Beethoven

Sinfonia no. 5

Segunda-feira! É dia de voltar ao trabalho, de comentar a rodada do futebol, de colocar a vida em dia… e de série aqui na Ilha Quadrada!

Hoje é uma segunda especial: uma nova série está começando. E seu título é o máximo da concisão – tem apenas uma letra, “V”. “V”? Sim! E acho que não preciso explicar: entendedores entenderão ;-)

Começamos com aquela que é a Sinfonia no. 5 mais célebre de todas – a Quinta de Beethoven, composta em 1808. Provavelmente todos os seres deste planeta conhecem o motivo inicial da sinfonia – quatro notinhas, três curtas repetidas e uma longa para arrematar. TCHAN TCHAN TCHAN TCHAAAAAAAAAN!

Pois é! Se Beethoven praticamente inaugurou o romantismo com sua Terceira Sinfonia, a “Eroica”, definindo os parâmetros emocionais de duração, expressão, drama e conflito que seriam obrigatórios em toda a produção sinfônica do século 19, é na Quinta que Beethoven define a forma da sinfonia romântica. Temas recorrentes, movimentos tocados sem interrupção, evolução tonal do tom menor para o tom maior, finale redentor… o básico da sinfonia oitocentista está todo aí.

A obra começa com o tema famoso, tão pequeno e tão significativo – toda uma tensão, todo um conflito resumido em quatro notas! E Beethoven vai fazer gato e sapato desse micromotivo. Óbvio que o objetivo de toda a obra é resolver o conflito encerrado nessa minúscula mas potente declaração inicial. “Beethoven TEM que solucionar isso”, é o que cada um de nós pensa ao ouvir os quatro tchans.

Beethoven VAI resolver tudo, claro. Mas tem lá o seu timing. Não é no primeiro movimento. A luta é intensa, o drama é magnífico, mas ainda não chegamos aonde queríamos – será que o misterioso solo de oboé pertinho do final indica isso?

O segundo movimento é uma espécie de duplo tema-e-variações. Seu tom é de certo alívio pós-batalha. O primeiro tema, de feição lírica, é anunciado pelas cordas graves. Logo após surge um segundo tema, baseado no primeiro, mas de espírito mais heroico que lírico. A sensação que temos – reforçada pelo final absolutamente brilhante e positivo – é que ainda há esperança, precisamos seguir em frente.

Pois o scherzo retoma essa luta. Um trecho bem sombrio inicia o movimento, mas vejam (ouçam!) quem volta logo em seguida: o tema inicial da sinfonia, meio transformado pelo ânimo injetado pelo movimento lento. E, de repente, após um momento de suspense… o finale, trazendo toda a luz a qual a sinfonia almejou o tempo todo. Viva! \o/

Depois de tanta tensão, finalmente uma longa e positiva vitória. É de lavar a alma, e Beethoven não se cansa de comemorar: são 29 compassos consecutivos cheinhos de acordes de dó maior tocados a todo o vapor! Essa luta toda valeu a pena, não é?

A Quinta de Beethoven, com seu subtexto de conflito-e-vitória e sua magnífica engenharia de motivos interligados, é o próprio modelo da sinfonia do século 19. Quantos não haveriam de tê-la como inspiração? Schubert, Berlioz, Mendelssohn, Liszt, Schumann, Brahms…

Esses e outros românticos também escreveriam suas quintas. Mas esse é papo para os próximos capítulos ;-)

Milhaud

“A criação do mundo”

Existem várias maneiras de se contar a origem do universo. Uma, que já comentamos aqui, é a que está no “Kalevala” nórdico. Outra visão bem interessante é a do pintor realista francês Gustave Courbet [atenção: NSFW]. A versão de hoje é mais próxima de Courbet do que dos finlandeses: o balé “A criação do mundo”, de Darius Milhaud, composto em 1923.

Essa peça tem três influências principais: a mitologia africana, da qual Milhaud muito superficialmente tirou o cenário do balé; a perambulação que o compositor fez ao redor do mundo (inclusive ao Brasil, onde morou de 1917 a 1919); e o jazz americano, que forneceu a Milhaud o idioma básico da obra.

O plot é muito simples: o mundo começa em caos; aos poucos vão surgindo as plantas e os animais; surgem o homem e a mulher, que logo passam a se desejar e… começam a procriar. Hoho! ;-) Na verdade, a historinha é mera desculpa para fazer uma blaxploitation básica, que os franceses adoravam à época. E Milhaud achou ótimo, pois podia encaixar nesse contexto o jazz que tanto curtiu nos EUA!

