Handel

Concerto para órgão op. 7, no. 5

Segunda-feira pós-feriadão. Nessas horas, quem poderá nos salvar? Os Caça-Fantasmas? Não. HANDEL!

Há muitos anos que eu uso os concertos para órgão de Handel como um bálsamo universal, uma espécie de Emplastro Brás Cubas musical. Aborrecido? Handel! Triste? Handel! Com preguiça? Handel! Muito agitado? Handel!

Nosso querido Handel compôs 15 concertos para órgão, na maioria das vezes destinados a serem tocados por ele mesmo nos intervalos de suas óperas ou oratórios. Seis deles foram publicados pouco após sua composição, como Opus 4. Outros seis foram publicados postumamente, como Opus 7. Existem mais três concertos sem número de opus.

Adoro todos os quinze, mas tenho especial predileção pelo concerto abaixo, o número 5 do Opus 7, composto para servir de interlúdio do oratório “Teodora”, em 1750. Como habitual em Handel, o concerto reutiliza bastante música já previamente composta, como trio-sonatas e mesmo outro concerto para órgão (do Opus 4 – daí não se sabe se o empréstimo foi feito pelo próprio Handel ou se pelo editor após a morte do compositor).

Este concerto chama a atenção por dois motivos: pela maravilhosa passacaglia que é o segundo movimento; e pelo fato dos dois últimos movimentos não terem a presença do órgão solista.

É de botar fogo na roupa e sair correndo de tão lindo! PUTZ!

[O vídeo abaixo é antiquado mas sensacional. É um registro incrível do organista e regente Karl Richter, verdadeira lenda da interpretação barroca nos anos pré-instrumentos de época. Hoje se toca Handel desse jeito? Não. Hoje se toca Handel de um jeito MELHOR? Também não. É pesado e solene, OK; mas é incrivelmente empolgante. O amor de Richter por essa música transparece em cada segundo.]

Chávez

“Sinfonia índia”

¡Arriba México!

Nós, que falamos português, temos uma relação meio distante com nossos vizinhos de continente. (Por isso desconfio do conceito de “América Latina” – somos muito diferentes.) O que dirá dos hermanos do norte, os mexicanos. O que conhecemos da música mexicana?

Creio que a peça de concerto mexicana mais conhecida é a “Sinfonia índia”, de Carlos Chávez, obra de 1936.

Oficialmente batizada como Sinfonia no. 2 (pertecendo, portanto, ao cânone sinfônico de Chávez), a “Sinfonia índia” é muito menos uma sinfonia do que uma abertura sinfônica. Em movimento único de mais ou menos 15 minutos, a obra apresenta diversos temas realmente indígenas, coletados nas pesquisas etnomusicológicas que Chávez fez no México. Há pouco desenvolvimento temático, o que nos permite afirmar: sinfonia é o que o autor chama de “sinfonia”, e pronto.

Além dos temas indígenas, realmente inusitados (Copland, amigo de Chávez, costumava chamar a atenção para o quão diferentes são essas melodias), a “Sinfonia índia” atrai pelas cores instrumentais: diversas percussões típicas mexicanas são introduzidas na orquestra sinfônica, e elas realmente não nos dão muito descanso!

Mexicana, indígena, percussiva, colorida, a obra de Chávez ainda assim é filha de seu tempo: suas sonoridades secas e sua forma clara e direta declaram o neoclassicismo evidente. Isso é música clássica: todo tipo de conteúdo dentro de uma linguagem que pertence a uma linha contínua, histórica, que não para de evoluir.

Lopes-Graça

Sinfonia

Ontem falamos de música brasileira. Vocês sabiam que 40% dos seguidores desta Ilha Quadrada são portugueses? Obrigado, Portugal! \o/

Já mostrei aqui a Primeira Sinfonia de Joly Braga Santos. Hoje vamos apresentar a minha obra favorita de compositor português: a Sinfonia de Lopes-Graça.

