Martinu

Concerto para piano no. 4, “Encantações”

Já comentei aqui: a música do tcheco Bohuslav Martinu é uma das minhas grandes paixões. Até que ela entrou na minha vida relativamente tarde – escutei uma obra de Martinu pela primeira vez há seis anos. Era o Concerto para oboé. A segunda obra que conheci foi justamente a peça que iremos comentar hoje: o Concerto para piano no. 4, dito “Encantações”.

Martinu morreu em 1959. É, portanto, um contemporâneo mais ou menos exato de Bartók ou Poulenc. O que fico sempre me perguntando: por que um compositor tão criativo, com um estilo tão distintivo, não é mais reconhecido? Por que uma obra-prima como o Concerto para piano no. 4 não é mais ouvida?

Acho que a resposta está na própria posição de Martinu na “política musical” do século 20. O nosso século (sou de 1978, posso chamar o século 20 de “nosso”?) foi uma época bem ingrata para os criadores musicais. A revolução trazida principalmente pela chamada “segunda escola vienense” – leia-se Schoenberg e pupilos – colocou vários compositores em situação delicada. Ou se definiam fortemente nessa vanguarda, ou eram irremediavelmente taxados de anacrônicos.

Um dos poucos que conseguiram transitar bem, fora de qualquer corrente, foi Bartók, para mim o grande ponto de equilíbrio da música do século 20. Stravinsky também navegou nessas águas como quis, criando seus próprios caminhos. Quando desejou ser neoclássico, vestir a “peruca do papai Bach” (como satirizou Schoenberg), o fez; quando achou interessante ser serialista, mandou ver nos doze tons.

Mas a maioria dos compositores se viu esmagada de alguma maneira. Martinu foi um desses. Mudou diversas vezes de linguagem, oscilando entre o francamente irônico (ao modo dos “Six” parisienses), o secamente mecânico (oppa neoclassical gangnam style) e o abertamente romântico. Onde encaixar o cara? Nesse limbo cruel, Martinu foi esquecido. Ô dó.

Supresa: após sua fase americana, ele criou um estilo completamente novo E maravilhoso! Anotem aí: este Concerto no. 4, a Sinfonia no. 6, as suítes sinfônicas “Afrescos de Piero della Francesca”, “Parábolas” e “Estampas”, o Concerto para piano no. 5… obras incríveis, muito pessoais, difíceis de serem classificadas. Devem ser ouvidas!

O Concerto no. 4 é dividido em dois movimentos, ambos de feitura muito livre. Eles misturam diversos tipos de música. Não existe claramente um movimento lento ou agitado. Os temas surgem e vão embora, os climas vão se alternando. Alguns motivos essenciais se repetem (notem o final), mas é raro – em geral, a música é um fluxo contínuo e mutante. A orquestração é inusitada, repleta de combinações timbrísticas sensacionais. O que é esse diálogo com a harpa no segundo movimento? E mesmo o comecinho da obra?

É tanta novidade, é tanta maravilha – e você não conhece ainda? CLICA AÍ NO PLAY. Depois me agradeça nos comentários ;-)

Schubert

Fantasia para piano a quatro mãos, em fá menor

Bem-vindos a 1828.

1828? Sim! Hoje continua (ou começa?) a nossa série dedicada ao último ano de vida de Franz Schubert – uma época complicada para ele, mas que nos gerou obras-primas como nenhuma outra. Virou lenda.

Na semana passada comentamos sobre a Sinfonia no. 9, a “Grande”, que por muito tempo imaginava-se que era do último ano de Schubert. Não, foi composta um pouco antes. Hoje vamos falar de uma obra criada em janeiro de 1828: a Fantasia em fá menor para piano a quatro mãos.

Como já disse uma vez aqui nesta Ilha, a prática de piano a quatro mãos era comum no século 19. Mais mãos, mais “orquestral” e rica – harmonicamente, contrapontisticamente – fica a música. Além disso, é uma atividade lúdica, divertida, para os intérpretes. Schubert era conhecido por participar de saraus em que grandes grupos faziam música e brincavam juntos – as “schubertíadas”. Por isso a relativamente grande quantidade de música para piano a quatro mãos que compôs.

