Martinu

Sinfonia no. 6, “Fantasias sinfônicas”

Tem horas em que é simplesmente impossível seguir a nossa programação normal. Uma fixação por uma obra que insiste em não sair dos nossos ouvidos pode arruinar todo um planejamento. É o caso hoje. Eu não queria mostrar essa peça já, mas não resisto. Simplesmente porque não paro de ouvir essa música! Ela é tão sensacional, tão maravilhosa, que simplesmente me pegou de refém e me obrigou a mudar o que eu havia pensado antes.

Trata-se da Sexta Sinfonia de Bohuslav Martinu, dita “Fantasias sinfônicas”. AMO essa música há muitos anos, mas na noite desta quarta resolvi ouvi-la e – pronto! – ela grudou novamente na minha cabeça.

Já comentei aqui sobre Martinu e seu último período estilístico, criado na década de 1950. É um dos estilos mais encantadores e pessoais de toda a história da música. As relativamente poucas obras (para Martinu, um autor prolífico) compostas nessa linguagem são todas apaixonantes: os Concertos para piano nos. 4 (que já apareceu nesta Ilha) e 5, os “Afrescos de Piero della Francesca”, as “Estampas”, as “Parábolas” e esta Sinfonia no. 6, de 1953.

O nome escolhido por Martinu para a sinfonia entrega muito de como a obra é estruturada: “Fantasias sinfônicas”. De fato, de sinfonia a obra tem muito pouco. São três movimentos semi-independentes e de feição extremamente livre. Martinu mesmo disse que a obra não tinha forma e que não sabia bem o que a mantinha coesa. É um feito incrível, pois essa união de coerência total com liberdade total é transparente para o ouvinte.

O resultado é uma música que parece uma aventura. Esqueça a divisão allegro-movimento lento-scherzo-finale. O primeiro dos três movimentos começa com uma espécie de ruído, de estática, que aos poucos vai se solidificando em um discurso mais discernível. O segundo movimento também começa com texturas amorfas, mas evolui rapidamente para o ponto máximo de agitação da obra – uma espécie de caos que termina meio abruptamente. É o meu predileto.

O último andamento é o mais lento de todos. Ele começa não com um murmúrio, como os anteriores, mas com algo próximo a um hino. O clima reflexivo é o predominante, embora haja uma seção central bastante ansiosa. A obra termina suavemente, de maneira muito tocante. Há diversas passagens de arrancar lágrimas. HAJA CORAÇÃO, AMIGO!

Olha, a Sexta de Martinu é uma das glórias esquecidas da música do século 20. Faz o seguinte, irmão: ouça e MUDE SUA VIDA!

Mozart

Concerto para piano no. 24

Já comentei aqui: a minha introdução ao mundo da música foi feito através dos concertos para piano e orquestra de Mozart. Comecei pelos mais famosos – o 21 e o 23 – e logo cheguei a outras maravilhas, como o 9, o 14, o 20, o 25. Claro que, enquanto isso, fui viajando em outras terras musicais: Beethoven, Bach, Schumann, Brahms, Stravinsky. Isso foi há 26 anos!

Pois que só fui conhecer aquele que é hoje meu concerto mozartiano favorito muito tempo depois: o Concerto para piano no. 24. Confesso que eu já estava um pouco distante de Mozart. A música da segunda metade do século 19 e do início do século 20 praticamente monopolizavam minha atenção. Mas quando ouvi o 24, UAU, deu um estalão gigante no meu cérebro. Como fiquei tanto tempo sem conhecer essa música?

Talvez eu seja enviesado pela minha própria jornada, mas acho sinceramente que os concertos para piano de Mozart são o mais perfeito conjunto de concertos da história. Nem Beethoven, nem Brahms lhe rivalizam. Mozart aqui obtém o mais notável equilíbrio entre intimismo e cerimônia pública, entre poesia e virtuosismo, entre a miniatura e a grande forma. O mais incrível é que Mozart refez a mágica 27 vezes!

