Haydn

Sinfonia no. 104, “Londres”

por Adriano Brandão

Como um compositor ganha a vida? A resposta óbvia seria: compondo, ué. Mas, alto lá, não é tão simples assim. Vamos pensar um pouquinho no aspecto financeiro da profissão. Uma obra de fôlego – uma sinfonia, digamos – pode levar meses ou mesmo anos para ser composta. Depois de pronta, ela é enviada a um editor, que publicará a peça, cujas partituras são destinadas aos músicos que apresentarão a obra ao público. Invertendo a lógica: público paga para o músico que paga para o editor que paga para o compositor.

Com o advento da gravação, o ciclo acima pode ser estendido: público paga para a loja que paga para a gravadora que paga para o músico que paga para o editor que paga para o compositor. Há sempre, portanto, no mínimo duas camadas entre o compositor e o consumidor final, entre o criador e o dinheiro. Enquanto esse ciclo não é fechado, como o autor vive para criar sua demorada arte? A conclusão é que riqueza e criação musical não costumam andar juntas.

Por isso tudo compositores na maioria das vezes não dependem somente de compor. A maior parte também é músico intérprete, encurtando aí o ciclo. Muitos também dão aulas, abrindo fontes de renda complementares. Outros tornam-se empresários, criando orquestras, festivais ou companhias de ópera. Vários outros têm atividades não-musicais. (A história traz exemplos curiosos: Ives vendia seguros, Berwald tinha uma vidraçaria, Borodin era químico, Harris foi caminhoneiro.) Ocioso mesmo, que eu me lembre, só Gesualdo, que era príncipe.

Até o final do século 18 o principal jeito de um compositor poder viver, ter um teto e se alimentar, era se submeter a algum tipo de patrão. Muitas vezes foi alguma igreja, muitas vezes foi a nobreza. Bach, por exemplo, passou pelas duas experiências: como regente do príncipe de Köthen e como professor e diretor musical da igreja de São Tomás em Leipzig. Vivaldi era padre e equilibrou sua atividade no orfanato com a vida maluca de empresário de ópera. Nosso amigo Haydn foi provavelmente o mais conservador de todos: trabalhou de 1761 até o dia de sua morte, em 1809, para a família Esterházy, de condes e príncipes húngaros.

Seu grau de dependência dos patrões foi diminuindo aos poucos, graças à sua lendária habilidade com os negócios. Haydn soube ampliar seus direitos. Até 1779 era um empregado comum, e tudo o que criava era de propriedade dos Esterházy. Depois disso começou a poder enviar suas obras para editores e atender encomendas. Em pouco tempo, tornou-se o compositor mais procurado de toda a Europa, mesmo sem sair do castelo dos patrões. Enquanto a reputação de Haydn crescia, a riqueza dos Esterházy diminuía… e em 1790 pôde liberar-se quase completamente da rotina do emprego em troca de uma redução considerável de seu salário.

Graças a seu novo status, Haydn foi procurado pelo famoso empresário Johann Peter Salomon. A proposta era tentadora: passar um tempo na Inglaterra e estrear seis sinfonias novas em folha, em troca de um caminhão repleto de barras de ouro que valem mais que dinheiro (ou algo assim). Isso aconteceu entre 1791 e 1792, foi um super sucesso, e Salomon quis repetir a dose dois anos depois. Foi prontamente atendido: o mundo ganhou então seis novas sinfonias e Haydn levou pra casa mais um barril cheio de notas de cem dólares (ou algo assim). “Essas coisas só acontecem em Londres”, teria dito o compositor, enquanto contava os zeros de sua conta bancária (ou algo assim).

Parabéns a ambos, Salomon e Haydn – as doze sinfonias que Haydn escreveu para as duas turnês londrinas estão entre as mais espetaculares já criadas! Duas ou três obras de tal nível já seria espantoso… mas DOZE já beira o milagoroso! Foi um feito tão incrível que ele encerrou a produção sinfônica haydniana. Também, pudera, 104 sinfonias! Tenho especial adoração pelas quatro últimas. Já comentei sobre a 100 e sobre a 103, a minha predileta. Porém a mais famosa é mesmo esta 104, que ganhou um apelido que resume toda a história: “Londres”.

Qualquer outra coisa que eu disser será chover no molhado. A sinfonia apresenta a clássica estrutura haydniana: introdução lenta e solene, allegro inicial, um andante meio em forma variada, minueto e um finale animado. Acho que a principal marca distintiva da sinfonia é mesmo o finale com dupla inspiração popular – o tema, que dizem ser retirado do folclore croata, e o acompanhamento inicial, um simples e único acorde sustentado por 14 compassos. É tão direto, tão inventivo, tão delicioso, tão DO GRANDE CARVALHO, que só posso pedir uma coisa: OUÇAM!

Dos mesmos diretores de Ilha Quadrada, eis o Concertmaster, um front-end que transforma o Spotify em um poderoso player de música clássica. GRÁTIS!

Post escrito por Adriano Brandão em 16/04/2014. Link permanente.