por Adriano Brandão
Escrever sobre, digamos, sinfonias de Haydn é relativamente fácil. É mais ou menos assim: depois de um primeiro movimento FODA, vêm um movimento lento LINDO, um minueto DEMAIS e um finale DO GRANDE CARVALHO. Pronto, acabou, viva Haydn!
Mas sinfonias de Mahler são o inferno do comentarista. Ele se vê obrigado a pesquisar literatura, ler poesia, estudar filosofia, antropologia e religião, entender a biografia do compositor, sacar as idas e vindas na gestação da obra, assobiar, chupar cana e ainda correr o risco de ter escrito um monte de besteiras!
Correrei o risco. Porque a obra de hoje merece: trata-se da Sinfonia no. 2 de Mahler, dita “Ressurreição”, de 1894.
Mahler é um compositor muito especial. É um dos poucos que conseguiu criar um mundo próprio, com mitologia própria, para as suas obras habitarem. Ele não era um compositor, mas um demiurgo! Cada sinfonia, um país de um imenso continente chamado Mahler. É, é rico assim!
Creio que as duas sinfonias que exemplificam melhor isso são a Segunda e a Terceira. Mas, se a Sinfonia no. 3 permanece até hoje um gosto adquirido, a “Ressurreição” conquistou o grande público desde sua estreia e é, provavelmente, a obra de Mahler mais popular.
Fácil de perceber, pelo nome, que a temática da sinfonia é morte, redenção e renascimento. Para expressar isso, Mahler criou uma forma imensa em 5 movimentos, com dois blocos distintos. O primeiro bloco tem apenas um andamento, e é uma enorme e intensa marcha fúnebre. De arrepiar os cabelos! Grande pausa. O segundo bloco começa com um andamento moderado, em ritmo de valsa rústica – um quebra-clima, um deixa-disso, um pega-leve depois de um começo tão forte.
Legal mesmo é o movimento central, um scherzo de tons fantásticos. É a minha parte predileta da sinfonia. Mahler recorre aqui à autocitação: a base desse trecho é uma canção do ciclo “A trompa magica do jovem”, chamada “A prédica de Santo Antônio de Pádua aos peixes”, de 1893. A historinha é a seguinte: o santo resolve pregar aos bichos, que não estão nem aí. Cagam e nadam. o santo chega à igreja e ninguém está ali. Resolve então pregar aos peixes, que ouvem maravilhados. Mas em seguida voltam a fazer o que sempre fizeram – tipo, como os seres humanos ;-) (Valeu, Leonardo T. Oliveira!)
Interpretação possível (essa é a minha, traga a sua!): de que adiantam as idéias e os palavrórios humanos para a natureza (das coisas, das pessoas, de tudo)? Ela segue seu luxo, de vida e morte, de criação e destruição, de evolução, de maneira imparável e inclemente. E a música é INCRÍVEL. Você ri, você chora, você urra, você faz tudo, menos ficar indiferente.
Pausa. E uma voz de contralto começa algo bem distinto. É uma outra canção da “Trompa mágica”, desta vez a sublime “Luz primordial”, que expressa o desejo pela reparação eterna, extramaterial, pelos sofrimentos da vida terrestre (os peixes, os peixes!). Sem interrupção, começa o finale. Primeiro uma longa introdução orquestral, que recapitula alguns temas anteriores e cria todo o cenário para o impressionante final coral (com soprano solo), baseado no poema “A ressurreição”, de Friedrich Klopstock.
Não precisa nem falar: é um final grandioso, redentor, emocionante. Mahler aqui fez mais que uma sinfonia: sintetizou toda uma angústia existencial e uma filosofia ao redor dela. Em música. Não à toa que Mahler é o autor moderno que tem maior “séquito” hoje. Creio que até mais que Wagner. A mensagem wagneriana ficou meio desbotada com o tempo; a mahleriana segue atual e fascinante.
É DO GRANDE CARVALHO e merece um, dois, três, quatro SELOS DE EXCELÊNCIA. Ouça! E depois comente ;-)
Dos mesmos diretores de Ilha Quadrada, eis o Concertmaster, um front-end que transforma o Spotify em um poderoso player de música clássica. GRÁTIS!Post escrito por Adriano Brandão em 06/02/2013. Link permanente.