Stravinsky

“A história do soldado”, suíte

por Adriano Brandão

Aí em cima tá escrito “balé”, mas acho que o mais certo seria “pantomima“. Ou não. “A história do soldado”, de Stravinsky, é uma obra teatral que meio que ~desafia classificações~. Melhor explicar: trata-se de uma peça de teatro, falado (quer dizer, não cantado), mas com música e dança. E o mais curioso: a música é destinada a um septeto (violino, contrabaixo, clarinete, fagote, trompete, trombone e percussão). Seria música de câmara então? Ooooolha…

Com apenas quatro personagens (er, o narrador é personagem?) e sete músicos, “A história do soldado” é claramente uma obra de bolso, para uma companhia ambulante de baixo custo. Isso tem explicação: foi composta em 1918, quando a Primeira Guerra Mundial fazia seus últimos estragos. Tempos bicudíssimos, e Stravinsky foi muito esperto ao criar uma obra viável até com sérias restrições orçamentárias.

“A história do soldado” tem texto escrito por Charles-Ferdinand Ramuz, amigo de Stravinsky na Suíça, onde o compositor morava. O argumento, baseado no folclore russo, é faustiano: um soldado vende sua rabeca ao diabo, em troca de riqueza infinita (na forma de um livro que traz todos os eventos do futuro. Biff, é você?). Ele fica mesmo rico (apostando em resultados esportivos?), mas infeliz, saudoso da vida que levava anteriormente. Procura o diabo novamente, pega seu violino de volta, rasga o livro… mas a rabeca não toca mais.

Calma, ainda não acabou. O soldado descobre que, para se livrar de vez do diabo, deve jogar cartas com ele e perder todo o seu dinheiro de propósito. Faz isso, e fica livre: seu violino volta a soar. Com a rabeca novamente funcional, o soldado faz música para acordar uma princesa doente (hm, longa história) e recebe as mãos dela em troca (pois é!). MAS o diabo é ardiloso, e decreta: o novo casal não pode sair do castelo real.

Só que o tal soldado, esse ser irritante e eternamente descontente, novamente saudoso de sua antiga vida, resolve sair. E daí o diabo vence definitivamente a parada. Musicalmente o triunfo do coisa-ruim é demonstrado por um genial duelo entre o violino e a percussão, em que só a percussão toca até o fim. Ela dá a palavra final, literalmente. Moralmente a mensagem que fica é: quem tudo quer, nada tem. ‘nough said!

Stravinsky leva a sério a mensagem de que ninguém pode ser, ao mesmo tempo, o que já foi e o que ainda será. “A história do soldado” é uma das obras que marcam a ocidentalização definitiva, sem volta, de seu estilo. O compositor já estava há muito tempo fora de sua Rússia natal: desde 1910 morava a maior parte do tempo na Suíça. Mesmo assim, todos os balés que compôs para Diaghlev são marcadamente russos, em argumento e estilo musical. A “História” é um pouquinho russa no plot, mas só – a música é um mélange de circo, ragtime, pasodoble, tango, valsa…

O Stravinsky cosmopolita nasce aí, na junção de um conto russo com ritmos populares urbanos ocidentais. Fora a estilização extrema da linguagem, reduzida ao mínimo na instrumentação de câmara. “A história do soldado”, na verdade, é um fascinante capítulo de “A história de Stravinsky”… ou da própria “A história da música do século 20”.

Ah, sim! Abaixo, a suíte de concerto do balé/pantomima/lo que sea, que Stravinsky reuniu em 1920. Ela basicamente tem toda a música da obra, eliminando as (longas) partes faladas e as repetições. Aos que tiverem interesse pela peça inteira em seu contexto teatral, há diversas gravações (não somente no francês original, mas também em inglês).

Dos mesmos diretores de Ilha Quadrada, eis o Concertmaster, um front-end que transforma o Spotify em um poderoso player de música clássica. GRÁTIS!

Post escrito por Adriano Brandão em 18/03/2014. Link permanente.