Fernando Lopes-Graça é provavelmente o principal compositor português. Vocês podem me ajudar nisso :) A trindade da música portuguesa seria Seixas, Freitas Branco e Lopes-Graça?

De perfeita feitura neoclássica, esta Sinfonia (que o autor chamou de “per orchestra”; o motivo de tal ênfase me escapa) foi composta em 1944. É uma obra contemporânea exata da Terceira de Martinu e da Quinta de Holmboe e isso prova: ao contrário de Braga Santos, Lopes-Graça é um compositor perfeitamente afinado com seu tempo. (A Segunda de Camargo Guarnieri, de estilo parecido, é de 1945. A Terceira de Honneger também. Já a Terceira de Roy Harris é de 1939. Os anos 1940 foram a primavera do sinfonismo neoclássico.)

A Sinfonia de Lopes-Graça tem três movimentos (expediente típico da época também). Chama a atenção o último, uma passacaglia sobre um pequeno tema folclórico.

Uma obra tão bem escrita e tão interessante deveria ser mais difundida. A gravação abaixo (em quatro partes, atenção) foi praticamente a única existente por bastante tempo. Feita na Hungria comunista, tem som ruim. A Naxos lançou agora uma gravação moderna dessa sinfonia, com o bravo Álvaro Cassuto. Parabéns a ambos, gravadora e regente, grandes divulgadores da música portuguesa.

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Guerra-Peixe

“Museu da Inconfidência”

Hoje é 7 de setembro, Dia da Pátria aqui no Brasil. É dia de ouvirmos música brasileira!

Escolhi algo ligeiramente diferente para apresentar pra vocês. Aproveito a deixa do Dia da Independência para mostrar uma obra que tem a ver com esse clima: “Museu da Inconfidência”, de Guerra-Peixe, obra de 1972.

(Claro, a obra seria mais apropriada em um 21 de abril!)

Guerra-Peixe ficou famoso por ser um dos divulgadores do método dodecafônico serial no Brasil (trazido por Koellreutter). Sua primeira fase criadora, dos anos 1940, é toda dodecafônica. Porém, nos anos 1950, voltou-se à música tonal e começou a pesquisar a música folclórica. É o que se chamou de fase nacionalista. “Museu da Inconfidência” pertence a esse estilo, que lembra muito autores como Hindemith ou Holmboe, por exemplo.

A obra retrata uma visita ao Museu da Inconfidência, em Ouro Preto, e tem quatro partes, todas ligadas à Inconfidência Mineira ou ao Brasil colonial. A mais famosa é a segunda parte, “Cadeira de arruar”, que nada é mais que uma liteira, que no Brasil era usada pelos senhores brancos para serem carregados por aí por seus escravos. A música de Guerra-Peixe é zombeteira porque imagina a seguinte situação: os escravos, cientes de que seus donos não conseguem vê-los de dentro da cadeira, passam o caminho inteiro os ridicularizando. Daí o clima de circo ;-)

[Para os paulistanos que ouviram a Rádio Cultura nos anos 90, a música será bem familiar: a “Cadeira de arruar” era uma das vinhetas da emissora.]

Dvorák

“Lendas”

Dinheiro. Blockbusters. Imitações. Continuações. Mais dinheiro.

Não, não estamos falando de Hollywood! Mas de um contexto bem típico da segunda metade do século 19: o comércio de partituras para piano a quatro mãos.

Hoje nos parece esquisito. Basta três cliques na internet para ouvirmos a música que quisermos, de qualquer tipo – desde peças para violoncelo solo até grandes oratórios com portentosas formações orquestrais e corais. Mas nessa época, a única oportunidade de se ouvir com mais frequência, por exemplo, a Quarta de Brahms era tocando uma transcrição da sinfonia para piano (em geral a quatro mãos).

