Holmboe

Sinfonia no. 5

Interessante ver como, tirando países centrais como Alemanha, Itália e França, na maioria das vezes reduzimos a produção de toda uma cultura a poucos autores, em geral um para cada época.

No caso da Dinamarca, sem dúvida o criador musical mais conhecido é Carl Nielsen. Mas ele teve antecedentes e descendentes. Vários, aliás, mas apenas dois ainda são lembrados: o romântico Niels Gade, amigo de Mendelssohn, e Vagn Holmboe, um autor totalmente pertencente ao século 20, contemporâneo exato de compositores como Camargo Guarnieri e Aaron Copland.

A obra de Holmboe é fascinante. De estilo firmemente neoclássico mas muito pessoal, Holmboe ficou conhecido por suas treze excepcionais sinfonias, mais uma série grande de sinfonias e concertos de câmara, todos muito originais.

A carreira sinfônica de Holmboe começa propriamente na Segunda Sinfonia, uma obra vigorosa, realmente impressionante. Escrita para um concurso, definiu a linha básica de toda a sua produção madura: três movimentos, formas muito claras, harmonias bastante sequinhas e diretas, ritmos vigorosos e melodias curtas e marcantes.

Esse estilo atingiu seu ápice na Quinta Sinfonia, de 1944, para mim a melhor de sua produção sinfônica. Dividida em três movimentos bastante contrastantes, ela é repleta de momentos memoráveis. O primeiro é uma forma-sonata clássica, toda baseada em um tema que curiosamente tem algo que me lembra “Caravan” – sim, o standard de jazz imortalizado por Duke Ellington.

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A música é toda aspereza e potência. O segundo movimento continua nesse clima agreste – é uma espécie de marcha lenta, com uma harmonia muito original. O finale contrastante começa a todo vapor, com figurações rápidas nas cordas que criam um clima mecânico, repleto de um “motorismo” muito típico da música da época.

A sinfonia é muito boa, provavelmente até melhor que a maioria da produção neoclássica dos anos 1940! Se você curte Martinu, Camargo Guarnieri, Harris ou mesmo autores mais antigos como Roussel, Honegger e Hindemith, vai gostar muito de Holmboe. Eu agarântcho! \o/

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Schubert

Quinteto de cordas

Continuamos nossa saga por aquele que é, provavelmente, o ano mais miraculoso da história da música: 1828, quando Franz Schubert nos presenteou com obras incríveis, um pouquinho antes de morrer.

Foi um período de atividade impressionante. No verão desse ano, Schubert compôs aquela que é provavelmente a sua mais importante obra de câmara e uma das maiores de todos os tempos: o seu Quinteto de cordas em dó maior.

O Quinteto, instrumentado para um quarteto de cordas com violoncelo adicional (não viola, como usual), apresenta todas as características da última fase schubertiana, elevadas a um grau inédito de pureza e intensidade. Formas gigantes – só o primeiro movimento tem cerca de 20 minutos! -, constante oscilação maior-menor e, principalmente, TONELADAS de momentos ARREPIO.

Prepare-se: é uma montanha russa de emoção, maravilha melódica, beleza harmônica de tirar o fôlego e momentos FODAMENTE SUBLIMES do início ao fim. A obra começa com um enorme pórtico para esse mundo em que a nossa relação com o tempo é totalmente diferente. Solene e dramática, essa introdução leva ao famoso tema do “pam-pam-pam”, totalmente diverso. E essa mistura de ingredientes contrastantes culmina em um desenvolvimento incrivelmente intenso e emocionante.

Chegamos ao movimento lento. Ah, o movimento lento…! Um adagio que foge de qualquer descrição. Ele contém talvez a música mais bela e comovente (e triste) jamais composta. E sua seção central, desesperada e turbulenta, acrescenta uma camada extra de patetismo e emoção a essa música que já está no extremo da sensibilidade. Olha… é teste para cardíaco!

Tem mais? Tem muito mais! Um scherzo de arrancar os telhados da casa e um finale rápido, meio cigano, que tentam tornar o ambiente mais leve. Mas a impressão dos dois movimentos iniciais permanece lá, na memória, para sempre.

Hoje não é quarta, mas vamos abrir uma exceção: o Quinteto de cordas de Schubert é DO GRANDE CARVALHO demais! Ouça, ouça, ouça!

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Villa-Lobos

“Bachianas brasileiras” no. 2

Você decide!

