Milhaud

“A criação do mundo”

por Adriano Brandão

Existem várias maneiras de se contar a origem do universo. Uma, que já comentamos aqui, é a que está no “Kalevala” nórdico. Outra visão bem interessante é a do pintor realista francês Gustave Courbet [atenção: NSFW]. A versão de hoje é mais próxima de Courbet do que dos finlandeses: o balé “A criação do mundo”, de Darius Milhaud, composto em 1923.

Essa peça tem três influências principais: a mitologia africana, da qual Milhaud muito superficialmente tirou o cenário do balé; a perambulação que o compositor fez ao redor do mundo (inclusive ao Brasil, onde morou de 1917 a 1919); e o jazz americano, que forneceu a Milhaud o idioma básico da obra.

O plot é muito simples: o mundo começa em caos; aos poucos vão surgindo as plantas e os animais; surgem o homem e a mulher, que logo passam a se desejar e… começam a procriar. Hoho! ;-) Na verdade, a historinha é mera desculpa para fazer uma blaxploitation básica, que os franceses adoravam à época. E Milhaud achou ótimo, pois podia encaixar nesse contexto o jazz que tanto curtiu nos EUA!

A orquestração do balé é bem curiosa: um quarteto de cordas (com contrabaixo no lugar da viola), um deceto de sopros, um saxofone alto, um monte de percussão e um piano. A obra é estruturada em seis partes sem interrupção. Ela começa com uma introdução lenta com papel proeminente do sax (e várias interrupções do trombone que inevitavelmente lembram Villa-Lobos). O caos pré-criação é representado por uma seção mais rápida em estilo fugato, cujo tema é introduzido pelo… contrabaixo! A cara de “New Orleans jazz” fica mais evidente aqui.

A criação dos animais é simbolizada pelo retorno do tema inicial, agora carregado pela flauta. Em seguida, surgem um blues muito lírico (oboé) e um cakewalk bem agitado (cordas) – o homem e a mulher aparecem. A seção mais interessante, pelo menos para mim, é a do desejo entre o homem e a mulher. Ele vai surgindo aos poucos, e a música também não para de crescer em intensidade. Curiosamente, o encontro dos dois (o “beijo”) traz a música mais suave e delicada da obra.

“A criação do mundo” é uma obra encantadora, retrato fiel da Paris de sua época. Sabe o filme “Meia-noite em Paris” de Woody Allen? Não, não está na trilha-sonora. Acho que Allen não conhece Milhaud… Pior pro filme!

Dos mesmos diretores de Ilha Quadrada, eis o Concertmaster, um front-end que transforma o Spotify em um poderoso player de música clássica. GRÁTIS!

Post escrito por Adriano Brandão em 22/02/2013. Link permanente.