A orquestração do balé é bem curiosa: um quarteto de cordas (com contrabaixo no lugar da viola), um deceto de sopros, um saxofone alto, um monte de percussão e um piano. A obra é estruturada em seis partes sem interrupção. Ela começa com uma introdução lenta com papel proeminente do sax (e várias interrupções do trombone que inevitavelmente lembram Villa-Lobos). O caos pré-criação é representado por uma seção mais rápida em estilo fugato, cujo tema é introduzido pelo… contrabaixo! A cara de “New Orleans jazz” fica mais evidente aqui.

A criação dos animais é simbolizada pelo retorno do tema inicial, agora carregado pela flauta. Em seguida, surgem um blues muito lírico (oboé) e um cakewalk bem agitado (cordas) – o homem e a mulher aparecem. A seção mais interessante, pelo menos para mim, é a do desejo entre o homem e a mulher. Ele vai surgindo aos poucos, e a música também não para de crescer em intensidade. Curiosamente, o encontro dos dois (o “beijo”) traz a música mais suave e delicada da obra.

“A criação do mundo” é uma obra encantadora, retrato fiel da Paris de sua época. Sabe o filme “Meia-noite em Paris” de Woody Allen? Não, não está na trilha-sonora. Acho que Allen não conhece Milhaud… Pior pro filme!

Mozart

Sinfonia no. 40

Existe uma série oculta cá na Ilha Quadrada, e nem eu havia percebido! É a série das obras de Mozart em sol menor. Ela está caminhando bem :) Começamos pelo Quarteto para piano no. 1. Depois chegamos ao Quinteto de cordas no. 4. Hoje é dia da maravilhosa Sinfonia no. 40. Um dia falaremos da Sinfonia no. 25, para fechar a série ;-)

Mozart compôs quarenta e uma sinfonias. Delas, somente as duas citadas são em tonalidade menor, e sempre sol. Acho o sol menor mozartiano muito intrigante. Aliás, reescrevo: acho o Mozart em tom menor extremante fascinante. Mozart nunca é melancólico ao modo de um Schubert, por exemplo; seu lado escuro é agitado, angustiado, ansioso.

Esta famosíssima Sinfonia no. 40, de 1788, representa bem esse estado de espírito. Ela começa só com o acompanhamento, uma figura constantemente repetida que transmite a comichão que Mozart estava querendo expressar. O tema principal, que todo mundo conhece, vem em seguida, e leva a um desenvolvimento realmente notável, de intensidade quase trágica.

O segundo movimento, profundamente belo e emocionante, é de um drama muito mais interiorizado. O minueto que se segue não é um minueto! Quer dizer, é um minueto, mas seu caráter é tão violento que mais parece um scherzo beethoveniano. (Contrastando com o trio bem mais delicado, de humor quase haydniano.) O finale retoma a agitação do início da sinfonia, com diversas passagens contrapontísticas muito brilhantes (em particular, dois trechos em estilo fugato que já antecipam a monumental fuga da Sinfonia no. 41).

Esta 40 é uma das obras de Mozart de que os românticos mais irão gostar, juntamente com o Concerto no. 20. Beethoven a tinha em mais alta conta. A sinfonia antecipa tanta coisa, desde a expressão dramática, passando pelo minueto menos dançante até o finale contrapontístico, que tal predileção fica plenamente explicada. Mozart estava colocando um pezinho no romantismo…

Bartók

Quarteto de cordas no. 4

Respira fundo! Lá vem uma das maiores obras-primas da música do século 20: o Quarteto de cordas no. 4 de Béla Bartók. (Vou respirar fundo também, porque escrever sobre essa música não é nada fácil!)

Bartók compôs seis quartetos de cordas que se transformaram em partes fundamentais do repertório de câmara (não só do século 20, mas de todos os tempos). É quase lugar-comum comparar os quartetos de Bartók com os quartetos de Beethoven. O fato é que são, como as obras do alemão, peças complexas, muito profundas e recheadas de inovações.

Dos seis, o meu favorito é o quarto, composto em 1928, uma das fases mais interessantes da carreira de Bartók. São obras irmãs os dois primeiros concertos para piano e orquestra, a Sonata para piano e a “Cantata profana”. Todas elas (principalmente o Concerto para piano no. 1) compartilham com o Quarteto no. 4 uma agressividade realmente impressionante. São obras que mexem com o ouvinte!

