Beethoven

Sonata para piano no. 23, “Appassionata”

Eu me lembro como se fosse hoje – era 1988 e havíamos comprado um aparelho de som com CD player. Uau, aquilo era muito revolucionário. O aparelho era enorme, modular. Só a parte do CD devia pesar alguns quilos. A caixa de som era quase do tamanho de uma criança pequena, e pesava tanto quanto. Era um adorável trambolho. Hoje em dia ninguém tem mais aparelho de som…

Enfim, o aparelho tinha CD! O nosso som anterior, um Polyvox prateado lindo de morrer, não. Isso era muito excitante, mas não tínhamos nenhum “disco laser” (sim, falava-se desse jeito) para ouvir. Fomos então ao Eldorado, em São Paulo, que era mais uma enorme loja de departamentos do que um shopping center, para resolver isso. No gigante salão de música, uma das estantes era dedicada a CDs – boa parte, talvez a maioria, de música clássica.

Pois é. Pouca gente se dá conta disso, mas foi a música clássica que impulsionou a criação do som digital e do compact disc. Akio Morita, da Sony, era fã de música sinfônica e amigo pessoal de Herbert von Karajan. Além de participar ativamente da criação do CD junto com a Philips, a Sony comprou a CBS, o grande selo americano. Como foi o pessoal da música clássica que primeiro embarcou no CD, entusiasmado com a qualidade do áudio, a maior parte dos “discos lasers” que eram lançados no mercado era dedicada aos clássicos – em geral remasterizações.

Voltando ao Eldorado: compramos alguns CDs para poder experimentar o novo som. Eu tinha 10 anos, não entendia nada de nada (sei lá se evoluí muito desde então) e a seleção foi meio aleatória: Gershwin do Michael Tilson Thomas, a Nona de Beethoven do Lorin Maazel, e três discos do Vladimir Horowitz. Tudo CBS, made in Brazil (menos um, que era DG importado). Dos álbuns do Horowitz, dois eram coletâneas – “Horowitz in Moscow” e “Favorite Encores” – e um era dedicado a três sonatas de Beethoven: “Ao luar”, “Patética” e “Appassionata”.

OK, longo nariz de cera, mas chegamos ao assunto: eu me apaixonei pela “Appassionata”! Que música incrível, quanta força, quanto drama, quanta beleza! De fato, ainda tenho essa sonata como das minhas favoritas, até hoje. E me é impossível ouvir a obra sem me lembrar dos primeiros dias daquele aparelho de som.

A Sonata no. 23 foi composta em 1805. Ganhou o apelido de “Appassionata” bem depois, depois da morte de Beethoven. Acho apropriado – a obra começa de cara com uma introdução solene que leva a uma explosão de paixão romântica, com milhões de enormes acordes. Vale lembrar que esta sonata pertence ao período intermediário do compositor, quando tudo que Beethoven escrevia era maior-que-a-vida.

A obra tem três movimentos. O andamento intermediário é um conjunto de variações sobre um tema de simplicidade schubertiana – muito contrastante com o espírito épico do início da sonata. A peça termina com um presto dramático, meio escuro, que leva a uma conclusão de arrepiar. Olha, a gente escuta e dá vontade de ser pianista, de esmurrar o piano, pular, berrar… caramba, como Beethoven é intenso!

A “Appassionata” merece a fama que tem: é música muito representativa da fase intermediária de Beethoven, e de todo o nascente romantismo musical. Importante, linda… e exciting as hell! E, pra mim, traz lembranças incríveis de infância. Tem coisas que só Beethoven consegue fazer…

Brahms

Quinteto para clarinete

Tem tantos aspectos incríveis pra mencionar sobre o maravilhoso Quinteto para clarinete de Brahms que eu nem sei por onde começar.

Tem a historinha de Brahms descobrindo tardiamente o clarinete: foi em 1890, depois de decidir se aposentar, que conheceu Richard Mühlfeld, clarinetista da orquestra de Meiningen. Encantou-se pelo instrumento e acabou abandonando a ideia de parar de compor. Mandou ver logo em quatro obras encantadoras para o clarinete, composta em um intervalo de quatro anos: um Trio para clarinete, violoncelo e piano, este Quinteto para clarinete e cordas, e duas Sonatas para clarinete e piano. Santo Mühlfeld!