Não só por isso! Tocar piano a dois é algo que exige certa intimidade. É sentar bem juntinho, coloca mão pra lá, joga mão pra cá, um monte de esbarrões… E Schubert dava aulas para uma moça, a condessa Karoline Esterházy, por quem estava apaixonado. Compôs a Fantasia pensando nela. Dedicou a peça a ela. Hmmmmmm. ;-)

Segundas intenções à parte, o fato é que a Fantasia é uma obra impressionante. Vejam o título – “fantasia” – indicando uma peça de forma mais livre. Mas calma lá. Ela é dividida em quatro movimentos, exatamente como uma sonata, tocados sem interrupção e compartilhando temas. (Esquema bem parecido com o da Fantasia “Wanderer”, obra anterior para piano solo.) É diferente, mas alguns anos depois nenhum compositor teria medo de chamar peça assim de “sonata” – Liszt que o diga!

A Fantasia começa com um tema absolutamente memorável, que ressurgirá no finale, tanto recapitulado literalmente quanto servindo de base para uma imensa fuga. Após a fuga, um final inesperado – sombrio, meio estranho, simplesmente fantástico.

Desnecessário dizer que esta Fantasia, publicada postumamente, suscitou grande e duradoura admiração. Segue conquistando o coração dos ouvintes e músicos. E Schubert, que teria só alguns meses de vida, faria mais, muito mais. Curta a Fantasia e… semana que vem nossa saga continua :)

Smetana

Quarteto de cordas no. 1, “Da minha vida”

[Este post foi trazido a você pelo AMIGO INTERNAUTA. Cheers!]

Conhecemos Bedrich Smetana principalmente pelo monumental ciclo de poemas sinfônicos “Minha pátria” e por sua ópera nacionalista “A noiva vendida”. Mas a produção de Smetana tem muitas riquezas a nos oferecer.

Uma das mais preciosas é o seu Quarteto de cordas no. 1, dito “Da minha vida”. Aliás, que vida a de Smetana! Nascido numa parte da Boêmia falante de alemão (época do Império Austro-Húngaro), engajou-se na “primavera dos povos” de 1848, como revolucionário. Casou-se, teve quatro filhos, três deles mortos na infância. Foi trabalhar na Suécia. Arranjou uma aluna-amante sueca. A esposa morreu em seguida. Voltou para a Boêmia, foi morar com o irmão e casou-se com a concunhada, dezesseis anos mais nova. Fundou o primeiro teatro de ópera em língua tcheca, que teve de aprender na marra, a duras penas. Tornou-se o grande líder musical nacionalista tcheco. Famoso e influente, ficou surdo. Compôs o ciclo “Minha pátria” praticamente todo sem ouvir-lhe um só som. Morreu meio louco, muito doente e aclamado como o pai da música tcheca.

Ufa, ufa. Agora tome fôlego :)

Este Quarteto no. 1 é de 1876. Smetana morreu em 1884. É, portanto, uma autobiografia parcial – ele ainda faria muita coisa importante. Mas este ano representa um ponto importante da vida do compositor: foi quando ficou claro que sua surdez era grave e definitiva. Daí a necessidade de um testamento – o Quarteto “Da minha vida” é uma espécie de “Heiligenstadt” posto em música.

A obra começa de maneira dramática – a exposição de seu ideais de vida e arte -, continua feliz e vigorosa – uma vida afetiva agitada – e atinge um ápice de doçura e profundidade – a paz da maturidade.

Mas o ponto culminante do quarteto todo está mesmo no final do último movimento. Até então uma dança vigorosa – o bem-sucedido esforço de Smetana em busca de uma arte nacional tcheca -, ele fica sombrio de repente. Uma nota estridente e sustentada passa a dominar a atmosfera – é o zumbido de seu ouvido doente. O tema do primeiro movimento retorna – a arte como salvação – e o quarteto termina resignado. É arrasador e emocionante, muito sincero e, acima de tudo, muito humano.

Fiquem com o testemunho extraordinário desse maravilhoso, e pouco reconhecido, compositor. E bom fim-de-semana! \o/

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Ravel

“A valsa”

A hoje inofensiva valsa já foi considerada inebriante, capaz de fazer “bons cidadãos” cometerem atos ofensivos aos “costumes”. Acho que a culpa era dos rodopios. Faça o teste aí: saia do Facebook por um instante e dê umas giradas. (OK, não tente se acabou de comer.) Surge uma zonzeira mesmo.

