por Adriano Brandão
A Finlândia é uma nação que remonta ao ano 1000 mas que nunca foi um país independente até 1917. Até 1809, era parte da Suécia; depois foi anexada à Rússia, que só largou o osso durante a Revolução Bolchevique. O resultado de 600 anos de jugo sueco reflete-se até hoje: apesar da língua sueca ser falada por somente 5% da população, a Finlândia é um país bilíngue, com o sueco obrigatório nas escolas e no governo.
Jean Sibelius, talvez o finlandês mais famoso de todos os tempos, era de família falante de sueco – o sobrenome latino não deixa mentir. Foi mais tarde que trocou o prenome sueco Johan pelo francês Jean, mais neutro. Também foi mais tarde que aprendeu o finlandês. Mas logo cedo engajou-se na luta pela emancipação cultural da Finlândia – a arte como forma de criar uma identidade nacional.
Essa busca de identidade não era só de Sibelius. Uns trinta anos antes do compositor nascer, um médico chamado Elias Lönnrot viajou pelo país, ouviu um monte de gente e compilou o “Kalevala”, o épico mitológico finlandês. Sim! O texto que praticamente sintetiza o imaginário nacional da Finlândia é relativamente recente – foi publicado em 1835. E não se sabe exatamente o quanto veio da cabeça de Lönnrot e o quanto veio do folclore de fato. De qualquer maneira, a publicação do “Kalevala” explodiu cabeças país afora – se a arte finlandesa precisava de uma pedra fundamental legitimamente nacional para se impor como algo não-sueco não-russo, já tinha à disposição uma. Sibelius e o pintor Gallen-Kallela foram alguns dos artistas que correram para o “Kalevala” para criar essa Finlândia cultural tão ansiada.
O livro de Lönnrot é dividido em 50 poemas distribuídos em dez capítulos (ou “ciclos”), cada um dedicado a um personagem ou arco específico. O grande herói do “Kalevala” é mesmo Väinämöinen, uma espécie de semideus, que ajudou a criar o mundo mas que não consegue arranjar uma esposa por mais que tente. Mas há outros personagens importantes, e um dos mais bizarros é Kullervo, um guerreiro irado, customeiramente sádico e sedento por vingança.
A história de Kullervo fascinou o jovem Sibelius, que compôs em 1891 sua primeira obra-prima: a sinfonia “Kullervo”, em cinco movimentos, para grande orquestra, coro masculino, barítono e mezzo-soprano. Parece muito ambicioso e é mesmo. A obra foi estreada com grande sucesso, os nacionalistas ficaram loucos de alegria, mas Sibelius cismou com ela e a engavetou. Só foi publicada após sua morte, nos anos 1950, e resgatada nos anos 70 pela gravação regida por Paavo Berglund. Que música estávamos perdendo!
“Kullervo” fica no meio do caminho entre uma sinfonia programática berlioziana ou lisztiana e um ciclo de poemas sinfônicos. Há pouca ligação temática entre as partes, mas a estrutura é menos livre. O eixo da obra é o vasto terceiro movimento, no qual o coro e os solistas aparecem pela primeira vez. Os solistas não voltam mais e o coro será usado depois somente no finale da sinfonia – portanto, três dos cinco movimentos são puramente orquestrais.
O primeiro movimento é uma descrição geral do personagem, ao mesmo tempo heróico e trágico. As características da música posterior de Sibelius estão quase todas ali – figuras em ostinato, chamadas nos sopros, grandes temas nos metais, andamento moderado eterno. É lindo, e até acho que poderia ser um poema sinfônico separado, se não fosse pelo final meio sem conclusão. A história começa propriamente no movimento seguinte, com a triste juventude de Kullervo, escravizado. É quase uma marcha arrastada, muito sombria e original.
A primeira música rápida da sinfonia escutamos no movimento central, que começa com Kullervo enfim livre, dirigindo loucamente um trenó em direção à sua cidade natal. O coro masculino entra em seguida, cantando em uníssono KUL-LER-VO, a todo vapor. É incrível, impactante! Os solistas aparecem na cena em que Kullervo conhece e seduz uma bela garota. Após passar a noite com ela, descobre que, na verdade, ela era sua irmã. O clima muda. A irmã reflete longamente sobre a situação e acaba se matando. Kullervo fica possesso de raiva e joga uma praga sobre os seus antigos senhores – irá se vingar por ter uma vida tão merda.
Esse é o tema do quarto movimento – Kullervo vai à guerra. A música é alegrinha, de caráter marcial. A sinfonia volta ao lado mais sombrio no finale, com coro. Kullervo recebe a notícia de que toda sua família foi dizimada. Ele quer mais vingança, mas há um rápido instante de reflexão: Kullervo pergunta à sua espada se um dia ela beberia sangue inocente. Ela responde (!) que já bebeu. Nesse momento, Sibelius repete temas dos movimentos anteriores. Kullervo, tomado de culpa, enfia a espada em si mesmo e morre.
A história, escura e sanguinolenta, gerou música de uma força épica impressionante. Sibelius consegue evocar o mundo mítico do “Kalevala” com perfeição. As figuras repetidas que abrem a sinfonia são quase um pórtico para uma dimensão diferente, de magia e heroísmo. O movimento central revela o talento de Sibelius para a ópera, que acabou não se realizando plenamente (compôs pouco depois uma ópera breve, com libreto sueco, que não vingou). E tem um sopro épico irresistível.
“Kullervo” é uma fascinante premonição do que seria a obra de Sibelius, e uma delícia do começo ao fim. Seja porque você gosta de fantasia e de grandes sagas medievais, seja porque você gosta de boa música – TEM DE OUVIR!
Dos mesmos diretores de Ilha Quadrada, eis o Concertmaster, um front-end que transforma o Spotify em um poderoso player de música clássica. GRÁTIS!Post escrito por Adriano Brandão em 05/04/2014. Link permanente.