Dvorák

“A roca de ouro”

por Adriano Brandão

O ser humano é de uma crueldade absurda. Infelizmente não precisa, mas há uma prova tocante disso: se prestarmos atenção nas lendas e contos populares, de qualquer cultura, vamos nos deparar com uma infinidade de cenas dantescas, sádicas mesmo. As historinhas folclóricas, muitas vezes contadas para crianças, refletem a dureza de uma vida cuja permanente escassez gera permanente violência.

Falo isso por conta do “Ramalhete”, a fabulosa coletânea de poemas populares tchecos, publicada em 1853 e imensamente popular até hoje em seu país. São doze (depois treze) poemas e as histórias são em geral as mais terríveis. Quatro deles se transformaram em incríveis poemas sinfônicos nas mãos de Antonín Dvorák, entre 1895 e 1897. Já comentamos aqui sobre o primeiro deles, “O espírito das águas“. Hoje é dia de falar do terceiro, “A roca de ouro”.

O plot é tenebroso. Basicamente: em uma casa muito, muito pobre, no meio do mato, moravam uma mãe e suas duas filhas gêmeas. Vamos chamá-las de Ruth e Raquel, porque é exatamente isso: são fisicamente idênticas mas uma delas é muito boazinha e a outra, um demônio interesseiro. Certo dia o jovem rei, que caçava pela floresta, esbarra em Ruth e se apaixona por ela. A mãe e a irmã não gostam disso – querem que o rei se case com Raquel, não com Ruth. Pois então, as duas não só PLANEJAM O SEQUESTRO de Ruth como ARRANCAM SEUS BRAÇOS, SUAS PERNAS E SEUS OLHOS, que são guardados em pequenos embrulhos (irc!). Ruth é abandonada na floresta e Raquel se casa com o rei, que não sabia que ela era a gêmea errada.

(Fico pensando se esse lance de gêmeas boa/má disputando o amor de um homem rico é um clichê ou se Ivani Ribeiro teve contato com a lenda tcheca. Ah, provavelmente é clichê. Imagine uma cena de ESQUARTEJAMENTO na novela das seis… não, melhor não.)

Como na novela, o plano deu certo. Mas enquanto isso, na floresta, um velho ermitão, com poderes mágicos, encontra Ruth, milagrosamente viva. Ele cuida dela, que acaba contando toda a história, e resolve “remontá-la” (Robocop, alguém?). A estratégia escolhida pelo ermitão é trocar, com a nova rainha Raquel, as partes faltantes do corpo de Ruth por partes de um tear de ouro: ofereceu a roda de fiar em troca das pernas, a roca em troca dos braços, e o fuso em troca dos olhos (é o Mercado Livre mais grotesco que já tive notícia). Funcionou – o ermitão agora tinha o corpo inteiro de Ruth, e Raquel um lindo tear de ouro (em substituição ao anterior, que havia sumido).

Quando o rei voltou de uma batalha, Raquel foi logo mostrar pra o marido sua nova aquisição. Pois que, assim que foi usada, a roca começou a cantar (!) – e contou toda a história tenebrosa para o rei. A cada girada na roda, mais detalhes do crime cruel o treco contava. O tear dedo-duro enfim contou a localização de Ruth, na floresta. O rei, claro, foi direto ao seu encontro, e o casamento certo é enfim realizado. E Raquel e sua mãe? Bom, nelas o próprio Diabo deu um jeito. Sério.

História rocambolesca e sanguinolenta contada, vamos à música. Dvorák, em 1896, estava no auge de seus poderes criativos, e seu estilo estava cada vez mais moderno e pessoal. Acho mesmo que os quatro poemas sinfônicos sobre o “Ramalhete” – mais um quinto poema sinfônico independente, “Canto heróico” – estão entre as obras mais mais avançadas do compositor. Trechos de “A pomba do bosque”, a última obra do “Ramalhete”, parecem até Janácek. A junção do grotesco com o heroico, do antigo com o moderno aproximam muito Dvorák de Mahler – mas Dvorák é menos irônico.

Estão entre as obras mais poderosas e originais do século 19. Gosto especialmente de “A roca de ouro”. É uma peça grandona, de quase meia hora, com uma orquestração absurdamente fabulosa, repleta de temas LINDOS DE URRAR – o motivo que representa o amor verdadeiro entre Ruth e o rei é pra lá de maravilhoso – e MUITA AÇÃO – caçadas, festas populares, reviravoltas e clímaces de todo tipo.

De verdade – “A roca de ouro” é uma das obras mais cativantes do repertório, e nem é tão célebre assim. Corrija essa falha agora: TEM QUE OUVIR!

[Em tempo: Ruth na verdade se chamava Dobrunka; Raquel, Zloboha. Você pode ler uma versão em prosa, em inglês, da história aqui.]

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Post escrito por Adriano Brandão em 11/04/2014. Link permanente.