Tergiverso. O fato é que a valsa, inicialmente coisa de pobre lascivo, no final do século 19 já tinha se tornado o símbolo perfeito de um certo status quo – a aristocracia centro-europeia. As valsas de Johann Strauss Jr e de Émile Waldteufel eram o próprio bom-mocismo em forma de música.

O tempo passou, o século virou, a guerra veio, e a aristocracia já tinha ido pro buraco. Com ela, a valsa. Tornou-se decadente, deprimente, irremediavelmente cafona, uma sombra de um mundo que já não existia mais.

Esse é justamente o plot de uma das obras orquestrais mais famosas do francês Maurice Ravel, “A valsa”, de 1920. É uma grande valsa sinfônica. Ela começa lentamente, atinge um ápice e termina em grande e abrupto caos. A imagem oficial é de um salão de baile visto acima das nuvens, que vamos atravessando até vermos de perto.

Legal. Mas a minha visão é mais psicodélica. “A valsa” é como se Strauss Jr tivesse tomado mescalina – a obra começa com torpor, continua em euforia e termina em terror. É uma valsa lisérgica, distorcida e apocalíptica, como uma viagem ruim.

Sensacional, totalmente anticonvencional e digno retrato de uma belle époque que, em 1920 – a Primeira Guerra terminara há pouco – estava se tornando cada vez mais distante.

Vamos! Rodopiem!

Stravinsky

“A sagração da primavera”

Hoje é quarta, o dia mais esperado da semana. Sabem por quê? Porque é dia de entregar o SELO DE EXCELÊNCIA DO GRANDE CARVALHO, a maior honraria da música clássica mundial, quiçá universal! (Só perdendo para o Prêmio Bravo, é claro. Pun intended.)

Atenção para a reciclagem de texto:

Anteontem morreu outro importante compositor contemporâneo, o americano Elliott Carter. Carter foi um prodígio de produtividade e longevidade: viveu 103 anos, compondo até seus últimos dias. Sua última obra é de agosto deste ano.

Isso já falamos ontem. O que não comentamos é que a obra que mais influenciou Elliott Carter, que definiu sua carreira como compositor, é justamente a agraciada de hoje: “A sagração da primavera”, de Igor Stravinsky.

Gentes, vejam só: a obra, decisiva para os rumos da música do século 20, moderna e chocante até para os ouvidos atuais, é uma velhinha de 99 anos. Grandes obras-primas, música digna do GRANDE CARVALHO, é assim mesmo: fresca e atual para sempre.

Stravinsky teve muito de sua carreira ligada a uma companha de dança, os Balés Russos, empresa capitaneada por um dos maiores mecenas da história, Sergei Diaghilev. O jovem Stravinsky ainda era um compositor obscuro, aluno de Rimsky-Korsakov, quando Diaghilev o chamou – primeiro para um arranjo de Chopin, depois para o que viria a ser o balé “O pássaro de fogo”, sua primeira obra-prima.

Ainda de linguagem romântica, bem korsakoviana, “O pássaro de fogo” foi um sucesso. O que o público parisiense não esperava era que, no ano seguinte, Stravinsky e Diaghilev apresentassem uma obra tão diferente como “Petrushka”. QUE CHOQUE! “Petrushka” é uma verdadeira festa de colagens, citações, ritmos, cores… moderno pacas! E também foi um sucesso.

Em 1913, a dupla apavorou de novo, com “A sagração da primavera”. E não foi um sucesso – foi um escândalo completo. Na estreia, um dos eventos mais famosos da história, espectadores se agrediam com gritos, ofensas e guardachuvadas. Entre vaias e assobios, ninguém ouviu a música. Uns meses depois, em forma de concerto, a “Sagração” foi um putz êxito. (Cá entre nós, ela se consolidou nesse formato – encenações completas são relativamente raras.)

O que ninguém na tumultuada estreia parisiense ouviu: a música é uma revolução total. É o primitivo e o instinto posto em música, como nunca tinha sido feito antes. Difícil descrever. Em mais ou menos trinta minutos – que passam voando -, nossos ouvidos são constantemente desafiados por combinações rítmicas, harmônicas e tímbricas absolutamente inéditas e MUITO FODAS. É aterrorizante, é excitante, é sensorialmente maravilhoso, é intelectualmente instigante. E a mocinha morre no final. (Ops. Spoiler.)