Tem a historinha de Mozart. Sabe-se, Mozart também se apaixonou pelo clarinete no final da vida, e compôs duas grandes obras-primas para ele: um Concerto para clarinete e um Quinteto para clarinete e cordas. Brahms seguiu-lhe o exemplo, tanto na formação, tanto na forma do finale – um tema com cinco variações. Santo Mozart!

Tem a historinha da música cigana. Ainda adolescente, Brahms trabalhou como pianista acompanhador de um violinista húngaro amigo seu, Eduard Reményi. Foi Reményi que lhe mostrou a música cigana, e a experiência foi inesquecível. Há incontáveis traços dessa música tão particular em toda a obra de Brahms, mesmo as mais sérias e abstratas – e é impossível pensar no sublime movimento lento deste Quinteto para clarinete sem o tempero cigano. Santo Reményi!

Tem a historinha de Bad Ischl, a cidade em que Brahms, depois de certa idade, passava todos os verões. Solteiro, livre e feliz (“Livre mas feliz” era o seu motto pessoal), dedicava o tempo para andar na natureza, distribuir balas para as crianças, beber nos bares… e compor. Muito. Praticamente todas as obras da maturidade brahmsiana surgiram em Bad Ischl – inclusive as quatro para clarinete. Santa cidade!

Tem a historinha da forma cíclica. Brahms não era muito ligado a “ideia fixa”, temas recorrentes, formas de dupla-função, essa coisarada toda. Ele dava imenso valor à arquitetura, sim, mas de um jeito mais clássico. Há sim uma grande unidade em suas obras, conquistadas menos por esse modelo lisztiano de reaproveitamento temático e mais através do enriquecimento de motivos que surgem de células bem básicas. Temas explicitamente recorrentes são raros em sua produção – me lembro da Terceira Sinfonia, da Sonata para violino no. 1… e do Quinteto para clarinete, que termina com uma citação de CONGELAR O SANGUE do tema que abre a obra. Santa forma cíclica!

Tem a historinha do intermezzo. Brahms meio que aboliu o scherzo de estilo beethoveniano em suas obras. Nota lá: a maioria absoluta delas tem um intermezzo de andamento moderado. (Exceções: o Quinteto para piano, a Quarta Sinfonia.) A Terceira Sinfonia quase chega a ter dois movimentos lentos. Neste Quinteto para clarinete, Brahms faz de novo um intermezzo, bem tranquilo e ensolarado, que acaba se transformando em uma página bem rápida e empolgante, o grande alívio de um quinteto que é pura melancolia. Santo intermezzo!

E, por fim, tem a historinha do outono. Este Quinteto é de 1891. Brahms morreria em 1897. Não era velho, apesar da barbona. Mas as obras deste final de vida apresentam todas uma característica outonal irresistível: uma nostalgia agridoce, um sentimento de “boa vida bem vivida” misturado a uma certa melancoliazinha de fim de viage. O Quinteto para clarinete e cordas é talvez a obra outonal por excelência, a própria definição desse sentimento ao mesmo tempo tão difuso e tão preciso. Santo outono!

Será que faltou alguma coisa? Sim – faltou dizer que o Quinteto para clarinete e cordas de Brahms é DO GRANDE CARVALHO. Vai, vai lá, escuta logo e depois me diz se tem alguma outra historinha para eu contar :)

Mahler

“A trompa mágica do jovem”

Canções são peças de vida independente, na grande maioria das vezes. Podem ser até agrupadas, por tema ou por fonte poética, mas em geral os compositores não tentam fazer de suas coleções sequências com narrativas específicas. (As exceções mais famosas são “A viagem de inverno”, de Schubert, e “Amor e vida de uma mulher”, de Schumann.) Daí que a palavra “ciclo” comumente utilizada para designar coletâneas de canções é meio enganosa. Será que há um tique sinfônico que nos faz enxergar estruturas onde não há?

