tão sinfônica, que muitas vezes fico na dúvida: é mesmo música de câmara?

Ops, voltei ao início. :-P Esqueçam tudo isso e APERTEM LOGO O PLAY!

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Brahms

Variações sobre um tema de Haydn

Já comentei que variações são uma das minhas formas favoritas. Nada mais justo do que comentarmos bastante sobre elas, em CINCO episódios somente sobre esse assunto. Bem-vindos a “Vareia!”, a nova série da Ilha Quadrada! \o/

Apesar de ser um recurso de desenvolvimento musical muito antigo, variações como peças independentes de concerto são um fenômeno bastante recente, da segunda metade do século 19.

Ei? E as Variações Goldberg de Bach, ou as Diabelli de Beethoven, só para falar das mais famosas? OK, mas me refiro especialmente a obras orquestrais. Calma lá! Chopin compôs suas Variações sobre “La ci darem la mano” para piano e orquestra já em 1827. Concordo! Só que decidi, muito arbitrariamente, focar apenas em variações puramente sinfônicas. Lidem com isso ;-)

Daí temos que pular para 1873, o ano em que Johannes Brahms resolveu pegar um tema meio bobinho, falsamente atribuído a Haydn, e compor uma série de variações sobre ele. Escreveu para dois pianos, inicialmente, mas viu que era bom e partiu para orquestrá-las. O resultado está aí: as Variações sobre um tema de Haydn, o primeiro e mais célebre conjunto de variações orquestrais da história.

E QUE MÚSICA, meus amigos! O tema, dito “Coral de Santo Antônio” e de autoria desconhecida, é simplório, mas a música que Brahms cria a partir dela é de outro planeta. Muitas vezes até nos esquecemos do motivo original. Como Bach ou Beethoven, e diferentemente de quase todo mundo, Brahms vai até o coração oculto do tema e cria um mundo absolutamente novo em torno dele.

Após a introdução que mostra o motivo “de Haydn”, seguem-se 8 variações (cada vez mais distantes do tema) e um finale solene (que retorna a ele, em trecho de rico contraponto). A ordem geral das variações se assemelha mais ou menos à de uma sinfonia: rápido, lento, moderado e rápido.

A obra foi incrivelmente influente. Diversos compositores posteriores se sentiram estimulados por esse exemplo e compuseram conjuntos de variações sinfônicas de vida independente. Mas Brahms jamais retornou ao gênero que ele mesmo inventou. E a gente aqui, chupando dedo…

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Poulenc

“Concerto campestre”

Quando falamos de cravo, já imaginamos Bach, Scarlatti, Rameau, baixo-contínuo, orquestras pequenas, ornamentações barrocas. Difícil pensar no cravo como solista de um concerto moderno, composto em 1928, acompanhado por uma orquestra sinfônica completa (e bem grande!).

Pois é o caso de uma das obras mais interessantes de Francis Poulenc, o seu “Concerto campestre”. A obra foi escrita para a cravista polonesa Wanda Landowska, grandemente responsável pelo ressurgimento do instrumento no século 20, eclipsado pelo piano ao longo do século 19. Até mesmo obras antigas eram tocadas à época no piano (até hoje se faz isso, na verdade, mas com menor frequência). Landowska fez platéias e músicos sacarem o quão bacana podia ser o cravo e estimulou diversos compositores a criarem obras novas para ele.

Vale lembrar que o cravo que Landowska usava era um cravo grandão, estilo “de concerto”, criado pela Pleyel, fabricante de pianos. Ao contrário do cravo barroco, esse “cravão” francês tem um som mais opulento, de maior presença, que consegue ser ouvido melhor perante uma orquestra sinfônica – daí a opção ousada de Poulenc em instrumentar tão ricamente seu concerto.

A peça é dividida nos três movimentos costumeiros. O espírito geral é leve e gaiato, como o título “campestre” dá a entender. No entanto, o concerto começa com uma introdução lenta e solene – certamente Poulenc queria evocar aqui a música barroca. A pompa é logo substituída por uma série de episódios divertidos e ensolarados, em que a linguagem barroca dá lugar ao neoclassicismo exuberante tão típico dos “Six” franceses.

O movimento lento é uma “siciliana”, uma dança lenta típica do barroco, muito associada ao clima pastoral que o concerto quer passar. A última parte da obra começa com um solo mega rápido e virtuosístico do cravo, que é sucedido por passagens quase histriônicas da orquestra, em estilo de fanfarras. O clima pastelão é quebrado uma ou duas vezes por passagens mais meditativas, e o concerto mesmo é encerrado silenciosamente pelo solista.