Não à toa a “Sagração” influenciou tremendamente toda a geração que se seguiu. Além de Carter, autores como Villa-Lobos ficaram entusiasmados pela obra de Stravinsky (“Rudepoema” que o diga). O interessante é que Stravinsky não quis usar novamente o molde. OK, é possível escutar algo da “Sagração” em “As bodas”, por exemplo. Mas, essencialmente, essa Rússia primitiva que ela evoca não voltaria mais. A “Sagração” foi um fenômeno totalmente definidor – mas isolado.

Eu tenho, cá pra mim, que “A sagração da primavera” é a maior OBRA DE ARTE do século 20. Não obra musical. Obra de arte, no geral. Não tem Picasso ou Mann que rivalize.

Acho, por isso, que TODO SER HUMANO deveria conhecer essa obra, e bem. Tinha que fazer parte dos direitos básicos do cidadão. Tipo saber ler e escrever. Fazer contas. E conhecer “A sagração da primavera”. Não necessariamente nessa ordem :)

Chopin

Sonata para piano no. 2

Ontem morreu outro importante compositor contemporâneo, o americano Elliott Carter. Carter foi um prodígio de produtividade e longevidade: viveu 103 anos, compondo até seus últimos dias. Sua última obra é de agosto deste ano.

Ao contrário de Hans Werner Henze, preciso dizer que nunca entendi NEM UM POUCO a música de Carter. De linhagem obviamente pós-weberniana, sua linguagem ainda me é completamente incompreensível. Quem sabe um dia?

Para homenageá-lo, algo “conservador” mas curiosamente moderno: a Sonata no. 2 de Frédéric Chopin, célebre por seu movimento lento, uma marcha fúnebre.

Chopin, aquele dos açucarados “Noturnos”, moderno? SIM! A obra é de 1839. A estrutura, em quatro movimentos, parece convencional. Mas dá só uma olhada de perto. O primeiro, após uma introdução lenta, é agitado e turbulento, com um “demonismo” pouco ligado ao nome de Chopin. OK. O segundo é um scherzo relativamente pesado, que só relaxa com um longuíssimo trio, de melancolia tipicamente chopiniana. OK.

O scherzo termina meio interrogativo, já encaminhando o clima do terceiro movimento, bem diferente: uma marcha fúnebre, obviamente sombria, porém seca, praticamente livre de sentimentalismos (à parte a seção central, lírica e toda “embelezada”). Hmm, interessante, já começaram a pipocar pontos de interrogação nas nossas mentes. Mas não é só isso: o enigma continua. Após a desolação agreste da marcha fúnebre, um quarto movimento curtíssimo, mega rápido, esquisito, anguloso, que parece não querer dizer nada. É assim, pá, pum, acabou. Uau!

Cacete, o que quis Chopin com esse finale? Os pontos de interrogação da marcha fúnebre se multiplicam. A impressão final da sonata é mais que desoladora, é devastadora. A marcha fúnebre, como comumente no romantismo, deveria ser resolvida por movimentos rápidos, mais afirmativos (vide o Quinteto para piano de Schumann). Não, Chopin a continua com um movimento que só reforça o sentimento de estranheza. Para a morte, não há solução.

Isso é moderno. Será que Carter gostava de Chopin?

Schubert

Sinfonia no. 9, “Grande”

Olá! Hoje é segunda e segunda é dia de série aqui na Ilha Quadrada. Na semana passada encerramos a série dedicada ao desenvolvimento da sinfonia romântica francesa. Foi uma longa jornada, de 1855 a 1895 – quarenta anos e sete compositores diferentes.

Hoje vamos iniciar uma nova série, dedicada a outra jornada, tão profunda quanto a francesa, mas realizada em poucos meses por apenas um compositor. Bem-vindos a “1828: o último ano de Franz Schubert”.

Imbuído por um espírito wagneriano, dividi a série em quatro capítulos e um texto preliminar. Então são 5 capítulos? Sim, mas também são 4, pois o primeiro é apenas um início para os demais, que aí sim são capítulos de verdade. Entendeu? Nem eu :)

Chega de lero-lero. Vamos a 1828. Franz Schubert tinha apenas 31 anos e já estava em seu último ano de vida. Solitário, doente, apenas começando a ter sua já monumental obra reconhecida pelo público, Schubert não era um jovem exatamente feliz. Mesmo melancólico, de humor oscilante, passava por um período incrivelmente criativo. E compôs uma série de obras-primas impressionantes, que tornaram 1828 um ano de lenda para a história da música.