O Concerto no. 24 é em dó menor e é bem interessante lembrar que, dos 27 concertos, somente dois são em tom menor (este e o 20, em ré menor). Ao contrário do seu antecessor, tumultuado e ansioso, quase romântico, o 24 é mais sóbrio e contido. Continua escuro, meio sombrio, mas muito mais patético que dramático.

O melhor exemplo é o iniciozinho da obra, com o tema principal exposto sutilmente, numa seriedade absoluta. O movimento se encaminha para um desenvolvimento de arrepiar e, após a habitual cadência, uma novidade: o piano retorna para fechar o movimento à meia-voz, sem nenhuma pompa e com todo o mistério.

Após um maravilhoso movimento lento em tom maior, o sombrio dó menor retorna para o finale, um tema e variações bastante direto ao assunto e todo cheio de pontos de escuridão. O Mozart alegre e festeiro dos habituais rondós que fecham seus concertos aparece vez ou outra, mas o clima geral é de seriedade e certa agitação contida. E o final do concerto, absolutamente impressionante, reforça isso.

Chega de papo! O Concerto para piano no. 24 de Mozart é uma obra-prima maiúscula, um gigante entre gigantes, e mais do que qualquer outra merece a honraria do SELO DE EXCELÊNCIA DO GRANDE CARVALHO. Nem bobeie – clique logo!

Nielsen

Sinfonia no. 3, “Sinfonia espansiva”

Ah, sinfonias e seus apelidos! Desde Haydn e os pioneiros de Mannheim, percebeu-se que nomes como “Sinfonia em dó maior” eram confusos (afinal, só temos vinte e quatro tons) e títulos como “Sinfonia no. 2” eram meio secos e aborrecidos. Questão de marketing, sabe? ;-)

Rapidamente obras abstratas começaram a receber nomes curiosos, às vezes não planejados por seus autores. De Haydn me vêm à mente apelidos como “O filósofo”, “O distraído”, “O urso”, “A galinha” (!), “O relógio”… Mozart tem a sua “Júpiter” (aposto que ele preferiria que a obra fosse conhecida como Sinfonia no. 41, “FODONA”). Beethoven imortalizou o termo “Eroica” usado para nomear sua terceira sinfonia. Mendelssohn inventou o gênero da sinfonia turística, com a “Escocesa” e a “Italiana” (Schumann e Tchaikovsky pelo jeito eram mais adeptos do turismo regional, com suas “Renana” e “Pequena Rússia”).

Alguns começaram a seguir o exemplo de Beethoven e dar nomes em língua estrangeira. Italiano era a escolha óbvia, mas francês e latim também tinham seu charme. Gosto especialmente dos apelidos das sinfonias do sueco Franz Berwald, todos em francês: “Sinfonie sérieuse”, “Sinfonie capricieuse”, “Sinfonie singulière” e “Sinfonie naïve”. Très chic!

Mas sabe quem era o mestre dos apelidos? Nosso amigo careteiro, Carl Nielsen. De suas seis espetaculares sinfonias, quatro têm títulos. Um é curioso mas reflete exatamente o “programa” da obra: “Os quatro temperamentos”. Os outros três são total mistério! Saca só a chinfra: Sinfonia no. 4, “A inextinguível”. Sinfonia no. 6, “Sinfonia semplice”. Bom, perto da inextinguibilidade, simplicidade parece um conceito de maior compreensibilidade. Nielsen seria uma inflência para Tite?

Toda essa ENROLAÇÃO só para chegarmos à obra de hoje, uma das minhas favoritas do compositor dinamarquês: a sua Terceira Sinfonia, dita “Sinfonia espansiva” (com “s” porque é em italiano). O que esse nome significa ninguém sabe. O que ela expande? A percepção? A consciência? Nielsen usava psicotrópicos? Mistério!