É divertido demais, repleto de sons novos e transbordante de bom humor. OUÇA DJÁ! E um excelente fim-de-semana a todos, é claro! ;-)

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Vivaldi

Concerto para fagote, RV. 484

Já falamos de Vivaldi aqui? Não? UIA!

Antonio Vivaldi, esse napudão de Veneza, é um baita de um injustiçado. Autor de obras imensamente populares como os concertos “As quatro estações”, Vivaldi é comumente classificado como um autor menor (ou como um cara que compôs 490 vezes o mesmo concerto, como disse Stravinsky). É música acessível, que agrada imediatamente? Sem dúvida! É música cheia de truquezinhos e macetes estilísticos? Muitas vezes. Mas é também música da mais alta qualidade, incrivelmente inventiva e, principalmente, repleta de personalidade. Pá pum, direto ao assunto, com muito vigor – esse é Vivaldi.

Padre, empresário de ópera, professor. Vivaldi foi de tudo. Gosto particularmente de sua faceta como tutor de uma instituição beneficiente para moças órfãs ou abandonadas, a Ospedale della Pietà. Lá elas ganhavam abrigo e aprendiam música. Formavam uma orquestra, que Vivaldi tornou sensacional. Compôs muitos concertos para as suas meninas, entre elas verdadeiras virtuoses nos mais diferentes instrumentos. Por exemplo: 37 concertos para fagote. TRINTA E SETE! Para FAGOTE! :-o

O mais famoso desses 37 é este Concerto para fagote em mi menor, catalogado como RV. 484, provavelmente composto na década de 1730. O concerto se inicia com um tema memorável nas cordas, complementado por frases proto-minimalistas do fagote. Philip Glass avant la lettre! O segundo movimento é um andante elegíaco, solene, uma espécie de procissão lenta meio arcaizante, meio sentimental. O terceiro é furioso – começa incrível, a todo gás – e demonstra bem o lado “rústico” de Vivaldi (que, sei lá por quê, soa para mim como o mais “moderno”).

É bem legal. Ouça, ouça novamente. Ouça mais uma vez. É tão curtinho… sempre deixa aquela vontade de “quero mais”, não? ;-)

[A gravação abaixo é clássica: I Musici, o famoso grupo romano, veteraníssimo da música antiga. Vendeu discos como água. Os grupos especializados em instrumentos de época e “interpretação histórica” que vieram depois têm som muito diferente, é claro. Mas os registros do I Musici ainda são referências de musicalidade e elegância.]

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Brahms

Concerto para piano no. 2

Todo adolescente tem um herói. O meu foi Johannes Brahms, e para mim a sua proeza épica foi o Concerto para piano no. 2, de 1881.

Nada mais justo que ele ganhe o SELO DE EXCELÊNCIA DO GRANDE CARVALHO! \o/

Conheci Brahms no começo dos anos 90 e entre as obras à minha disposição, estava este Concerto no. 2. Achei todas meio complicadas, mas aos poucos fui me apaixonando pela Sinfonia no. 4, pelo Concerto para violino, pelas obras para piano… e nada de entender o Segundo Concerto. Fui tentando, fui tentando, diariamente. E, de repente, CLIC. Saquei a música. E, quando me dei conta, estava totalmente rendido.

Configurou-se aí um vício. Eu não conseguia ficar um dia sem ouvir o concerto. Criei um ritual diário, que perdurou por certo tempo: todas as noites, antes de dormir, já deitado, no escuro, ouvia a gravação de Sviatoslav Richter. Era definitivo. O Concerto no. 2 de Brahms não poderia ser outra coisa senão a minha obra musical favorita, minha obra de arte favorita, o maior feito desse herói barbudo e tomador de chope.

Brahms é assim mesmo. Por trás daquela cara de profeta bíblico e das formas perfeitas e sisudas de concertos, sinfonias e sonatas cuidadosamente estruturadas, um BAITA DE UM CORAÇÃO PEGANDO FOGO. Só que não é fácil encontrá-lo.

O Concerto no. 2 é uma obra revolucionária para os padrões brahmsianos. Ao contrário de suas irmãs, ele foge da roupagem tradicional: ao invés de três movimentos, tem quatro. Entre o allegro inicial e o andamento lento, um scherzo tempestuoso e complexo, de sabor meio cigano, com uma das seções centrais mais intensas do repertório.