Entre essas obras, a sua última sinfonia, a Nona, em dó maior, conhecida como “Grande”.

PARA PARA PARA!

Será mesmo? Desde que o manuscrito da obra fora apresentado por Ferdinand Schubert, irmão do compositor, a Robert Schumann em 1838, sempre se acreditou que a “Grande” teria sido composta no último ano de seu autor. Mas, de lá pra cá, diversos estudos têm apontado que a sinfonia foi de fato escrita antes, em 1825.

Convenhamos: difícil não se sentir impelido a incluir a “Grande” como uma das obras-primas de 1828. Catalogada pelo musicólogo Otto Erich Deutsche como D.944 (a lista cronológica termina no 965), obra de fôlego, de “durações celestiais” (como descrita por Schumann), esquecida por uma década… Então convencionamos assim: é de 25, mas membro honorário da classe de 28 :)

A Nona Sinfonia de Schubert é uma obra fascinante. Ganhou o apelido de “Grande” para diferenciá-la da Sexta Sinfonia, de 1818, também em dó maior. Mas é grande mesmo: grande em duração, grande em seu escopo monumental, grande em suas ideias.

Ela começa com um tema lento nas trompas que já introduz o ouvinte a um mundo onde a noção de tempo é diferente. Será assim até o final da obra. Em seguida, um primeiro movimento no qual acontece de tudo um pouco. E depois dessa linda jornada, bem no final, olha lá o tema das trompas fechando o ciclo! Sensacional!

A “Grande” não tem exatamente um movimento lento. O segundo andamento, dito Andante com moto, é na verdade um intermezzo de vastas dimensões e clima perpetuamente inquieto. Esse clima é transmitido a um ansioso scherzo, cujo trio é uma espécie de cantilena de doçura infinita. Que maravilha! O Finale vai além no motorismo e na ansiedade acumulada nos movimentos anteriores, e termina a sinfonia com adequada monumentalidade.

Esta Nona é sem dúvida a maior sinfonia de Schubert, apesar da célebre “Inacabada”, e também das grandes sinfonias da história. Schumann ficou louco (ops) quando a conheceu. Convenceu Mendelssohn a estreá-la, finalmente, em 1839, e se sentiu estimulado a compor suas próprias sinfonias (a Primeira, “Primavera”, é de 1841). Desde então, de obra esquecida, a “Grande” nunca mais saiu do repertório. Viva! \o/

Fiquem com ela. E preparem-se: na semana que vem, vamos direto a 1828!

(Hein, hein? Repararam que neste fim-de-semana não tivemos atualização? Anotem aí: Ilha Quadrada, diariamente, de segunda a sexta!)

Mozart

Requiem

[Post trazido pelo AMIGO INTERNAUTA. E não é Beethoven! Uia!]

Não sou um cara religioso, muito pelo contrário. Mas gosto muito de música sacra. Acho que isso tem um motivo. Peguem travesseiros, mantas, fiquem confortáveis, pois vou começar a viajar na maionese. :-P

Por temperamento, sou formalista. Não, não sou um sujeito formal – prezados leitores, por obséquio, por meio desta, atenciosamente. Vocês sabem que não :) Sou formalista – isto é, gosto de forma, de estrutura, de ver COMO as coisas são feitas e de bolar MANEIRAS de se atingir certos objetivos. Um cara que gosta mais do caminho do que do destino, digamos assim.

Daí vem minha adoração pelo gênero sinfônico, essencialmente formalista e abstrato. Cada obra nesse mundo de música absoluta é uma batalha entre a tradição estabelecida e a inovação. O fascinante é que as revoluções que alargam fronteiras também as reforçam. Tipo: toda vez que algum compositor transforma a sinfonia, por exemplo, ajuda a estabelecer ainda mais o formato básico, essencial, consolidado pelo pessoal de Mannheim.

Em música litúrgica é exatamente igual. Tentem me convencer do contrário, mas para mim qualquer rito é pura forma, válida em si mesma. Por exemplo: uma missa, antes de tudo, é um MODO de manifestar tais e tais conceitos. O mais belo é ver o que cada artista pôde fazer a partir desse molde comum, que nos permite direta comparação.

As obras mencionadas no nosso VOCÊ DECIDE formam uma espécie de panorama histórico da missa de requiem posta em música. Ouça todas e veja quão lindo é perceber a evolução!