O enriquecimento da burguesia tornou o piano um item relativamente comum nas residências urbanas europeias. Todos aprendiam a tocá-lo, bem ou mal. E o que essa gente toda ávida por música precisa? De partituras, de preferência de música mais leve, fácil de tocar. E isso fez florescer toda uma indústria.

Um dos maiores sucessos editoriais da época foram as “Danças húngaras” de Brahms. Essas peças, quase todas baseadas em música já existente, deixaram Brahms e seu editor, Fritz Simrock, ricos. Em busca de um segundo hit, Simrock encomendou música similar a um protegido de Brahms, o tcheco Antonín Dvorák. Deu certo! As “Danças eslavas” – desta vez todas originais – venderam tanto que geraram um segundo grupo de “Danças eslavas” (seriam as “Danças eslavas II: a missão”?).

Não parou por aí! Alguns anos depois, Simrock e Dvorák voltariam com as “Lendas”, um grupo de dez peças curtas para piano a quatro mãos. Só que desta vez não seriam danças: as “Lendas” são peças características, ligadas ao folclore e à atmosfera da Boêmia natal de Dvorák. E que música maravilhosa! Dvorák acertou tanto a mão que orquestrou as “Lendas” em seguida – a versão orquestral tornou-se inclusive mais famosa.

As “Lendas” estão entre as obras mais belas de Dvorák, de uma pureza e simplicidade de concepção realmente comoventes. Que harmonias! Putz, amo essa música. Que ela tenha ajudado Dvorák a faturar algum dinheiro, ótimo. Mais que justo!

Abaixo, a versão original, para piano a quatro mãos:

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Abaixo, a “Lenda” de número 4, em sua versão orquestral:

Berlioz

“Sinfonia fantástica”

SEXO, DROGAS E… música clássica?

Sim! Essa é a história da “Sinfonia fantástica” de Hector Berlioz, obra de 1830. O rock’n’roll só seria criado uns 120 anos depois, olha só ;-)

O mais legal é que o enredo que a “Fantástica” conta é escancaradamente autobiográfico, como se fosse um Kerouac do século 19. A história é conhecida: Berlioz se apaixonou pela atriz irlandesa Harriet Smithson ao vê-la representar “Hamlet”. Mandou inúmeras cartas a ela, nunca respondidas. Doente de amor – pobre Hector -, escreveu esta sinfonia para lidar com a rejeição. E tem uma vingancinha nesta história, veremos.

Seguindo o modelo da “Pastoral” de Beethoven, Berlioz criou uma sinfonia programática em cinco movimentos. Todos são ligados por um tema que descreve Smithson, chamado por Berlioz de “ideia fixa” (interprete a escolha de palavras como quiser). O primeiro movimento representa os devaneios amorosos do autor-personagem. O segundo representa um baile em que o apaixonado persegue, sem sucesso, sua musa. O terceiro representa a fuga do personagem, que tenta esfriar sua cabeça passando um tempo no campo.

Entre uma ovelha e outra, entre um pastor e outro, o autor-personagem resolve dar um TAPA NA PANTERA. É, isso mesmo! Ele pega um punhado de ópio e dá uma desbaratinada. E a viagem começa…

… o tempo fecha e, no delírio, o apaixonado personagem mata a sua amada! É o ódio da rejeição. A história romântica se torna uma notícia policial, com perseguição e tudo. E essa fantasmagórica polícia captura nosso herói, que é executado, com direito a guilhotina.

Paz? Nada! O já defunto personagem-autor se vê estirado num caixão, rodeado de bruxas. Qual a líder das feiticeiras? Sim, ela, a amada, a “ideia fixa”. BWAHAHAHA! Entre o sabá das bruxas e os padres que tentam salvar sua alma, a “Fantástica” termina em incrível caos psicodélico. DORGAS, MANOLO!

Sacaram a vingança safada de Berlioz? De musa a bruxa, Smithson acabou se casando, na vida real, com o compositor. Foi uma união bastante infeliz, na verdade. Para a posteridade, restou uma das grandes obras-primas do Romantismo – e uma das mais revolucionárias peças musicais de todos os tempos.