O fato é que a música é maravilhosa do início ao fim. O primeiro movimento começa com um ataque de metralhadora (não bem isso, mas tipo isso) e continua com uma espécie de valsa mega gigante que termina em suspenso – uma cadência mamute que passa a sensação clara de que falta a última nota! Ufa ufa ufa!

O coração do ouvinte está acelerado quando começa o segundo movimento, uma paisagem pastoral com dois convidados especiais: soprano e baixo, que cantam somente melismas. (Eles só participam nesses minutos, depois vão embora.) O efeito é incrível. A música parece realmente um retorno no tempo, uma viagem nostálgica à infância.

Depois de um scherzo moderado, muito original, o finale surge, quase sem pausa, com uma melodia em estilo de hino, tocada a plenos pulmões, com toda a simplicidade do mundo. E o movimento se encaminha grandiosamente para um final emocionante.

Essa é a “Sinfonia espansiva” – um apelido bizarro para uma obra otimista e cativante, cheia de surpresas e detalhes preciosos. Não conhece? Taí a oportunidade de mudar a sua vida: clica aí embaixo ;-)

Weber

“O franco-atirador”

Boa semana a todos! E segunda-feira é dia de série aqui na Ilha Quadrada. Na semana passada terminou a série “Vareia!”, que abrodou o tema um tanto sério dos conjuntos de variações. Hoje começa um especial bastante diferente: “Mágico, fantástico, lendário” sobre a junção da música com o sobrenatural e o misterioso. Serão seis capítulos de outro mundo! BWAHAHAHA!

Pois não é que a temática fantástica é um pano de fundo relativamente recente para a música? A música escrita surgiu na Alta Idade Média e suas duas manifestações principais era a liturgia e o travadorismo: daí que os temas mais recorrentes eram religiosos ou aventurescos. O Renascentismo e o Barroco acrescentam a isso o imaginário mitológico e o Classicismo é até mais sóbrio em sua busca de racionalidade.

Foi, portanto, somente no século 19 que o fantástico e o sobrenatural, típicos do folclore, ganhou espaço na chamada “alta arte”. Até que Mozart, com sua ópera “A flauta mágica”, já havia flertado com a temática de bruxas, dragões e provas místicas, mas ainda foi um passo relativamente tímido. A primeira obra musical relevante mais profundamente ligada a esse tipo de fantasia é mesmo a ópera “O franco-atirador”, de Carl Maria von Weber, de 1821. A obra de Weber literalmente enfeitiçou o público e o ambiente mágico por ela evocado tornou-se uma constante do romantismo musical desde então.

Como a maior parte das obras fantásticas românticas, “O franco-atirador” é baseada em antigas lendas. O franco-atirador que dá nome à obra é um personagem prototípico, meio faustiano: o atirador que, em troca da mira infalível, faz um acordo com o diabo.

Na ópera da Weber, a história se passa na Boêmia do século 17. Um guarda florestal de nome Max está apaixonado por Agathe, filha do chefe da guarda. Está prestes a assumir essa posição e se casar, mas antes precisa passar por uma prova de tiro. O problema é que ele não anda atirando bem – pouco antes havia perdido para um novato – e, inseguro, aceita os conselhos de outro guarda, Kaspar, que lhe conta a história das balas mágicas, infalíveis.

Kaspar e Max, certa noite, vão até a Garganta dos Lobos – local de antigos cultos demoníacos – forjar as balas mágicas. Em uma cerimônia bem tenebrosa, marcada pela presença variada de espíritos, fantasmas e espectros, fazem sete balas. Seis delas têm o poder de atingir exatamente o que o atirador quer; a sétima e última é guiada diretamente pelo diabo e atinge o que o coisa-ruim quiser. Brrrrr!

Pois que, por uma série de acontecimentos, a sétima bala calhou de ser usada justamente na prova de tiro. Na hora h, guiada pelo diabo, quem que ela atinge? Agathe. Sorte que, alertada de “maus presságios” por um eremita que encontrara dias antes, ela estava vestida com uma grinalda que acabou desviando a bala mágica, que se alojou justamente em Kaspar, que morre. Não surpreendemente, Agathe e Max se casam e são felizes para sempre.