Não :-/

Escrevo este post ainda na quinta-feira para que você o leia na manhã de sexta. É que estarei (ops, para você que me lê, já estou. confuso escrever para o futuro!) no Rio de Janeiro – a trabalho, puxa – e não vou conseguir acompanhar o resultado da enquete e postar de acordo.

Mas, em homenagem à Cidade Maravilhosa, deixo com vocês uma obra maravilhosíssima de um compositor carioca mais maravilhoso ainda: a “Bachianas brasileiras” no. 2 de Heitor Villa-Lobos \o/

Como já comentei, as “Bachianas” são suítes nas quais Villa-Lobos engenhosamente une a linguagem barroca à música brasileira. Villa compôs 9 delas, para formações diversas, entre 1930 e 1945. A de número 2 é para orquestra reduzida, com percussão típica, e foi escrita em 1930. Ela introduz na série o esquema de quatro movimentos que seria seguido à risca até a Oitava, com exceção da curta e inusitada Sexta (para flauta e fagote).

Os movimentos das “Bachianas” explicitam a ligação entre o “bachiano” e o “brasileiro”. Nesta Segunda encontra-se o trecho isolado mais famoso de Villa-Lobos: o finale, dito “O trenzinho do caipira”, uma descrição mega exata de uma maria-fumaça passando pelo interior do Brasil.

Até esse final alegre e virtuosístico (embora docemente nostálgico), a “Bachianas” no. 2 é uma obra um tanto reflexiva. Os dois movimentos iniciais começam lentos e melancólicos e desenvolvem mais fortemente a imitação do estilo barroco. Trechos mais agitados se alternam, e daí eles trazem à tona o lado brasileiro.

Gosto de usar o segundo movimento como exemplo, dito “O canto de nossa terra” (ou “Ária”). Após uma solene introdução lenta, perfeitamente bachiana, o piano cria um ritmo sincopado sobre o qual o saxofone começa a cantar. A associação é incrível e óbvia: é um ponto de umbanda! Passei anos ouvindo a peça sem entender. Depois que saquei, a sensação só se intensificou: é lindo demais, arrepiante.

O terceiro movimento, rápido, já começa tipicamente villalobiano, com um solo incrível de… trombone! A orquestração de Villa-Lobos é endoidecedora. É legal demais, e prepara perfeitamente o terreno para o famoso “Trenzinho” e seus guinchos.

OBRIGATÓRIO! Se você, brasileiro desta varonil pátria verdeamarela, não conhece essa música de cor e salteado, shame on you! Puna-se com uma hora de concertos de Paganini e depois limpe seus ouvidos, sua mente, sua alma com este Villa-Lobos mais que sensacional. JÁ! :-D

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Britten

“Peter Grimes”, quatro interlúdios marinhos

Santa Cecília!

É o dia dos músicos e também o aniversário do principal compositor inglês do século 20, Benjamin Britten.

Britten ocupa uma posição realmente especial na música moderna. Fez música tonal, neo-romântica, em plenos anos 1940, 50, 60. OK, vários outros fizeram. No mundo anglófono tal postura era relativamente comum. Tem Vaughan-Williams, uma geração mais velho, mas posso me lembrar de Walton ou de americanos como Barber e Hanson. A questão é: ao contrário da maioria de seus contemporâneos tonais, Britten conseguiu criar e manter uma linguagem profundamente pessoal. É um feito e tanto!

O melhor dos esforços de Britten foram dedicados à ópera. Seu primeiro grande sucesso no teatro foi “Peter Grimes”, de 1945. A história da peça é a seguinte: Peter Grimes, um pescador de uma vilinha do litoral da Inglaterra, é acusado de matar seu assistente. Ele alega acidente e, apesar da má vontade dos moradores locais, é inocentado. Grimes precisa de outro auxiliar e consegue, graças a uma amiga, um garoto. No primeiro trabalho ele acaba se machucando. A população desconfia do arranhão no menino e Grimes foge com ele para o mar. Na pressa de entrar no barco, o assistente cai do penhasco e morre. Quando Grimes volta para a vila, após algum tempo, a população se dá conta da morte do garoto e obriga Grimes a fugir com seu barco, para nunca mais voltar.

É uma história sombria, que lida basicamente com o tema da proscrição: o quanto uma comunidade repressora, semi-acéfala, consegue isolar um indivíduo. (Fácil ligar essa temática à própria aflição de Britten enquanto homossexual em uma sociedade hostil.)