Mas voltemos ao começo. O concerto se inicia com a trompa, que logo ganha a companhia do piano. E, surpresa, uma pequena cadência (escrita) para o solista, coroada pela exposição completa do tema inicial pela orquestra. Depois, uma festa de desenvolvimento temático e sons inquescíveis – é música de qualidade ABSURDA, caríssimos, daquelas que temos vontade de emoldurar e pendurar na parede.

No monumento lento – ops, movimento! ato falho! -, Brahms adiciona ao concerto um segundo solista temporário, o violoncelo, que é quem de fato recebe a função de carregar o (maravilhoso) tema, em estilo de cantilena. O piano não repete esse motivo principal. Só o desenvolve, o varia, cria encima dele. É bonito demais da conta, sô!

O finale é leve e divertido, um rondó-sonata também cheio de toques ciganos (ou “húngaros”, como se dizia à época). Brahms nunca esqueceu o que aprendeu em seus anos de adolescente, que passou excursionando com o violinista húngaro Eduard Reményi.

Eu também nunca me esqueci do que aprendi quando adolescente, época em que passei ouvindo esta música maravilhosa. Obrigado, Johannes. Eu não poderia ter tido um herói melhor.

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Schubert

Sonata para piano no. 21, D. 960

E hoje chegamos ao último capítulo de nossa série “1828: o último ano de Franz Schubert”. Vamos comentar a Sonata para piano em si bemol maior, D. 960, obra composta pouco depois do Quinteto que ouvimos na semana passada. Schubert morreria logo em seguida.

Ah, claro! Preparem os lenços. Essa sonata é das obras mais tristes de todos os tempos. É de uma beleza tão profunda, e tão profundamente triste, que chega até a perturbar: é válido sentir prazer estético ao ouvir música assim TÃO melancólica? Seria uma espécie de sadomasoquismo? É esquisito. Mas deixemos para lá: a peça é tão maravilhosa que perdoamos nosso próprio pecadilho.

Schubert compôs, em seus últimos meses, três sonatas para piano que valeriam toda uma carreira. A penúltima, D. 959, pertence ao meu panteão particular, aquele restrito aos favoritos favoritos. O que é aquele finale? PUTZ. Mas é mesmo a última sonata que tornou-se o símbolo da produção pianística de Schubert e até de seu estilo maduro como um todo. Inegavelmente ela É a sonata schubertiana.

A sonata D. 960 começa com vários ARREPIOS. Um tema inacreditável, uma espécie de marcha-canção lenta, já dá o tom de melancolia resignada de toda a obra. Quando o tema cessa, um trilo esquisito surge, sombrio. E o motivo inicial volta a tocar, do zero, como se nada fora. Cacete, é de gelar os ossos! Surge um segundo tema, mais rítmico, e toda uma exposição, imensa, que é repetida. Após, um desenvolvimento de SUSPENDER RESPIRAÇÕES. Vamos a tons distantes, temas diferentes aparecem, o motivo principal ressurge… acontece de tudo, em pouquíssimo tempo. Termina e tudo começa de novo, lentamente melancólico, apesar dessa tensão recém acontecida. Pois que o movimento termina justamente com aquele trilo sombrio. É devastador.

Prepare o coração para o Andante sostenuto que vem a seguir. Uma melodia meio quebrada, mantida por um baixo aparentemente imóvel, que te carrega para lugares de incríveis invenções harmônicas e desolação total. É lindo até não poder mais, quase uma apoteose da depressão. Mas… QUE MÚSICA, amigos!… nos permitimos tal desolação, pois a seção central surge com um tema mais rápido à maneira de um hino – ao estilo do finale da D. 959 – e traz ares mais otimistas. Não se envergonhe: aqui pode chorar. Eu avisei…

Meia hora se passou, já nos emocionamos à beça e ainda estamos na metade da sonata. Surgem agora um scherzo bem rápido e leve, tipicamente schubertiano, que limpa muitas das nuvens do movimento lento; e o finale vigoroso, com seu início peculiar, em suspense, de caráter bem beethoveniano. Mas não é Beethoven – é Schubert, e ele se permite alguns devaneios. O chão volta abruptamente no final: a sonata termina rápida e furiosamente.

Mas a mente do ouvinte – essa danada – ainda está lá na primeira metade da obra, sofrendo e se assombrando com tamanha beleza. Como culpá-la?

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