O Quarteto no. 4 é estruturado da típica maneira bartokiana: cinco movimentos concêntricos, rápido-scherzo-lento-scherzo-rápido. Ambos os scherzos apresentam novidades de execução. O primeiro é todo tocado com surdinas nos instrumentos (o som fica mais velado). E o segundo é inteiro em pizzicato (cordas pinçadas, como se fossem violões).

O primeiro movimento é admirável pela linguagem melódica angulosa, totalmente diferente. O tema principal parece um não-tema, na medida em que ele não se resolve da maneira como o nosso ouvido está acostumado. A sensação, atordoante, é de “abstração” – isso, mais a incrível tensão e violência do desenvolvimento, tornam o movimento um Pollock feito em música.

O terceiro andamento é uma clássica música noturna bartokiana, muito expressiva. E o finale é de arrancar o telhado da casa: Bartók aqui retorna ao clima violento do primeiro movimento, acrescentando à linguagem áspera (e aos temas emprestados) do allegro inicial um tempero folclórico. O movimento começa como se fosse um alarme disparando. Imagino a reação da audiência na estreia!

O que eu digo: metaleiros, seus maricas, podem comer morcegos vivos no palco e o que mais vocês quiserem, pois não vai adiantar – perto deste Bartók aqui vocês são noviças! O QUARTETO NO. 4 DE BARTÓK É DO GRANDE, IMENSO, GIGANTESCO CARVALHO E TENHO DITO! FUCK YEAH! \m/

Ver a peça é muito interessante, e este jovem quarteto com nome de sopa que encontrei no YouTube toca horrores. Impressionante!

Vivaldi

“As quatro estações”

A obra mais famosa de Vivaldi, da música barroca e uma das mais célebres de todos os tempos: “As quatro estações”, conjunto de quatro concertos para violino composto em 1723 e publicado dois anos depois dentro de um set maior, de doze concertos, chamado “O confronto entre a harmonia e a invenção”.

Esse conjuntão é o Opus 8 de um compositor que compunha muito e publicava muito pouco. Só que o que Vivaldi publicava se espalhava rapidamente pela Europa inteira. Músicos de todo o continente tinham paixão pelos concertos desse misterioso padre veneziano. Bach, lá em Leipzig, tinha partituras de várias peças de Vivaldi entre seus pertences. Chegou a arranjar alguns de seus concertos para outros instrumentos. E não só ele – “recompor” Vivaldi era prática corrente (bom, é até hoje).

A explicação é óbvia à primeira audição: as obras instrumentais de Vivaldi são tão simples e criativas que praticamente imploram por uma abordagem de reconstrução. Elas são um poderoso combustível para a imaginação. E o próprio nome do Opus 8 já entrega isso: um confronto entre harmonia (a “moderação” artística) e invenção (a “chama” da ousadia que cria o novo).

Os concertos d”As quatro estações” que se tornaram tão famosos são praticamente uma prova de conceito, uma espécie de happening barroco. Quatro sonetos sobre as estações do ano são a base de quatro concertos para violino, que, sem escapar da forma vivaldiana de concerto (três movimentos, rápido-lento-rápido), são verdadeiros desfiles de imagens e alusões simbólicas. É mega fácil ouvir cachorros latindo, pássaros cantando, o calorão que dá moleza, tremores de frio, uma tempestade de verão, a chuva que cai na janela…

Também é mega fácil transformar esse monte de imagens em um festival de clichês edulcurados para o deleite de preguiçosos. “Ah, o pintassilgo, que lindo” e melífluos violinos a botar-lhe uma moldura dourada. Os Vivaldis que foram criados pela posteridade – o Vivaldi de sabonete, o Vivaldi de lata kitsch de biscoito amanteigado, o Vivaldi escrito em cursivas douradas – não poderiam ser mais distantes do Vivaldi real. Em cada um desses concertos mais-do-que-batidos encontra-se uma mente que fervilhava, que queria muito mais soltar a imaginação (e chocar mesmo!) do que agradar.

As gravações abaixo, de Rinaldo Alessandrini e seu grupo Concerto Italiano, representam uma visão muito mais adequada d”As quatro estações”. Pelo menos para mim. São recheadíssimas de improvisos, pausas dramáticas, abruptas mudanças de direção. Chegam ao ponto do maneirismo? Ah, algumas vezes. Mas são, acima de tudo, vivas e radicais. E não consigo pensar Vivaldi de outro jeito.