Por trás da trama novelesca, com o velho conflito entre o bem e o mal, uma música em constante tensão. Para 1821, a ópera de Weber era realmente assustadora. Hoje, boa parte da música nos parece gratuita: é, afinal, ópera, e tem um monte de marchas, valsas, árias românticas e corinhos. Mas muitas cenas – como a sensacional cerimônia de forja das balas na Garganta dos Lobos – são impressionantes até hoje.

Se não bastasse isso, o jovem Richard Wagner ficou muito impactado (ops!) por “O franco-atirador”. Está na obra de Weber muito do mundo wagneriano: diabos, santos, maldições, rendenções pelo amor e, claro, forjas fantásticas ;-)

Abaixo, a eletrizante cena da Garganta dos Lobos. Apague a luz… e curta!

Bruckner

“Te deum”

Música sacra não é somente missa. Só no cristianismo há diversos outros gêneros de música religiosa, e muitos textos à disposição dos compositores. Existem, por exemplo, as “paixões”, descrições do calvário de Cristo, baseadas no Novo Testamento. Há o salmos do Antigo Testamento. E cantatas e oratórios costumeiramente têm natureza de potpourri, criados a partir de trechos pegados aqui e ali ou mesmo com texto original de temática bíblica.

Além de tudo isso, ainda existem uma série de textos tradicionais latinos que com frequência são musicados: o “Stabat mater” – uma reflexão sobre a dor de Maria com a morte de Cristo -, “Ave Maria” – a oração – e o “Te deum” – uma prece de agradecimento. Um monte de “Te deums” foram compostos, desde o barroco Charpentier até o minimalista Pärt, passando por Handel, Haydn, Berlioz, Dvorák, Verdi e provavelmente o mais famoso de todos, o de Anton Bruckner, composto em 1884.

Por que o “Te deum” de Bruckner ficou tão célebre? Além de conter música de fazer o mais ateu dos homens botar fogo na roupa e sair correndo? :) Talvez seja o espírito da obra, realmente único. Por conta de seu caráter de ação de graças, muitos “Te deums” são bem festivos – alô, Dvorák, estou olhando para você! Já o de Bruckner é diferente: ele FERVILHA. É um agradecimento feito INTENSAMENTE, muito mais pessoal do que coletivo.

Digo e provo. Aperta o play lá embaixo e não vão demorar três segundos para você perceber que Bruckner faz a sua prece com um FERVOR incomum. Na dedicação da obra, uma dica desse clima: “em gratidão por ter superado toda a angústia que passei em Viena”. Ouvindo, é fácil de perceber: Bruckner deve ter sofrido horrores na cidade e, aliviado, agradece ao divino COM GOSTO.

A música é maravilhosa. O melhor e mais moderno Bruckner das sinfonias está todo ali. Aquela força, aquela harmonia entre o voluptuoso e o dissonante, as melodias inusitadas. As participações dos solistas são preciosas. O coro, massivo, é uma adição sensacional à orquestra bruckneriana.

Não à toa, Gustav Mahler era fã dessa obra. (Coisa rara: ele tinha Bruckner em alta estima. Chegou a escrever uma transcrição da Terceira Sinfonia para dois pianos e mandá-la para o mestre.) Depois da morte de Mahler, encontraram entre seus papéis uma partitura do “Te deum” de Bruckner. Na capa, a especificação “para coro, solistas vocais e orquestra, com órgão opcional” havia sido riscada. Em seu lugar foi escrita, a mão, uma nova instrumentação: “para anjos, abençoados pelos céus, corações puros e almas purificadas pelo fogo!”.

