por Adriano Brandão
Opa! Repete a ficha: Schoenberg, “Noite transfigurada”, música de câmara… ROMANTISMO? Sim, romântico, muito… e DO GRANDE CARVALHO!
Sim! Antes de se transformar no mastermind do modernismo musical, Arnold Schoenberg provavelmente foi o último romântico. (O quê? Você achava que era o Lulu Santos?) Na verdade, foi ainda mais romântico que os românticos – foi um expressionista, como todos no mundo germanófono de sua época. Os expressionistas retratavam o mundo de uma maneira exacerbadamente interiorizada, eliminando o aspecto objetivo de suas linguagens e distorcendo a realidade para realçar a emoção e o sentimento.
Como se faz isso em música? Schoenberg encontrou a fórmula unindo dois gigantes alemães da segunda metade do século 19: Wagner e Brahms. De Wagner apropriou-se da harmonia densa e cromática; de Brahms, emprestou o cuidado formal e algo da intensidade WHITE HOT que o caracteriza. Acabou criando uma linguagem que é belamente estruturada mas que não se incomoda em esticar ao máximo as fronteiras da harmonia e da emoção – tipo um Brahms on steroids, saca?
A obra de Schoenberg que mais perfeitamente se encaixa nessa descrição é também sua criação mais popular: o sexteto de cordas “Noite transfigurada”, de 1899. Aliás, a própria forma da peça denuncia muito disso – é um sexteto de cordas, mas é também um poema sinfônico, que segue fielmente o texto homônimo de Richard Dehmel. Decida-se, Arnoldinho, música de câmara ou música programática? “Quero ambos.” Legal :)
O poema de Dehmel conta um momento de aflição de um novo casal: em um passeio noturno a um “frio e desolado” bosque, a mulher conta a seu namorado que está grávida de outro homem. Mais ainda – essa gravidez é fruto de uma relação casual com um completo desconhecido. No fim das contas, porém, o homem aceita a situação e diz que a noite mágica que vivem irá fazer da criança seu próprio filho.
[Acabo de ganhar o prêmio Insensível do Ano, por transformar um poema expressionista em um relato bem seco! Leiam o original. De qualquer maneira, preciso confessar que o poema me causa ojeriza. Ele representa BEM DEMAIS a misoginia típica da Viena de Schoenberg e Freud. Uma histérica tornada devassa é “salva” por um amante santificado… muito difícil de engolir em 2014.]
Exatamente como Wagner e Liszt faziam, Schoenberg montou sua narrativa através de motivos condutores, pequenos trechos melódicos que simbolizam personagens (o homem, a mulher), emoções (felicidade, angústia) e conceitos (a noite, a maternidade). Mas os temas concebidos por Schoenberg têm um desenho clássico e são desenvolvidos de uma maneira muito brahmsiana. É uma mistura curiosa, e realmente linda.
Schoenberg estruturou seu sexteto em um fluxo contínuo de música, algo como um grande movimento de trinta minutos. Mas como a partitura acompanha verso por verso o poema de Dehmel, é fácil enxergar cinco divisões na obra, dos primeiros passos do casal no bosque, passando pelo momento da revelação e chegando ao perdão trazido pela noite “transfigurada”.
Esse perdão, aliás, meio que quebra o sexteto em duas partes. A primeira é muito tensa e escura. As harmonias e o tratamento temático são ultracromáticos, quase atonais. Há um bocado de dissonância. Quando o homem diz, depois do agitado e desesperado relato da mulher, “veja quão belamente o universo brilha”, a obra ganha um tom otimista e extático, as harmonias ficam mais claras e as dissonâncias, bem menos comuns.
Depois de “Noite transfigurada”, Schoenberg se embrenharia ainda mais fundo no expressionismo, com o super poema sinfônico “Pelléas e Mélisande” e principalmente com a mini ópera “Expectativa”, que já é plenamente atonal. Ambas as peças compartilham com “Noite transfigurada” os temas bem românticos da noite, do bosque e do casal impossível, mas com a abordagem extremada característica (e mais uma boa dose de repulsa às mulheres…). Só após algum tempo que Schoenberg irá ~descobrir~ o dodecafonismo serial que associamos imediatamente ao seu nome.
“Noite transfigurada” é uma obra tão bonita e emocionante quanto importante, que consegue sintetizar como nenhuma outra todo o momento de transição da música e da arte alemã. É do GRANDE CARVALHO, o maior do frio e desolado bosque. Ops :)
Ah, sim! Se você quer descobrir os segredos de “Noite transfigurada” a fundo, PRECISA ler a estupenda série de artigos do Amancio Cueto no blog Euterpe, em que ele demonstra sua visão além do alcance e evidencia coisas incríveis na partitura (até uma cena de sexo ruim e degradante! uia!).
Dos mesmos diretores de Ilha Quadrada, eis o Concertmaster, um front-end que transforma o Spotify em um poderoso player de música clássica. GRÁTIS!Post escrito por Adriano Brandão em 05/03/2014. Link permanente.