Mahler

“A trompa mágica do jovem”

por Adriano Brandão

Canções são peças de vida independente, na grande maioria das vezes. Podem ser até agrupadas, por tema ou por fonte poética, mas em geral os compositores não tentam fazer de suas coleções sequências com narrativas específicas. (As exceções mais famosas são “A viagem de inverno”, de Schubert, e “Amor e vida de uma mulher”, de Schumann.) Daí que a palavra “ciclo” comumente utilizada para designar coletâneas de canções é meio enganosa. Será que há um tique sinfônico que nos faz enxergar estruturas onde não há?

Um caso clássico é o da coleção “A trompa mágica do jovem”, composta por Gustav Mahler entre 1892 e 1901. Ela nunca foi projetada como um ciclo. O próprio compositor mexeu nas canções, tirando números e acrescentando outros, e até hoje regentes e cantores escolhem como querem fazer caso a caso.

O que une essas doze canções? A fonte poética: a coletânea de poemas folclóricos alemães “Des knaben wunderhorn” (“A trompa mágica do jovem”), reunidos por Armin e Brentano em três volumes publicados entre 1805 e 1808. “Trompa mágica” não é um instrumento musical de poderes extraordinários – na verdade, é uma “cornucópia”, aquele grande chifre de onde não param de sair alimentos e riquezas de todo tipo. O nome poderia ser liberalmente traduzido como “O tesouro da juventude” porque era esse mesmo o objetivo da coletânea – que cada criança alemã tivesse contato com uma ~infinidade~ de textos folclóricos.

Folclore alemão. Já dá pra sacar o espírito geral da “Trompa mágica” – guerra, fome, certa crueldade, amor meio tosco e misticismo idem. Mahler, para sua coletânea, escolheu doze dos poemas. Porém, após a primeira publicação, em 1899, acabou pegando duas delas emprestadas – uma foi para a Segunda Sinfonia (“Luz primordial”) e outra foi para a Terceira Sinfonia (“Três anjos cantam”). Mais tarde, em 1901, Mahler acrescentou dois números para a coletânea voltar a ter doze canções: “Revelge” (“Toque do clarim”) e “O tamborzinho”.

Em geral dá pra dividir as doze canções em dois tipos: as militares e as amorosas. Algumas fogem desse esquema – exemplo célebre é “A prédica de Santo Antônio de Pádua aos peixes”, cuja versão orquestral é o scherzo da Segunda Sinfonia -, mas essa dualidade resume bem o espírito da coleção. Mahler assume de bom grado uma visão francamente irônica e antirromântica do texto folclórico: ao contrário, é o grotesco e o bizarro que ganham destaque. A poesia popular, em Mahler, é menos a lembrança de um passado idealizado e mais a representação quase freudiana da psiquê universal. As uniões de antigo e moderno, de banal e sublime, de ingênuo e irônico são o encanto dessas canções.

Mahler não especificou as vozes de cada número – isso fica a cargo dos intérpretes. Em algumas canções o texto dá a entender um diálogo, então tornou-se comum transformá-las em duetos (com voz masculina e voz feminina). Funciona muito bem e é assim que é feito na maioria das gravações. As canções de cunho militar são cantadas obviamente por homens; as mais amorosas (ou que insinuam um eu-poético feminino) são cantadas por mulheres.

Como já comentamos, a ordem dos números também não é especificada por Mahler. Não dá pra enxergar nenhuma estrutura, na verdade. Vai do gosto do freguês. Em geral ordena-se as canções de maneira que as vozes se alternem, criando maior variedade.

A música de Mahler é tão boa, tão expressiva e original, que podemos curtir as canções sem dominar o alemão. Mas vale a pena procurar as letras e conhecer o contexto de cada número – a invenção mahleriana ganha cores realmente especiais. E é muito divertido! As investidas mal-sucedidas da moça no rapaz em “Esforço inútil”; o duelo musical entre o cuco e o rouxinol, arbitrado pelo burro (há relinchos!) em “Elogio do alto intelecto”; a diferença entre o heroísmo wagneriano do soldado e a delicadeza de sua namorada em “A canção noturna do sentinela”… tudo isso fica ainda mais saboroso quando entendemos o que se passa.

Já falei algumas vezes que Mahler é uma espécie de demiurgo, um criador de mundos. E a “Trompa mágica” é, talvez, o ingrediente principal desse universo mahleriano. Todas as suas sinfonias até a Oitava são dominadas, se não pelas canções em si (a Segunda, a Terceira, a Quarta), no mínimo pela atmosfera e temática “wunderhorniana”.

É engraçado: Mahler tinha como fonte inesgotável de inspiração uma obra cujo título é… “cornucópia”. Faz todo o sentido :)

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Post escrito por Adriano Brandão em 01/04/2014. Link permanente.