As gravações de Alessandrini não estão disponíveis no Spotify. Abaixo, a excelente, porém mais tradicional, versão de Trevor Pinnock com Simon Standage.

Strauss

“As alegres travessuras de Till Eulenspiegel”

E chegamos ao final de nossa série “Mágico, fantástico, lendário”! Nos cinco episódios anteriores vimos diversas peças baseadas em antigas lendas ou contos de fada. Além da origem folclórica, essas obras tinham dois pontos em comum: subtextos sombrios e sobrenaturais; e o tom moralizante.

Para encerrar a série, vamos a algo um pouquinho diferente. A origem continua a mesma – histórias da carochinha – e o tom moralizante segue forte, mas o aspecto mágico dessa vez é substituído por um realismo cru e cômico. Trata-se do poema sinfônico “As alegres travessuras de Till Eulenspiegel”, composto por Richard Strauss em 1895.

O plot da obra é centrado na figura de Till Eulenspiegel, um personagem lendário medieval alemão, famoso por pregar peças de maneira compulsiva. Till não respeitava absolutamente ninguém – seu único drive vital era fazer troça e brincar com os outros. Claro que essa total falta de tato acabou mal. Vejamos.

O poema sinfônico começa com uma introdução lenta classicamente descrita como um “era uma vez” musical. Em seguida, dois temas ligados a Till, um comicamente heroico na trompa, outro escancaradamente farsesco no clarinete. Ambos os motivos serão repetidos ad nauseam – a obra é estruturada como um rondó (a cada seção nova, o retorno do tema principal). Descrito o protagonista, começam suas peripécias:

  • Ele entra montado a cavalo no mercado, destruindo as barracas e as mercadorias.
  • Ele se veste de padre e faz um sermão falso para o povo.
  • Ele flerta e persegue de maneira inconveniente as meninas da cidade.
  • Ele tira sarro dos sérios e solenes professores locais.

Obviamente isso não poderia ficar barato. A comunidade decide prender e enforcar Till Eulenspiegel. Está tudo na música: as pilhérias do protagonista, a perseguição a ele, sua prisão e rápido julgamento, e sua execução. Com direito a um último suspiro esganiçado no clarinete – requintes de crueldade. Todos, inclusive Strauss e os ouvintes, querem se vingar de Till.

O poema sinfônico se encaminha para o final com o “era uma vez” novamente, pacífico e tranquilo; a ordem foi restaurada após darem cabo de Till. Mas o finzinho é em tom de farsa, como se a peça fosse começar outra vez. Strauss parece estar deixando uma pergunta no ar: morto o zombeteiro, cessa a zombaria?

Na verdade, essa velha historinha alemã tem – além da lição contida na punição exemplar do protagonista – uma segunda moral: existe um Till Eulenspiegel escondido dentro de cada um de nós. Só que não conseguimos enxergá-lo direito. A própria figura do Till serve para percebermos o quão sacana e cruel pode ser o homem. Ou seja, nós mesmos.

Ah, sábio folclore…!

Widor

Sinfonia para órgão no. 5

Você já deve ter ouvido falar que o órgão é o rei dos instrumentos e que sua variedade de timbres é comparável à de uma orquestra sinfônica miniaturizada. Esse é um conceito relativamente recente. Foi somente na segunda metade do século 19 que conscientemente tentou-se obter um som orquestral do órgão. Se for possível dar um pai para essa ideia, ele é Aristide Cavaillé-Coll, construtor de instrumentos francês, que inventou mecanismos pneumáticos e formatos de tubos e pistões que deram colorido novo ao órgão e multiplicaram-lhe as possibilidades timbrísticas.

Cavaillé-Coll construiu o órgão da igreja de Santa Clotilde, em Paris, cujo organista era César Franck. Franck ficou maravilhado. Outra das primeiras igrejas que receberam os novos órgãos de Cavaillé-Coll foi a igreja de São Sulpício. O titular em São Sulpício era o jovem Charles-Marie Widor, que foi inspirado pelo seu novo instrumento a compor… sinfonias! Como assim?