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Schnittke

Concerto grosso no. 1

Memórias de infância são esquisitas. Muitas vezes não entendemos algumas de nossas reações, vários de nossos sentimentos: medos, repulsas, traumas, ressentimentos. Quando vamos analisar, lá estão eles: os fantasmas da nossa infância.

O Concerto grosso no. 1 é mais uma das obras do compositor soviético Alfred Schnittke que lidam exatamente com memórias infantis que se tornam fantasmagóricas. Composto em 1977, para conjunto de cordas, dois violinos, cravos e piano preparado, foi a obra que tornou o nome de Schnittke famoso no ocidente. Também foi a obra que popularizou o conceito de poliestilismo, que não vou explicar – é só ouvir o concerto para entender :)

A peça começa com o piano preparado tocando uma versão distorcida de uma canção que o pequeno Alfredinho cantava em sua escola. Em seguida, os violinos solistas entram, em um mundo dissonante bastante distante. Quando menos se espera, o clima sombrio é interrompido por uma tocata em estilo barroco, em que séculos de história da música entram nesse clima de pesadelo e são transformados, sem dó.

No meio do concerto, um amplo recitativo retorna ao angustiado mundo dissonante, em que as cordas parecem ecoar gritos e sirenes longínquas. Mas tudo muda de repente de novo! Dessa vez começa um rondó vigoroso, em estilo meio beethoveniano, meio barroco, que se alterna com uma visão fantasmática de um velho tango que Vovó Schnittke gostava de ouvir. Caos. E fim, com o piano preparado retornando à canção escolar – ou ao que sobrou dela.

O Concerto grosso no. 1 de Schnittke, essa verdadeira sessão psicanalítica em forma de música, é das obras mais emocionantes da segunda metade do século 20 – e talvez de todos os tempos, por quê não? Complexa, difícil, mas ao mesmo tempo de uma humanidade tão comovente que a torna imediatamente acessível.

Impossível sair de uma audição dessa música da mesma maneira como se entrou. VÃO LÁ! E depois me digam :)

[O vídeo abaixo é de uma execução SENSACIONAL ocorrida em Boston em 2010, por uma orquestra sem regente chamada A Far Cry. Acho que é o melhor registro que temos dessa obra-prima. Mais interessante até do que a famosa gravação de Gidon Kremer.]

Stravinsky

Octeto para sopros

Tem vezes que uma música gruda em nossa cabeça, meio sem motivo aparente. Acontece comigo com alguma frequência :)

Hoje foi o dia do Octeto para sopros do nosso amigo Igor Stravinsky. Neste sábado eu fui à feira e – batata – não resisti: fiz as compras “subcantarolando” o Octeto praticamente o tempo todo. Pobres feirantes!

O Octeto, composto em 1923, é a obra quintessencial do neoclassicismo stravinskiano (falei bonito!). Em quinze minutos, mais ou menos, estão ali concentradas todas as características que Stravinsky iria imprimir às suas obras por muitos e muitos anos: sons secos – haja “staccati” – em formas clássicas como sonata, variação e fuga.

Foi sua primeira obra conscientemente neoclássica, e serviu como manifesto dessa nova estética. O público da estreia não entendeu nada, mas a peça em pouco tempo tornou-se uma das mais influentes do compositor russo.

E é uma delícia! O estilo neoclássico de Stravinsky muitas vezes gerou obras controversas como a Sinfonia em dó, o Concerto para cordas em ré, as “Cenas de balé”, mesmo o oratório “Édipo rei” – coisa toda muito chata, IMHO. Mas o Octeto é uma festa. OUÇÃO!

[Difícil foi achar um vídeo legal no YouTube. Este, apesar do áudio marromeno, apresenta, sem imagens, uma bela interpretação regida por Riccardo Chailly.]