Britten separou quatro trechos orquestrais da ópera em uma suíte de concerto chamada “Quatro interlúdios marinhos”. Cada um dos interlúdios representa não um ponto crucial da ação, mas uma atmosfera fundamental. O primeiro retrata o amanhecer no litoral inglês – sombrio, lento, cheio de sonoridades impressionantes. O segundo é uma descrição do domingo de manhã e dos moradores da vila indo à igreja – muita inquietação escondida atrás da aparente normalidade. O terceiro é a noite no mar, solenemente construída. O quarto é menos climático. Trata-se de uma tempestade. É o ponto mais convencional da suíte, mas que a faz concluir de maneira marcante.

A música é absolutamente impressionante. Sente-se em cada nota a desolação do ambiente e também do personagem principal, oprimido pela massa. A harmonia é milagrosa – ainda ligada à tradição, mas repleta de novidades incríveis. O estilo é absolutamente único, totalmente diferente do esperado para uma obra tonal de 1945. E, acima de tudo, é impossível não se emocionar com a beleza dos sons.

Audição obrigatória! E tá fácil: é só clicar ;-)

Mendelssohn

Concerto para violino

Carvalho!

Chegou o momento que todos esperavam: quarta-feira, o dia de homenagearmos grandes, enormes, imensas, gigantescas, gargantuescas obras-primas da histórias, com o prestigiosíssimo SELO DO GRANDE CARVALHO. \o/

O selo é garantia absoluta de altas emoções. Hoje ganha o prêmio o maravilhoso Concerto para violino de Felix Mendelssohn, de 1844. Última obra orquestral do compositor, tornou-se rapidamente um dos concertos mais populares do repertório – muito merecido!

Antes mesmo de Liszt (seu Concerto para piano no. 1 é de 1849), o concerto de Mendelssohn espantosamente adianta alguns recursos típicos da forma cíclica lisztiana. Vejamos: movimentos interligados, tocados sem interrupção, alguns temas levemente derivados uns dos outros, a cadência colocada no desenvolvimento do primeiro movimento (e por isso é escrita e não deixada a cargo do solista: tem função formal)… são várias novidades.

(E Liszt ainda tinha a coragem de chamar Mendelssohn de provinciano e conservador? Qualé!)

O concerto começa de maneira bem diferente do de Beethoven: o solista atacando o tema principal, antes da orquestra. E que tema maravilhoso! O movimento evolui para a super cadência não-improvisada, que serve de ápice do desenvolvimento e que consegue confundir: onde estamos? Ficamos assim, meio perdidos, até que o tema inicial volta e demarca claramente: estamos no primeiro movimento, oras!

O allegro inicial termina e uma nota sustentada no fagote faz a ponte diretamente para o maravilhoso andante, de intenso lirismo, que caminha para uma seção central mais escura e dramática. Acaba e… o violino imediatamente começa uma espécie de cadência de transição, derivada do tema do início do concerto. Os ouvintes ficam nesse suspense por alguns segundos, até os metais anunciarem claramente o último movimento: um rondó brilhante, rápido e virtuosístico – um finale DO GRANDE CARVALHO para um concerto idem!

Outros grandes concertos para violino surgiriam depois. O de Brahms, o de Sibelius, o de Tchaikovsky. Antes dele, o gigante, o concerto de Beethoven. Mas o que permanece eternamente fresco no repertório, como se tivesse sido composto ontem mesmo, é o de Mendelssohn. Ele faz parte da seleta categoria das obras que parecem viver em eterna primavera :)

Dvorák

Sinfonia no. 8

Sinfonia de Dvorák!

Aposto que você pensou na Nona Sinfonia, a celebérrima “Do novo mundo”. É, sem dúvida, sua sinfonia mais famosa, uma obra belíssima, muito marcante pela mescla que faz dos estilos boêmio e americano.

Mas o papo hoje é outro: vamos ouvir a Oitava Sinfonia, uma obra absolutamente maravilhosa, composta alguns anos antes, em 1889, quando Dvorák ainda não havia se mudado para os Estados Unidos. Que música FODA, meus amigos! E relativamente pouco conhecida. E daí podemos botar toda a culpa na Nona – sua fama é justa, muito justa, justíssima, mas teve o efeito colateral de eclipsar as incríveis sinfonias anteriores.

Vamos reparar a injustiça, pois! Ao contrário da Nona, cheia de novidades estilísticas, e da Sétima, densa e dramática, a Oitava é a mais plenamente dvorakiana de suas sinfonias. O allegro inicial começa de cara com um tema bonito de arrancar os cabelos e continua com música meio pastoral, plena de sol e calor (mas com o obrigatório momento de tensão no desenvolvimento, claro, com o tema principal recapitulado em alta voltagem! it’s Dvorák! it’s glorious! it’s great!).