Sim, sinfonias para órgão solo! As primeiras quatro surgiram de uma só vez, em 1872. Apesar das sonoridades cheias, predominantemente homofônicas, essas quatro primeiras peças não são muito sinfônicas na forma – os movimentos são bastante desconectados entre si. Foi a partir da Quinta Sinfonia, de 1879, que Widor aos poucos chega a um estilo mais consolidado de sinfonia para órgão solo. E é essa justamente sua obra mais popular.

Quem está procurando a grandiosidade e o esplendor típicos da música organística vai estranhar muito essa sinfonia. (Talvez a Sexta Sinfonia lhe apeteça mais.) A Quinta tem cinco movimentos, sendo os quatro primeiros de feição bem contemplativa. O primeiro é um tema-com-variações (com um episódio intermediário independente), que raramente torna-se mais agitado. O segundo é praticamente uma canção. O terceiro é o que acho mais interessante, um andantino semi-estático, com uma seção no meio muito original e comovente. O quarto é o movimento lento em si, muito bonito.

A obra conclui, de modo contrastante, do modo mais exterior e brilhante possível: uma famosíssima tocata, com seus arpejos repetidos sobre um baixo constante, combinação que dá uma sensação de movimento perpétuo. Esse trecho foi massacrado de todas as maneiras: como música de casamento, de cerimônias religiosas, do que você quiser. E eclipsou totalmente o restante da sinfonia, que, sim, é bem interessante e vale conhecer como um todo.

Ah, o estilo de Widor? Próximo ao de Saint-Saëns, de quem foi assistente por muitos anos, mas também influenciado por Liszt – quem nunca? – e pela música alemã para órgão. Se não é exatamente marcante, soa bastante único e até mesmo intrigante em muitos pontos.

É música bem escrita e representa um momento importante da música romântica, principalmente a francesa. O estilo francês de órgão sinfônico perdurou até meados dos anos 1950, com Duruflé, último representante dessa escola que começou em Franck e Widor e continuou com Dupré, Vierne e Tournemire, entre outros. Hoje é um gosto “de conhecedor”, mas se estar num nicho é ser hipster… que sejamos hipsters por alguns instantes! :)

Bach

Cantata BWV. 140

Johann Sebastian Bach viveu boa parte da carreira como uma espécie de torneira sempre aberta de cantatas (escreveu cerca de duzentas). OK, mas… o que é uma cantata?

Cantatas são composições vocais – duh! – em vários movimentos, para solistas, coro e orquestra, geralmente sobre temas religiosos. Dá para imaginar uma cantata como uma reflexão musical a respeito de um assunto. Cada parte da cantata é uma manifestação diferente desse pensamento: para solista, para duo, para coro etc.

Com o desenvolvimento do gênero, surgido no início do barroco, foram aparecendo algumas divisões típicas. O componente clássico da cantata é o coral, filho direto do coral luterano, uma espécie de hino. Existem também os coros – grandes formas para coro em forma livre, geralmente de cunho mais contrapontístico que os corais – e as árias da capo – espécie de canções nas quais a última parte é uma repetição ornamentada da primeira.

Entre esses três ingredientes básicos, são distribuidos recitativos, trechos em que um texto é semi-cantado, com acompanhamento mínimo. Os recitativos parecem chatos, mas são muito importantes: eles têm a função de amarrar a obra conceitualmente, fazer a ação “andar” e reforçar a mensagem que se quer passar para a audiência.

O formato da cantata é, portanto, diferente da missa e mais próximo da ópera de números, porém sem o aspecto teatral. Uma cantata ampliada (ou uma coleção de cantatas) é o que se chama de oratório. Há oratórios especiais: um oratório sobre os últimos dias de Cristo recebe o nome de “paixão”, por exemplo.

Bach compunha para seus patrões de Leipzig cantatas para as ocasiões mais diversas. Algumas foram para a Páscoa, outras para o Natal (que foram agrupadas no célebre “Oratório de Natal”) e um monte para as demais datas do recheado calendário litúrgico. Haja imaginação! E nos assombramos mais ainda quando vemos a qualidade da música que Bach criou – é tudo da mais alta qualidade.

Entre as cantatas bachianas mais conhecidas está a de número 140, para três solistas, coro e orquestra, composta em 1731 e que recebeu o nome de “Despertai, a voz nos chama”. O texto-base é o hino de mesmo nome criado por Phillipp Nicolai uns 130 anos antes. Bach estrutura sua cantata em sete partes, nas quais o texto de Nicolai é dividido. A primeira é um coro sobre o primeiro verso do hino; em seguida vêm um recitativo, uma ária para soprano e baixo, um coral sobre o verso “Sião ouve os vigilantes cantarem” (que ganhou tanscrição para órgão muito célebre), outro recitativo, outra ária para soprano e baixo e o coral final.

