por Adriano Brandão
E chegamos ao último capítulo de nossa saga romântica! Começamos lá com Field e Chopin, passamos por Schumann e Grieg e concluímos com Liszt e seu parzinho inseparável: Camille Saint-Saëns!
Saint-Saëns foi, ao lado de Franck, figura de proa da música francesa da segunda metade do século 19. Vale lembrar que a cena musical da França dessa época era amplamente dominada pela ópera. Música instrumental ficava relegada a um longínquo segundo plano. Essas polaridades só se inverteram nas últimas décadas dos 1800, e Saint-Saëns tem muito a ver com isso – apesar de não ter escapado de tentar emplacar uma ópera bem ao gosto da freguesia, com cenários exóticos e um monte de balés, bacanais etc. OK, deixa pra lá ;-)
Apesar de ser visto costumeiramente como um conservador, Saint-Saëns tinha grande atração pela obra de Liszt e suas inovações formais. E prova maior dessa filiação é este soberbo Concerto para piano no. 4, de 1875. O quanto ele bebeu na fonte do Concerto no. 1 de Liszt é até difícil medir…!
Vamos lá: quatro movimentos quase sem interrupção (dessa vez a breve pausa acontece entre o movimento lento e o scherzo, bem no meio da obra); um tema domina todo o concerto, que é praticamente transformado numa grande variação; a ênfase, portanto, está no desenvolvimento e nos processos de transformação temática. É uma obra muito mais cerebrina que virtuosística, de engenharia realmente notável.
A ordem dos movimentos é similar à da obra de Liszt: allegro-andante-scherzo-finale. Mas o allegro inicial é desta vez bastante contido, todo em meios-tons, e já é em si algo como um tema-e-variações. Outra diferença: o motivo principal do concerto não está ali, mas no segundo andamento. É uma melodia em formato de hino, muito saintsaensiana (lembra a Sinfonia “Órgão”?). Esse motivo que é, na verdade, o motor do concerto.
Prova disso está na passagem do scherzo para o finale: ao contrário do que acontece no Liszt, aqui é o andante que é convocado para construir essa transição. Saint-Saëns elabora cuidadosamente essa ponte para que o tema-hino ressurja em toda a sua glória. É a conclusão triunfal e lógica de toda uma estrutura que foi construída justamente para este momento.
Para o ouvinte é uma delícia. Há uma satisfação quase tátil com a melodia meio grudenta do finale, e o ouvinte não sabe bem o motivo. Revelo a mágica: ela é tão interessante porque Saint-Saëns já havia dado gostinhos dela desde o começo, através de fragmentos, variações e insinuações espalhados por toda a obra. Quando o tema-hino desenvolve todo o seu potencial no último movimento, ele já nos é familiar.
Isso, amigos, é storytelling. Afinal, tão importante quanto o quê é contado, é como é contado. Certo? ;-)
Assim encerramos nosso passeio pelo concerto para piano do século 19. Foi só um recorte, claro. Há muita música que poderíamos ter comentado (por exemplo, Brahms, ele em si um capítulo à parte), mas o essencial está aí. Espero que tenham curtido a jornada – porque semana que vem começa outra!
Dos mesmos diretores de Ilha Quadrada, eis o Concertmaster, um front-end que transforma o Spotify em um poderoso player de música clássica. GRÁTIS!Post escrito por Adriano Brandão em 31/03/2014. Link permanente.