A forma é basicamente a seguinte: das partes do “próprio” da missa (Kyrie, Gloria, Credo, Sanctus, Benedictus e Agnus Dei), permanecem o Kyrie, o Sanctus, o Benedictus e o Agnus Dei. A elas são acrescentadas partes específicas do rito dos mortos: uma introdução que deseja paz aos mortos (Requiem), uma descrição do juízo final (Dies irae) e mais pedidos de repouso eterno (o Offertorium e o Communio). Há partes adicionais opcionais, mas o núcleo é esse.

O Requiem e o Kyrie normalmente são lentos, suplicantes. Em seguida, o Dies irae, agitado, turbulento. Depois, partes de adoração, com tom mais solene e grandioso (fugas!), como o Offertorium e o núcleo Sanctus+Benedictus. A missa costumeiramente termina em tom mais doce, de agradecimento, no Agnus dei e no Communio. Pense numa sinfonia de quatro movimentos, em arco: lento, muito rápido, rápido, moderado. É (bem) mais ou menos isso ;-)

Foi campeã da nossa enquete talvez a missa dos mortos mais famosa da história: o Requiem de Mozart. A história todo mundo conhece: encomendado em 1791 por um mecenas anônimo (depois descoberto), sua composição foi interrompida pela morte do próprio compositor. A obra foi completada principalmente por um aluno de Mozart, Franz Xaver Süssmayr, que orquestrou os esboços deixados pelo mestre e compôs inteiramente o Sanctus, o Benedictus e o Agnus Dei.

Claro que uma missa dos mortos póstuma, inacabada, alimentou intensamente a imaginação da posteridade. O quanto restou de Mozart e o quanto temos de Süssmayr em cada uma das partes do Requiem é motivo de acalorados debates desde 1791. Além da compleição “oficial”, há dezenas de outras (inclusive uma criada no Brasil por Sigismund Neukomm). Alguns acham o trabalho de Süssmayr indigno de Mozart. Eu conheço alguns dos finais alternativos e, olha, nunca me acrescentaram grande coisa. Fico com a tradição.

Se a primeira metade do Requiem é mais interessante que a segunda? Claro que é! Não culpem Süssmayr: vejam só que baita música Mozart escreveu! O comecinho, o Kyrie, o Dies irae, o Tuba mirum, o Lacrimosa… partes MEGA FODAS, pra lá de emocionantes, difíceis de serem continuadas à altura por qualquer outro compositor que não o próprio Mozart.

Bom, julguem vocês mesmos :) E bom feriado a todos!

Mozart

Quarteto para piano no. 1

Eu iria começar o texto com um “às vezes injustiças são cometidas e reparadas só postumamente”, mas suspirei: “às vezes?”.

O objetivo era introduzir a lamentável historinha de uma das mais impressionantes obras de câmara de Wolfgang Amadeus Mozart, o seu Quarteto para piano e cordas no. 1, em sol menor.

Foi assim: em 1785 um editor chamado Hoffmeister chamou Mozart e pediu a ele três quartetos para piano. Quando recebeu o primeiro, ficou assustado. Obra de execução assim tão difícil não iria vender nada! Pagou o prometido (pelo menos) e dispensou a entrega das demais peças.

“Intãotá”, deve ter pensado Mozart. Xingaria muito no Twitter, se houvesse.

Ouvindo o quarteto hoje, só nos resta lamentar a parvoíce extrema de Hoffmeister. Que anta! Sorte nossa que Mozart deu de ombros e compôs outro quarteto mesmo assim, mais ou menos um ano depois.

Caraca! O Quarteto no. 1 é das obras-primas supremas do compositor. Vejam lá a tonalidade, que não deixa enganar: sol menor. Se Mozart queria expressar a sua famosa angústia/agitação/ansiedade, era em sol menor que o faria, sempre com resultados espetaculares. Ouça o primeiro movimento e saque a seriedade e dramaticidade da expressão. O que é esse desenvolvimento? E a reexposição? PUTZ! Dá licença que vou lá no canto me matar só um pouquinho…!

A obra se encaminha para um andante cuja maravilha só poderia sair mesmo da pena de Mozart. O quarteto, tipicamente para Mozart, é apenas em três movimentos. Termina com um rondó que só – só? – atinge um objetivo: nos lavar a alma de todas as injustiças do universo.

Poucos Mozarts e muitos Hoffmeisters, os males do mundo são.

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