O segundo movimento não é tão lento, nem tão sombrio. É calmo, plácido, com vários momentos de certa agitação, (quase) sempre no clima alegre e otimista da sinfonia. Vich, o que é esse solo de violino? O terceiro movimento – surpresa! É uma valsa! Delicada, muito bela, meio lenta, com um trio não-contrastante. Ao evitar o scherzo em estilo beethoveniano (que se transformou no furiant tcheco em ocasiões anteriores), Dvorák aqui adere ao modelo brahmsiano de terceiro movimento moderado, ao estilo de intermezzo. Funciona maravilhosamente.

O finale é assombroso. É um tema com variações de sabor arcaizante e estranhamente moderno. Metais, tímpanos, muita mudança de clima e uma doideira geral que só encontro similar no finale da Sexta de Nielsen. É demais, e quando termina… bom, quando termina dá vontade de ouvir tudo de novo…!

[O vídeo abaixo, de Karajan em Viena, é maravilhoso musicalmente, mas traz aquela claustrofobia típica de seus filmes. Herr Dirigent gostava de retratar suas orquestras como balaios de gente amontoada? Vai entender.]

Schubert

Missa no. 6

1828!

O último ano de Franz Schubert, que nos presenteou com algumas das maiores obras-primas de todos os tempos, continua aqui na Ilha Quadrada.

Já conversamos sobre a Nona Sinfonia e sobre a Fantasia em fá menor para piano a quatro mãos. Para provar o quanto esse ano foi profícuo e variado, a obra de hoje será bastante diferente. Ouviremos a sua sexta missa, a Missa em mi bemol maior, D. 950, composta na primavera de 1828.

Missa de Schubert? Sim! Difícil associar o compositor, aquele gordito rebelde e festeiro, eternamente sifilítico, à música sacra. Pois que esta é a sua sexta missa! As quatro primeiras foram obras de juventude. A quinta é uma peça plenamente madura, de 1822. Apesar do temperamento de Schubert, não é muito difícil pensar em motivações para essas cinco missas. Dou duas: treino e a busca por uma posição oficial (emprego, pois).

Como já comentei outro dia, música sacra não é somente uma manifestação espiritual, mas também formal. A missa, como uma estrutura fechada, é excelente oportunidade para compositores testarem seus recursos e compararem-se aos demais. Por isso, à época, missas como exercícios de estudante e como base de concursos eram bastante comuns.

OK. Mas esta Missa em mi bemol, criada em uma época em que Schubert vivia um ápice de imaginação e liberdade criativa? Após peças tão revolucionárias como a Fantasia D. 940, por que uma missa assim certinha, com fugas e tudo mais? Tenho humildemente uma hipótese: a obra foi composta por necessidade de emulação. A morte de Beethoven, em 1827, inflamou a mente de Schubert. Beethoven era o maior compositor de Viena e Schubert se sentia esmagado. Esta Sexta Missa provavelmente foi uma resposta schubertiana à “Missa solene” em particular, e à obra de Beethoven em geral.

“Também mereço um lugar neste mundo”, teria dito Schubert no leito de morte, e creio que boa parte de sua produção foi mesmo derivada dessa necessidade de aprovação.

O fato é que a Sexta Missa é uma obra maravilhosa! Uma peça profundamente coral, com poucas passagens solistas, digna e linda companheira da Nona Sinfonia, com quem rivaliza em duração e grandiosidade. Quão schubertiana é essa missa? Bom, o “Kyrie” inicial é inequivocamente típico do compositor, e todo o longo trecho da crucificação dentro do “Credo” é dominado pela ambiguidade maior/menor tão cara a Schubert. Mas gosto de exemplificar o que é essa obra pelo curioso início do “Sanctus”: ao mesmo tempo inovador em sua instabilidade harmônica e convencional na fuga que logo se segue.

A bipolaridade entre o interiorizado estilo “Schubert tardio” e a forma exteriorizada da missa é justamente a tônica da obra. Seria a última e fascinante tentativa do autor de fazer uma música “para os outros”. Depois só faria música para si mesmo – e para nós, da posteridade. Sortudos somos.

