Bach

Concerto, BWV. 1060(R)

Sabe de uma coisa? A obra de Bach é uma puta bagunça!

Não me refiro à música em si, não! É o portifólio bachiano que é bastante confuso. São quase 1300 obras, incluindo centenas de duplicações, reinstrumentações, reconstruções, falsas atribuições…

É que os conceitos de “obra fechada”, originalidade etc são completamente alienígenas para a época de Bach – surgiram mais ou menos com Beethoven, no início do século 19. Antes disso, era um tal de manuscrito perdido aqui, música emprestada ali, arranjo requentado acolá… Música era execução, coisa de momento – legado e posteridade eram palavras que não passavam pela cabeça de ninguém.

Vejamos Bach. Ele era visto por todos como um artesão superdotado. Durante a maior parte da vida ele tinha que apresentar música nova como uma vaca tinha que dar leite, para patrões que variavam de príncipes a organizações religiosas.

É famosa a obrigação que ele teve, por algum tempo, de criar uma cantata nova toda semana. Como quem ouvia a cantata de hoje nunca iria se lembrar das cantatas ouvidas no mês passado (vale lembrar que essas obras não eram editadas, e obviamente não havia registro fonográfico), Bach passou a se permitir o hábito da reciclagem musical. Uma das maiores obras-primas bachianas, a Missa em si menor, por exemplo, é na verdade uma colagem e readaptação de trechos compostos anteriormente. (E que música, amigos!)

Como amostra dessa confusão, hoje vamos falar de uma peça que tem duas versões igualmente célebres, baseada em uma obra que simplesmente desapareceu: o Concerto BWV 1060(R). Note o “R” opcional ao lado do número de catálogo. Note também que omiti de propósito a instrumentação da obra. Explico tudo :)

Parece – repito, parece – que em sua estada em Köthen, entre 1717 e 1723, Bach compôs um concerto para dois violinos em ré menor. Daí que em sua época de Leipzig, provavelmente após 1730, Bach pegou essa peça e a transformou em um concerto para dois cravos, em dó menor. (No catálogo ganhou o número BWV 1060.) A música é maravilhosa, e graças a essa reciclagem bachiana ela foi preservada – o manuscrito da peça original sumiu, só restando a versão para dois cravos.

Digo: nem sabemos se essa é a história mesmo, se houve mesmo original perdido. É tudo conjectura dos historiadores e musicólogos. Pois que o concerto foi reconstruído para esse original e para uma terceira versão, para violino e oboé, tanto no dó menor da versão dos cravos quanto no suposto ré menor mais cômodo para os violinos. E lá foi mexido o catálogo – esta versão é a BWV 1060R, “R” de “reconstrução”.

Perdido? Não estou dizendo que é uma bagunça? :)

Abaixo, a versão de que gosto mais, para dois cravos…

… a reconstrução para violino e oboé (que ficou mais corrente)…

… e a hoje mais rara versão para dois violinos.

A peça – ela em si, imbróglio musicológico à parte – é incrível. O que é esse movimento lento? Não tem muito o que discutir: é tão lindo que implora que você ouça todas as três variantes!

Janácek

“Missa glagolítica”

Um dos objetivos de qualquer povo é autoafirmação e independência. Isso significa poder se identificar como nação, falar a língua que quiser, professar (ou não) a fé que desejar e, principalmente, permanecer na própria terra.

Um dos povos que mais sofreram com a dominação estrangeira, em vários momentos históricos, foi o eslavo. O Leste Europeu foi, até a queda do Muro de Berlim em 1989, uma região constantemente esmagada pelas potências ocidentais de um lado e pela Rússia de outro.

A Morávia natal do compositor Leos Janácek foi, por quase toda sua vida, dominada pelos austríacos. O Império Austríaco, depois Império Austro-Húngaro, ia do centro da Europa até a fronteira com a Ucrânia. Esse mamute só deixou de existir no final da Primeira Guerra Mundial, em 1918. Daí, finalmente, o povo tcheco pôde celebrar sua independência: surgiu a Tchecoslováquia. (Até 1938 eles permaneceriam tranquilos, depois os nazistas chegaram, em seguida os soviéticos…)

Em 1927, Janácek, muito sensível a esse tema, resolveu comemorar a independência de seu país escrevendo uma missa. Mas não uma missa comum: optou, como ato de afirmação étnica, por uma missa cantada na antiga língua litúrgica eslava, o eslavônico. Por isso o nome da obra – “Missa glagolítica”, ou seja, missa em língua escrita no alfabeto glagolítico, antecessor do cirílico.