Note que as duas árias recebem tratamento bem diferente. Bach tinha o costume de fazer os solistas vocais serem acompanhados por solistas instrumentais – os tais “obbligatos”. A primeira ária tem uma linda parte para violino obbligato; a segunda ária tem o oboé como convidado de honra. Note também a expressividade dos recitativos – muito longe de serem secos e sem vida – e o maravilhoso tratamento que Bach dá ao coral luterano, incrivelmente enriquecido.

As cantatas de Bach reservam um monte de riquezas mesmo para quem está bastante distante do mundo luterano; são, antes de tudo, experiências musicais incríveis, puríssimas. Quem tiver ouvidos para ouvir… ;-)

Beethoven

“Fidelio”, aberturas

Beethoven não era um cara ligado a ópera. Um ambiente frívolo demais para o pudico e sisudo compositor, provavelmente. Mas ele compôs uma: “Fidelio”, com o plot deveras beethoveniano de uma injustiça reparada por ato heroico. A história, do francês Jean-Nicolas Bouilly, que trata de um prisioneiro político preso por um ditador e libertado por sua esposa (Leonora, que invadiu a prisão disfarçada como Fidelio, um homem), tinha tudo mesmo para agradar o exigente Beethoven. Nenhum outro enredo faria sentido para ele.

Mas mesmo assim Beethoven sofreu muitíssimo para criar sua ópera. Fez nada menos que três versões dela: uma para a estreia em 1805, outra para uma apresentação em 1806 e, finalmente, a definitiva de 1814, também para uma montagem. Achou muito? Beethoven penou mais ainda para encontrar a abertura ideal. Existem quatro versões dessa abertura. Confira comigo no replay:

  • Para a estreia de 1805, a primeira, hoje chamada de Abertura “Leonora” no. 2 (!).
  • Para a versão de 1806, outra, a maior de todas, a Abertura “Leonora” no. 3.
  • Para uma apresentação em 1808, ainda outra abertura, que ganhou o número de Abertura “Leonora” no. 1 (vai entender).
  • E, ufa ufa, em 1814 chegou à versão final, dita Abertura “Fidelio”.

O material temático é praticamente o mesmo em todas as aberturas – claro, extraído da ópera. O que muda é o conceito básico do que deve ser uma abertura de ópera. Um resumo bastante exato da ação? Um rápido “levantar de cortinas” para “esquentar” o público? Uma solução de compromisso entre essas duas visões? Não há resposta pronta e Beethoven teve dificuldades para satisfazer seu lado sinfônico sem esquecer as necessidades dramáticas da ópera.

A primeira abertura composta, a no. 2, é grande e muito detalhada, com uma longa introdução lenta que culmina no tema principal da ópera e que leva a um desenvolvimento realmente notável, com trompetes fora do palco e diversos artifícios dramáticos. A ideia aqui é reproduzir a ação:

Beethoven não ficou satisfeito. Achou que a abertura não estava retratando suficientemente bem a história e compôs uma peça ainda mais detalhada e dramática, de maravilhosa expressividade. Beethoven expande a abertura anterior, seguindo o modelo geral e acrescentando ideias novas aqui e ali. Sua “Leonora” no. 3 é praticamente um poema sinfônico avant la lettre. É maravilhoso! Você ouve e fica tão satisfeito que, sei lá, dá vontade de mandar cancelar a ópera que deveria vir-lhe em seguida:

O vídeo holandês abaixo é imperdível: note sua direção “experimental” bem bizarra. O que é a cena do solo de flauta? Hahaha!

Foi a inadequação entre a magnífica abertura, WHITE-HOT-mega-hiper-giga-excitante, e o começo bobinho da ópera (uma mocinha suspirando de amores por Fidelio, que na verdade é uma mulher), que fez Beethoven mudar de ideia. O objetivo agora tornou-se concisão e harmonia. Sua “Leonora” no. 1 reflete isso: é muito mais curta e leve, realmente um “acorda, plateia!”. Saca só:

Mas realmente não faz boa figura frente às demais tentativas. Então Beethoven, na revisão geral que empreendeu em 1814, começou de novo. Seguiu a linha de começar a ópera com algo mais simples. Ao contrário das três “Leonora”, a abertura “Fidelio” não tem introdução lenta – já vai com tudo com um motivo curto (e novo) em uníssono, no melhor estilo beethoveniano. A sensação geral é: agora sim temos uma abertura de ópera, não uma sinfonia de Liszt.