Brahms

Quarteto de cordas no. 3

[Este post foi trazido a você pelo AMIGO INTERNAUTA. Ueba! E, uia, Beethoven não venceu desta vez…]

Nosso amigo Johannes Brahms foi um dos primeiros compositores a ter plena consciência do passado. Já foi dito que Brahms, na verdade, criou o próprio modelo do “compositor clássico”: o cara cujo trabalho é estudar profundamente o passado e utilizar essa herança para construir um futuro solidamente ancorado na tradição. O músico como um erudito, mais do que como um poeta – OK, vá lá: se alguém realmente inventou isso, concedemos que tenha sido mesmo Brahms.

Nem sempre Brahms revela essa faceta de cientista. Volta e meia ele se permitia soltar mais. Porém, é fácil notar que, ao se aventurar em determinados gêneros, a sombra do passado o assustava mais. Foi assim nas sinfonias. Brahms empurrou com a barriga a sua Primeira Sinfonia por décadas. O resultado é maravilhoso, mas sente-se nele a reverência com que o autor trata o gênero – a música é tudo, menos espontânea.

A mesma coisa aconteceu quando Brahms resolveu escrever quartetos de cordas. O gênero, totalmente ligado aos grandes mestres do passado, como Haydn, Mozart e Beethoven, pareceu a Brahms exigir obras de peso. Foi já bem maduro, portanto, que experimentou escrever quartetos. Começou com dois ao mesmo tempo, em 1873. Percebe-se em cada uma de suas notas o esforço do compositor para escrever algo relevante, digno. São obras difíceis, concentradas, sérias, feitas para durar, que admiramos mais do que amamos.

Peso beethoveniano tirado das costas, Brahms podia voltar a ser mais ele mesmo. Aconteceu na Segunda Sinfonia. E aconteceu no Quarteto de cordas no. 3, de 1875. Mais solto, Brahms criou – agora sim – um quarteto muito mais leve, repleto daquele viço que sempre associamos à produção de câmara brahmsiana.

Que beleza de música! A obra começa aos saltitos, já anunciando seu clima ensolarado. O segundo movimento é um andante de profunda beleza, dramático em momentos, mas nunca desolado. Em seguida, um scherzo típico de Brahms – meio enigmático, meio rústico, agitado mais no interior que no exterior. E o finale gigantesco, um conjunto delicioso de variações sobre um tema alegre, falsamente simples.

Com tais maravilhas, como desassociar o nome de Brahms da música de câmara? Deliciem-se! E bom fim-de-semana! \o/

[Abaixo, gravação histórica do fenomenal Quarteto Amadeus. Obrigado, YouTube!]

Gomes

“O guarani”, abertura

Hoje comemora-se o aniversário desta República Federativa do Brasil. Ela é novinha, tem somente 123 anos. Nasceu em 15 de novembro de 1889, batizada de República dos Estados Unidos do Brasil – uia, já fomos estadunidenses -, num golpe militar que despachou um monarca popular mas francamente desinteressado.

Antes éramos bizarramente o Império do Brasil. O país se desanexou de Portugal em 1822, num lance de gabinete, mas manteve os mesmos governantes – a família real portuguesa, agora apoiada por uma oligarquia local que temia a volta do Pacto Colonial. Criação surreal: ex-colonizados criando um novo império na América, sem mudar o comando, em uma época em que impérios já começavam a ruir na Europa.

O imperador derrubado pelos militares em 1889 era Pedro II, um sujeito até culto e bem-intencionado. Gostava de filosofia, ciência e de artes. Manteve correspondência com Richard Wagner e esteve presente ao primeiro Festival de Bayreuth. E mandou um compositor campineiro, Antônio Carlos Gomes, para a Itália estudar.

A história todo mundo conhece: nhô Tonico de Campinas chegou arrebentando, terminou o curso rapidinho e compôs a ópera “O guarani”, baseada no romance de José de Alencar, que estreou em 1870 no Scala de Milão. Foi um imenso sucesso, jamais repetido por nenhum outro compositor brasileiro na Europa. Quando o regime caiu no Brasil, Gomes preferiu ficar na Itália, para só voltar em 1896, convidado para dirigir o Conservatório de Belém. Morreu em seguida.

Gomes é provavelmente o nome maior da música brasileira do Segundo Império. Talvez único. Significativo da nossa imaturidade musical à época: a música de Gomes, a despeito de ser bem-feita e dramaticamente eficiente, de original não tem muito. É ópera italiana de apostila. Influenciou pouquíssima gente aqui no Brasil. Os românticos que lhe sucederam, como Alberto Nepomuceno, Alexandre Levy, Francisco Braga e Leopoldo Miguez, foram todos ligados ao regime republicano e à música alemã.