Até que a visão de Mahler era bem apropriada :)

Stravinsky

Concerto “Dumbarton Oaks”

Sabe o que é concerto grosso? Seria um concerto um tanto mais espesso que o normal? #tumdumtssss

Claro que não :)  É um gênero barroco, das primeiras formas puramente orquestrais que surgiram. Ele é “grosso” porque esse é o italiano para “grande” – um concerto grande, portanto, de maior fôlego e ambição. A diferença entre um concerto grosso e um concerto comum é que nele não há um solista, mas um grupo de instrumentos principais. A sonoridade é mais cheia, quase sinfônica.

De fato, a função do concerto grosso passou a ser cumprida mais plenamente pela sinfonia, gênero que nasceu em meados do século 18. De lá pra cá, o gênero desapareceu. Quer dizer, não. Clássicos e românticos passaram muito bem sem o concerto grosso mas ele foi resgatado pelos neoclássicos do século 20. Foi chuva de concerto grosso para tudo quanto é lado: Martinu, Vaughan Williams, Bloch, mais tarde Schnittke… e, claro, Stravinsky.

O objetivo dos neoclássicos era escrever obras orquestrais que fossem a antítese da sinfonia romântica, levada ao máximo do grandioso e do dramático por compositores como Franck, Bruckner e Mahler. Antirromânticos, os compositores do século 20 queriam objetividade, transparência e economia de meios. Musicalmente, isso se refletia em orquestras pequenas, ênfase no contraponto e naquela securinha mecânica que destrói qualquer traço de sentimentalidade. Que outro gênero seria mais apropriado para tais objetivos? Concerto grosso FTW! o/

Pois bem. Se Bach tem Brandenburgo, Stravinsky tem Dumbarton Oaks. Dumbarton Oaks é uma mansão em Washington, EUA, datada do século 19. Foi moradia de políticos e teve sua era de ouro quando foi comprada pelo diplomata Robert Bliss (depois foi doada para a Universidade de Harvard). A propriedade ficou famosa por abrigar uma série de reuniões que culminaram na criação das Nações Unidas, em 1944.

Antes disso, em 1937, Bliss, para comemorar seus 30 anos de casamento, encomendou a peça para Stravinsky. (Olha, isso que é um presente humilde. “Amor, comprei uma lembrancinha para as nossas bodas de pérola: um concerto novinho de Stravinsky!”) O concerto foi estreado na mansão de Dumbarton Oaks e recebeu o nome da propriedade. Simpático!

É uma obra tipicamente neoclássica, dentro do espírito e da forma do concerto grosso barroco – mas com dissonância. Tem uns 15 minutos e é divertido até não poder mais. Começa com todo o gás, numa explosão de vozes independentes (um baita desafio para as orquestras). No meio da zoeira, um motivo que terá papel crucial no clímax do primeiro movimento: um pastiche justamente do Concerto de Brandenburgo no. 3 de Bach. Quando ouvi pela primeira vez, soltei um “rá” de satisfação. :-D

Por falar em satisfação: pra mim a parte mais incrível do “Dumbarton Oaks” é mesmo o finalzinho, quando a música vai ficando mais e mais intensa até o acorde final. É de arrepiar os pelos do dedão do pé!

Se o Stravinsky neoclássico às vezes chega a pontos extremos de dureza e monotonia (tipo o Concerto em ré, o balé “Apolo” ou a Sinfonia em dó maior), isso não acontece neste concerto. Aqui há viço e leveza de espírito. E muita inteligência. A música de Stravinsky transborda de inteligência!

Então não bobeia: clica ;-)

Strauss

“Assim falou Zaratustra”

Já falamos de música para retratar um incidente político-policial, para contar uma história de sacrifício humano ritual, para narrar o dia-a-dia de um casal, para ilustrar um discurso presidencial e mesmo para recriar uma viagem lisérgica muito, muito ruim. Mas música para um tratado filosófico?

Difícil de imaginar, mas é o que Richard Strauss conseguiu em seu sensacional poema sinfônico de 1896, “Assim falou Zaratustra”, a partir do livro homônimo do filósofo alemão Friedrich Nietzsche. Claro que a criação de Nietzsche não é um tratado filosófico formal – é muito mais próximo de um romance, com diversas partes em verso. E há um enredo.

