por Adriano Brandão
A história todo mundo conhece: Schubert resolveu compor uma sinfonia, terminou os dois primeiros movimentos mas desistiu após esboçar o terceiro. Só que o trabalho rejeitado, descoberto muitos anos depois, era simplesmente uma obra-prima, tão incrível que tornou-se a peça mais famosa de seu autor, mesmo inacabada.
Isso foi em 1822, três anos antes da última sinfonia que Schubert completou, a “Grande“, e seis anos antes de sua morte precoce. Os motivos da desistência até hoje são desconhecidos. Cada estudioso tem sua teoria, mas pra mim isso nem interessa muito. O que interessa é que a obra que restou, em dois movimentos pouco contrastantes, é perfeitamente coerente e original dessa exata maneira.
E bota original nisso. Logo de cara é possível perceber o quanto Schubert se distanciou de seus antecessores – o início sinistro nada tem a ver com Haydn ou Beethoven (que, aliás, nem tinha escrito ainda sua Nona!). O mundo desta Oitava é um mundo completamente novo, desolado e fantasmagórico, decididamente romântico.
O segundo movimento oferece pouco ou nenhum alívio, apesar de migrar para um tom maior. O metro segue ternário, os tempos são próximos, o layout formal é mais ou menos o mesmo, os temas têm contornos similares… na verdade, ao invés de “responder” ao movimento inicial, este Andante o continua, “explicando melhor” suas angústias.
O fato da sinfonia terminar sem solução torna a audição uma experiência única e poderosa. Difícil sair ileso dela. Honestamente, vendo como Schubert terminou algumas de suas obras posteriores, como o Quinteto de cordas ou a última sonata para piano, acho que as ausências de scherzo e finale – em clima provavelmente mais positivo – fizeram muitíssimo bem à sinfonia.
Aliás, de onde vem tamanha angústia? O que Schubert queria expressar com sinfonia tão sombria? Minha explicação favorita é a do regente austríaco Nikolaus Harnoncourt, que interpreta a obra à luz de um texto que Schubert escreveu mais ou menos na época da composição da sinfonia, chamado “Meu sonho”. É, como o título adianta, uma autobiografia em forma de descrição de sonho, cheia de referências à infância e aos pais – prato cheíssimo para Freud.
O ponto principal do pequeno conto (que pode ser lido integralmente aqui) está na dicotomia entre amor e dor, felicidade e tristeza: “quando eu queria cantar o amor, ele se tornava dor; e quando eu queria cantar a dor, ela se transformava em amor”. Seria essa a causa da instabilidade harmônica que é marca registrada do estilo schubertiano?
Harnoncourt acha que sim e, mais ainda, acredita que a “Inacabada” lida exatamente com os traumas descritas em “Meu sonho”: um pesadelo de culpas infantis, amor e medo. Abaixo, o registro que fez com a Filarmônica de Viena. Tente ouvi-lo – principalmente o segundo movimento – ao mesmo tempo em que lê “Meu sonho”. Impossível não sentir umas quatrocentas facadas no coração. Haja lágrima.
Dos mesmos diretores de Ilha Quadrada, eis o Concertmaster, um front-end que transforma o Spotify em um poderoso player de música clássica. GRÁTIS!Post escrito por Adriano Brandão em 24/08/2012. Link permanente.