A saga das aberturas de “Fidelio” é um fascinante testemunho do árduo processo criativo daquele que é, provavelmente, o maior compositor de todos os tempos. Nada vem de graça – aqui é trabalho, meu filho!

E aí? Qual sua versão favorita? A minha é, sem dúvida, a “Leonora” no. 3, mas tenho minha quedinha pela concisa “Fidelio”. Vote nos comentários! :)

Schumann

“Carnaval”

Que clichê! Hoje é terça-feira gorda e não tive nenhuma dúvida: vou falar sobre “Carnaval”, a obra-prima pianística de Schumann. Nunca ninguém fez isso antes… só que não! Chavão carnavalesco à parte, o fato é que sempre adorei essa peça e acho que toda oportunidade de mostrá-la é valiosa :)

Quando falamos de Mahler, comentei sua capacidade notável de criar um universo próprio. O jovem Schumann das obras para piano é igual. Todas as peças que compôs nessa época compartilham climas, referências, ambientações – é como se fossem movimentos de uma grande obra única.

Coincidência: a Primeira Sinfonia de Mahler recebeu o subtítulo de “Titã”, após o romance do escritor alemão Johann Paul Richter, aka Jean Paul. E justamente a maior influência literária de Schumann foi Jean Paul. Foi a partir de um livro de Jean Paul que Schumann compôs sua obra inaugural, “Papillons”, de 1831, que introduz o mundo schumanniano de mascarados, disfarces, enigmas e desencontros de quase todas as peças seguintes. O mundo do jovem Schumann é derivado do mundo de Jean Paul, que também influenciou o jovem Mahler. Há aí uma conexão.

“Carnaval” é de 1835 e leva adiante a ambientação de “Papillons”. Como o nome explicita, trata-se de um baile de máscaras. Schumann estruturou seu baile como uma espécie de tema-e-variações de forma muitíssimo livre, a partir de alguns fragmentos melódicos: o subtítulo é “Pequenas cenas sobre quatro notas”. As quatro notas a que Schumann se refere formam, na notação musical alemã, os acrônimos ASCH, AsCH e SCHA. Essas siglas podem significar um monte de coisas: o nome de Schumann, a cidade natal de sua então noiva (Asch), carnaval em alemão (Fasching) e assim por diante.

Esses motivos aparecem nesse baile de várias maneiras: como personagens da commedia dell’arte italiana (Pierrô, Arlequim, Pantaleão, Colombina), como os próprios pseudônimos de Schumann (Eusebius, Florestan), como eventos (um flerte, o reconhecimento entre os amantes, um passeio) e como retratos de amigos e conhecidos de Schumann: estão lá Chopin, Paganini, sua futura esposa Clara Wieck e sua então noiva, Ernestine von Fricken, além dos imaginários “Companheiros de Davi” (a confraria fantástica de Schumann), que lutam contra os “filisteus” na marcha final.

Como dá para notar, Schumann dá vazão aqui a uma imaginação fertilíssima. Essa enorme quantidade de conceitos é retratada em música a partir daquelas míseras quatro notinhas de base. O estilo é o típico schumanniano: melodias curtinhas, de desenho meio anguloso, harmonizadas de maneira muito original. Isso cria um clima meio “fora-do-mundo”, surreal, que acho que só será revisitado pelos expressionistas vienenses um século depois.

Há trechos rapidíssimos (“Paganini”), partes bem-humoradas (“Pantaleão”) e outras de expressiva sensibilidade (“Chiarina” e “Aveu”). No baile de Schumann acontece de tudo! E ele termina com uma parada imaginária contra a mesquinharia e o conservadorismo na arte (e também no mundo, por quê não?), simbolizada por um engraçado tema alemão, a “Dança do vovô”.

Por suas incontáveis inovações musicais e artísticas, por ser um retrato tão pungente das aspirações de sua época, e por ser um transbordamento de fantasia e imaginação, “Carnaval” merece o SELO DE EXCELÊNCIA DO GRANDE CARVALHO. E aqui na Ilha é assim: se merece, ganha DEZ! \o/