(Miguez chegou a compor um hino nacional para o novo governo, que o povo não gostou e que teve de se tornar o “hino da república”, até hoje ensinado nas escolas.)

O que ficou de Gomes? No repertório, pouca coisa. Um movimento de uma sonata para cordas, dito “Burrico de pau”, uma canção (“Quem sabe?”), a “Alvorada” da ópera “O escravo” e principalmente a abertura de “O guarani”, abaixo.

Oficialmente “protofonia” (AMIGO INTERNAUTA, será que existe outra abertura que tenha recebido este curioso nome? Cartas para a redação!), é um potpourri de temas da ópera. O comecinho todo brasileiro conhece, graças ao programa oficial de rádio “A voz do Brasil”. Seguem um momento lírico, outro dançante (“O guarani” é uma ópera com grande balé) e um ápice dramático. Termina da maneira convencional de sempre.

A impressão que fica é: OK, parece Suppé, parece Verdi, parece música romântica de ópera genérica. Rola um vazio. O que tem isso de especial?

Bom, julguem vocês :) E bom feriado!

Sibelius

Sinfonia no. 5

Todos morrendo de ansiedade! Quarta-feira, dia de homenagear com a comenda mais gloriosa da internet brasileira do meu Brasil-sil-sil: o SELO DO GRANDE CARVALHO. \o/

Aqui é satisfação garantida e recomendo tirar as crianças da sala, porque a obra de hoje é MUITO FODA: vamos ouvir a Sinfonia no. 5 do finlandês Jean Sibelius.

Putz, nem sei como começar. Conheci a música de Sibelius exatamente através dessa sinfonia, há uns 15 anos, e foi uma paixão arrebatadora. Por semanas, eu não conseguia ouvir outra coisa. O que eram esses sons? O que significa essa estrutura? Meu cérebro pegava fogo!

A Quinta de Sibelius é talvez sua obra mais famosa. Foi composta em 1919. Ela (e, mais radicalmente, a Quarta) se situa num momento de transição de sua obra – de um compositor nitidamente pós-romântico, de filiação tchaikovskiana evidente, para um autor mais moderno e individual. E a palavra que pode resumir bem o estilo maduro de Sibelius é: concentração.

Exemplifico. A sinfonia é dividida em três movimentos, mas essa divisão é ilusória. Olhando com lupa é relativamente simples enxergar nela movimentos ocultos, comprimidos lado-a-lado ou completamente misturados. O primeiro bloco sintetiza um primeiro movimento moderado com um scherzo mais agitado. O segundo bloco é o movimento lento, um tema com variações. E o terceiro bloco é um amálgama de finale agitado com finale majestoso (às vezes sobrepostos). Tudo concentrado, realmente apertadinho, com pouquíssimos temas que geram uns aos outros, em menos de 30 minutos de música. Tudo é concentração e economia de meios. (Sibelius iria além em suas obras posteriores!)

ARREPIO TOTAL: a sinfonia se inicia com as trompas, que clareiam o ambiente como se fosse o sol se esgueirando entre as nuvens. Em seguida, temas bem básicos começam a se espalhar, a se misturar, a crescer de maneira incrivelmente orgânica. É música com muitas vírgulas e pouquíssimos pontos finais. Somos levados por esse fluxo e nem percebemos que o clima não parou de mudar desde o início. Quando nos damos conta, já estamos na transição MAIS FODA DA HISTÓRIA, que nos leva do andamento moderado para o scherzo, mais rítmico, de contornos mais definidos. A gente não quer, mas o movimento termina. E que término, meus amigos. ARREPIO DUPLO!

O miolo da sinfonia é um conjunto de variações sobre um tema de encantadora simplicidade. É um show de invenção harmônica, mas principalmente uma manifestação puríssima de beleza. Putz. Em seguida, com pausa mínima, começa o finale, esse bloco extraordinário que consegue misturar música rápida e música lenta sem ser exatamente nenhuma das duas coisas. Não consigo explicar bem: ouça e descubra!

Ah. Cuidado com o finalzinho – nele tem pegadinha do Sibelius. RÁ!

Gente, é incrível demais. Nem ouse não clicar no play. A Quinta de Sibelius é demais DO GRANDE CARVALHO!

[O vídeo abaixo – extraordinário – traz um dos grandes especialistas em Sibelius, seu conterrâneo Jukka-Pekka Saraste, em concerto na Noruega.]