Um caso clássico é o da coleção “A trompa mágica do jovem”, composta por Gustav Mahler entre 1892 e 1901. Ela nunca foi projetada como um ciclo. O próprio compositor mexeu nas canções, tirando números e acrescentando outros, e até hoje regentes e cantores escolhem como querem fazer caso a caso.

O que une essas doze canções? A fonte poética: a coletânea de poemas folclóricos alemães “Des knaben wunderhorn” (“A trompa mágica do jovem”), reunidos por Armin e Brentano em três volumes publicados entre 1805 e 1808. “Trompa mágica” não é um instrumento musical de poderes extraordinários – na verdade, é uma “cornucópia”, aquele grande chifre de onde não param de sair alimentos e riquezas de todo tipo. O nome poderia ser liberalmente traduzido como “O tesouro da juventude” porque era esse mesmo o objetivo da coletânea – que cada criança alemã tivesse contato com uma ~infinidade~ de textos folclóricos.

Folclore alemão. Já dá pra sacar o espírito geral da “Trompa mágica” – guerra, fome, certa crueldade, amor meio tosco e misticismo idem. Mahler, para sua coletânea, escolheu doze dos poemas. Porém, após a primeira publicação, em 1899, acabou pegando duas delas emprestadas – uma foi para a Segunda Sinfonia (“Luz primordial”) e outra foi para a Terceira Sinfonia (“Três anjos cantam”). Mais tarde, em 1901, Mahler acrescentou dois números para a coletânea voltar a ter doze canções: “Revelge” (“Toque do clarim”) e “O tamborzinho”.

Em geral dá pra dividir as doze canções em dois tipos: as militares e as amorosas. Algumas fogem desse esquema – exemplo célebre é “A prédica de Santo Antônio de Pádua aos peixes”, cuja versão orquestral é o scherzo da Segunda Sinfonia -, mas essa dualidade resume bem o espírito da coleção. Mahler assume de bom grado uma visão francamente irônica e antirromântica do texto folclórico: ao contrário, é o grotesco e o bizarro que ganham destaque. A poesia popular, em Mahler, é menos a lembrança de um passado idealizado e mais a representação quase freudiana da psiquê universal. As uniões de antigo e moderno, de banal e sublime, de ingênuo e irônico são o encanto dessas canções.

Mahler não especificou as vozes de cada número – isso fica a cargo dos intérpretes. Em algumas canções o texto dá a entender um diálogo, então tornou-se comum transformá-las em duetos (com voz masculina e voz feminina). Funciona muito bem e é assim que é feito na maioria das gravações. As canções de cunho militar são cantadas obviamente por homens; as mais amorosas (ou que insinuam um eu-poético feminino) são cantadas por mulheres.

Como já comentamos, a ordem dos números também não é especificada por Mahler. Não dá pra enxergar nenhuma estrutura, na verdade. Vai do gosto do freguês. Em geral ordena-se as canções de maneira que as vozes se alternem, criando maior variedade.

A música de Mahler é tão boa, tão expressiva e original, que podemos curtir as canções sem dominar o alemão. Mas vale a pena procurar as letras e conhecer o contexto de cada número – a invenção mahleriana ganha cores realmente especiais. E é muito divertido! As investidas mal-sucedidas da moça no rapaz em “Esforço inútil”; o duelo musical entre o cuco e o rouxinol, arbitrado pelo burro (há relinchos!) em “Elogio do alto intelecto”; a diferença entre o heroísmo wagneriano do soldado e a delicadeza de sua namorada em “A canção noturna do sentinela”… tudo isso fica ainda mais saboroso quando entendemos o que se passa.

Já falei algumas vezes que Mahler é uma espécie de demiurgo, um criador de mundos. E a “Trompa mágica” é, talvez, o ingrediente principal desse universo mahleriano. Todas as suas sinfonias até a Oitava são dominadas, se não pelas canções em si (a Segunda, a Terceira, a Quarta), no mínimo pela atmosfera e temática “wunderhorniana”.

É engraçado: Mahler tinha como fonte inesgotável de inspiração uma obra cujo título é… “cornucópia”. Faz todo o sentido :)