Confesso que não sou letrado em Nietzsche. Mas me parece que o seu Zaratustra não é exatamente o profeta persa, e me parece também que a historinha é muito solta – viagens aqui e acolá e pronto. O que interessa mesmo são os ditos de Zaratustra/Nietzsche, sua reflexão sobre moral e a evolução humana, dos macacos até o célebre “super-homem”, o cara mega hiper giga autossuficiente e amoral, mestre e senhor de si mesmo. Também me parece que Nietzsche, nesta obra, tece uma teia fascinante e complexa de simbolismos e referências, quase uma mitologia própria. OK.

E como isso se transforma em música? Bom, daí só poderia surgir algo meio caótico mesmo :) Strauss bolou um um fluxo quase contínuo de música de meia hora. A forma é muito livre. Seções com títulos dos capítulos nietzscheanos se encadeiam sem interrupção – “O convalescente”, “A canção do andarilho noturno”, “Da grande espera” etc. O que une tudo? O motivo de três notas que inicia a obra.

E tenho certeza que você já conhece esse motivo. Sabe “2001”? Pois é, não preciso dizer mais nada :) Pois que o uso que Kubrick fez da música no comecinho do filme é muito bom – o escuro, os astros se alinhando, o sol surgindo. O objetivo de Strauss era próximo: o nascer do sol em meio ao “caos primordial”. E a presença desse motivo em toda a obra reforça a sensação de marcha progressiva ao sobre-humano.

A obra de Strauss foi escrita para grande orquestra sinfônica, com órgão e tudo. A música é de tirar o fôlego do começo ao fim. Após muita barulheira e um grande clímax, a peça termina de maneira quieta, meio sem resolução. Parece que o livro de Nietzsche também é assim. A impressão que fica é marcante.

Talvez não seja a obra mais incensada de Strauss, talvez nem seja uma peça absolutamente perfeita. Mas é emocionante e sempre fui apaixonado por ela. Daí que penso que ela merece, sim, o SELO DE EXCELÊNCIA DO GRANDE CARVALHO. Concorda, discorda? Ouça mais uma vez e comente :)

Copland

“Appalachian spring”

Interessante a história de certas linguagens e estilos musicais que tornam-se incrivelmente influentes e “escapam” rapidamente de seus autores. Espalham-se mundo afora, sem que o público tenha plena consciência de sua origem. Muitas vezes as pessoas pensam – “a música de tal lugar é mesmo assim”, “a música para acompanhar tal tipo de espetáculo é mesmo assado” – e nem desconfiam que aquele estilo na verdade é autoral, é invenção de alguém.

Quer um exemplo? Música de cinema. Suas origens estão em Richard Strauss, cujo estilo foi transplantado para Hollywood por autores como Korngold. Quer outro exemplo mais específico? O “som” da “Great America”, aquela visão épica dos Estados Unidos, hoje comumente espalhado em trilhas sonoras de filmes, vinhetas de televisão, campanhas políticas e todo tipo de anúncio de apelo patriótico e tradicional. Ele foi inventado, praticamente do zero, por Aaron Copland.

O mais interessante é que Copland nunca planejou isso! Militante de esquerda, judeu novaiorquino, homossexual, perseguido pelo macarthismo, aluno de Nadia Boulanger e muito próximo dos “Six” parisienses, Copland era tudo menos o estereótipo dos EUA branco, protestante, interiorano e conservador ao qual seu estilo ficou associado. Vai entender…

Provavelmente essa associação começou com o balé que compôs para a bailarina Martha Graham em 1944, “Appalachian spring” (“Primavera nos Apalaches”, embora “spring” também possa se referir a uma fonte de água; é dos poucos títulos de obras dos quais não consigo usar tradução). O briefing de Martha pedia algo ligado à vida cotidiana de um grupo de pioneiros americanos no século 19. A referência às Apalaches (uma cadeia de montanhas na costa leste dos EUA) só surgiu depois da música composta.

Copland instrumentou o balé para uma orquestra de câmara de 13 músicos. Depois que sua música fez imenso sucesso, o compositor criou uma suíte para orquestra sinfônica completa, que contém quase toda a música original. As duas instrumentações (camerística e orquestral) são usadas hoje em dia, tanto para a suíte como para o balé completo.

A música é incrivelmente familiar. Começa com uma longa visão do interior americano, muito atmosférica (no balé, serve como introdução aos personagens). Aos poucos surge um tema mais lírico, que servirá de “amarração” para a obra toda. Há trechos mais agitados, cheios de síncopes, que se alternam a outros bem estáticos. Em geral o estilo é muito próximo do neoclassicismo típico dos anos 40 – herança stravinskiana. Na versão original, a presença do piano como apoio rítmico é a prova do crime :)

A parte mais célebre, fora o início, é o conjunto de variações sobre uma tema shaker chamado “Simple gifts” (“Dons simples”), colocado próximo ao finalzinho do balé e destinado a representar o dia-a-dia do casal protagonista. A obra termina com uma espécie de meditação, num clima bem próximo ao começo (e recapitulando mais uma vez o tema base do balé).

Toda a “Americana” posta em música está em “Appalachian spring” – as harmonias bem abertas, quase imóveis, a instrumentação seca e transparente, os ritmos sincopados, o lirismo suave e, principalmente, a expressão direta, sem rodeios. Assista a um filme, sintonize a CNN, veja peças de campanhas eleitorais – Copland está todo lá.

BÔNUS: Copland como linguagem

Exemplo de anúncio eleitoral, de candidato (ultra) conservador:

Outro anúncio eleitoral, também conservador: Reagan.

E assim por diante. Trilhas sonoras de filmes:

Vinhetas de jornais:

Britten

“O guia da orquestra para o jovem”

E terminamos a nossa série “Vareia!” com uma obra… didática!

Não, não é algo como “Variações e fuga sobre um tema de Mário Mascarenhas, para três dedos”! O didatismo a que me refiro é para a plateia, não para o músico. Trata-se do extremamente célebre “O guia da orquestra para o jovem” do compositor inglês Benjamin Britten, um conjunto de variações criado especificamente para demonstrar os instrumentos da orquestra para as crianças.

A obra, de 1946, surgiu da encomenda de um documentário chamado “Os instrumentos da orquestra”. Acabou se tornando uma das obras mais conhecidas do autor. A qualidade musical é tão alta que a peça mantém seu interesse enquanto conjunto de variações em si, à parte seu lado pedagógico. Prova disso é que enquanto no filme a obra tem um narrador que anuncia ao público cada uma de suas sessões (nomeando naipes, instrumentos etc), na sala de concerto a parte falada é costumeiramente excluída.

O “Guia” usa como base um tema do compositor barroco inglês Henry Purcell, tirado da música incidental que compôs para a peça “Abdelazar”. Engenhosamente, Britten distribui as variações entre os diversos instrumentos, seguindo a lógica dos naipes. O tema original é tocado inicialmente por toda a orquestra. Depois ele é repetido conjunto por conjunto: madeiras, metais, cordas e percussão.

Uma pontezinha, feita para o narrador poder falar um pouco, liga essa introdução às treze variações. A primeira é para as flautas e flautins, depois seguem variações específicas para os oboés, para os clarinetes e para os fagotes. Outra rápida ponte leva às cordas: violinos, primeiro, depois trechos para as violas, os violoncelos e os contrabaixos (sim! é hilário!).

A harpa fecha a seção das cordas, seguida imediatamente pelos metais: trompas, trompetes, trombones e tuba. Para fechar, a percussão (uma barulheira sensacional!).

Ei, ei, não terminou ainda! A cereja do bolo ainda está por vir: uma incrível fuga em que todas as seções da orquestra participam, exatamente na ordem acima. Depois da percussão, o tema de Purcell é recapitulado por toda a orquestra, majestosamente.

Com narração é legal? Até é, mas a música prescinde: ela já é tão explícita por si, tão incrivelmente divertida, que é bem fácil acompanhar as seções da orquestra em seu desfile, sem nenhum outro apoio. E digo mais – mesmo se você não for criança, ou mesmo se já conhecer muitíssimo bem todos os naipes da orquestra, vai curtir imensamente o “Guia”. Didático, sim, mas da melhor qualidade!

Dito isso, vale outro recado: você tem filhos? Sobrinhos? Afilhados? Vizinhos? Então você tem a OBRIGAÇÃO MORAL de mostrar o “Guia” para ele. Ele vai se divertir à beça – e ainda aprender uma coisa ou duas. ;-)

Beethoven

Sonata para piano no. 21, “Waldstein”

Duas listas básicas que você precisa saber para ganhar diploma de beethoveniano:

. Os cânones principais: 9 sinfonias, 16 quartetos de cordas e 32 sonatas para piano;
. As três fases estilísticas: inicial (antes de perceber que estava irremediavelmente surdo), intemediária (a maturidade criativa) e final (o Beethoven visionário).

Pronto! PhD! ;-)

Falando sério agora: puxa, sério que nunca falei das sonatas de Beethoven cá na Ilha? 2 concertos, 2 sinfonias, 2 quartetos… e nada de sonata? Vamos resolver isso hoje então: preparem os ouvidos para a que é, provavelmente, a mais importante sonata do período intermediário, a Sonata no. 21, dita “Waldstein”.

Quando conversamos sobre a Terceira Sinfonia, a “Eroica”, comentei o episódio de Heiligenstadt, quando Beethoven encarou a dura missão de ser um compositor surdo para dedicar sua arte à posteridade, à toda humanidade. Desde então sua música mudou. Deixou mais tênues as ligações com a música de Haydn e Mozart, até então bastante fortes, e passou a cultivar um estilo mais heróico, monumental, épico, dramático, grandioso (cacete, quantos adjetivos!).

É só comparar a ensolarada Segunda Sinfonia com a tensa “Eroica”, que parece tentar resolver todos os males do universo. Em sua fase intermediária, Beethoven fala sempre de GRANDES temas. O pequeno, o doméstico, quase não tem mais vez. Beethoven só iria ficar mais intimista no final da vida.

Quase todas as obras mais célebres de Beethoven pertencem ao seu estilo intemediário. As sinfonias da 3 a 8, todos os concertos (à exceção dos dois primeiros para piano), as duas últimas sonatas para violino (incluindo a “Kreutzer”), os três quartetos de cordas “Razumovsky”, mais os quartetos “Harpa” e “Serioso”, a ópera “Fidelio”, os trios para piano “Fantasma” e “Arquiduque”… quer dizer, é muita música.

Além disso, três da sonatas para piano mais famosas (e com apelidos) de Beethoven são dessa fase: a “Appassionata”, a “Les adieux” e essa “Waldstein”, de 1804. Este apelido vem diretamente da dedicação da obra ao Conde Ferdinand Waldstein, um dos nobres que patrocinavam Beethoven à época. (Na França e na Itália, e mesmo em muitos livros de referência em português, a sonata recebe o curioso apelido alternativo de “Aurora”. Enfim.)

A característica mais marcante da “Waldstein” é o curtíssimo movimento lento, que na verdade é uma introdução ao final. Pois que Beethoven não tinha planejado a obra com um miolo tão enigmático. Ele chegou a escrever um movimento lento bem desenvolvido e só depois da sonata pronta resolveu trocá-lo por essa introduçãozinha curta. (O original acabou ganhando vida própria como o “Andante favori”.)

Claro que Beethoven estava certo: com essa pontezinha no lugar do movimento lento, o dramatismo do primeiro movimento fica acumulado para o finale, que, aí sim, fica com a missão de aliviar a tensão e terminar a peça de modo triunfal.

Gentes, o que mais dizer? É BEETHOVEN, então clica logo :)