A opção de Janácek, um ateu, por escrever uma missa de tintas étnicas é muito simbólica. O eslavônico é muito mais que uma manifestação nacional, é um patrimônio paneslavo – de fato, é uma espécie de língua franca litúrgica usada em diversos países. Além disso, o gênero da missa tem aquele componente formal que já comentamos: sempre o mesmo molde, usado e adaptado por diversos criadores, que permite fácil comparação. Num mundo de iguais, o diferente chama a atenção.

Fora as cinco seções tradicionais da missa – aqui com títulos em eslavônico: o “Credo” vira “Veruju”, o “Gloria” vira “Slava” e assim por diante – Janácek adiciona uma introdução orquestral e, no final, um (meio maluco e sensacional) solo de órgão seguido de um poslúdio sinfônico curiosamente chamado de “Intrada”. É, a entrada fica na saída :)

A linguagem musical de Janácek é de uma originalidade e uma modernidade impressionantes. Os ritmos refletem tanto a aspereza da língua antiga quanto a bagagem folclórica. A orquestração e o uso da voz humana é absolutamente pessoal. E o drama da expressão – como na passagem da crucificação de Cristo, na qual o órgão assume papel fundamental – demonstra a vocação de Janácek para o teatro.

A “Missa glagolítica” é muito, mas muito legal – das peças mais especiais do século 20, verdadeiro pilar do repertório coral sinfônico, que merece plenamente o SELO DE EXCELÊNCIA DO GRANDE CARVALHO. É sensacional demais – então aproveite! \o/

Wagner

“Os mestres cantores de Nuremberg”, abertura

2013 marca os 200 anos de nascimento de Richard Wagner, um dos maiores (e mais polêmicos) compositores de todos os tempos. Nada mais apropriado que começarmos o ano com um post wagneriano ;-)

Como já comentei aqui, Wagner dedicou-se quaseexclusivamente à ópera. Recurso fácil dizer que sua vocação original era o teatro. Acho que Wagner mesmo se via – e se vendia – assim: um grande dramaturgo, um ensaísta, um intelectual de alcance universal. O que eu digo, com todo o respeito: bullshit. Wagner seria um artista esquecido se se dedicasse às letras ou ao teatro. Só foi o gigante que foi porque tinha um talento absurdo para a música. Compôs, em meio a toda a mistificação que inventou, MÚSICA FODA DEMAIS e é isso que importa.

Quer um exemplo? Mesmo um artista de temperamento completamente diferente como Johannes Brahms, que detestava o clima de messianismo artístico criado em torno de Wagner, simplesmente não tinha o que criticar de obras como “Os mestres cantores de Nuremberg”. E olha que o enredo da ópera de 1867 trata justamente da questão da evolução da arte, ferida ainda aberta desde o manifesto anti-“Nova escola alemã” (leia-se Wagner e Liszt) que Brahms assinou em 1860…

Rapidinho: “Os mestres cantores de Nuremberg” é ambientada na Alemanha do século 16 e conta a história de Walther e Eva, casal de amor intenso e – pra variar – impossível. A mão de Eva já havia sido prometida, por seu pai, ao vencedor do concurso de canto da guilda dos Mestres Cantores, a se realizar. Walther, um jovem cavaleiro, tem de se virar para aprender a ciência dos Cantores e vencer o concurso. Para isso tem a ajuda de Hans Sachs, um dos mais veneráveis Mestres, e enfrenta a oposição de Beckmesser, Mestre que deseja, ele mesmo, levar o prêmio para casa.

Nem preciso dizer que Walther consegue, após uma corrida desenfreada ao aeroporto para impedir que Eva voe para outro país (ops, mentira! não é comédia romântica de Hollywood!). Por trás do plot óbvio, digno de sessão da tarde, há toda uma discussão sobre inovação vs tradição na arte. Walther é o inovador impulsivo, meio alheio ao legado histórico; Beckmesser, o guardião cego das velhas regras; Sachs representa o equilíbrio – que aparentemente Wagner defende – entre tradição e evolução.

A abertura da ópera, composta antes (já em 1862), ilustra bastante bem esse compromisso wagneriano. O tema inicial, majestoso, é o dos Mestres. O segundo motivo, mais despojado, representa a juventude de Walther. O terceiro é o amor entre Eva e Walther posto em música (na ópera servirá como base da “canção do prêmio”, que Walther canta para vencer o concurso). Após episódios contrastantes, os três temas são fundidos em uma incrível FUGA. Sim! De Wagner! E das mais bonitas do século 19!

Como ficar indiferente a música tão SENSACIONAL? Ouçam, ouçam, ouçam! E iniciem 2013 em altíssimo nível! \o/

Reger

Variações Mozart

Estamos prestes a dar uma variada, pelo menos no calendário: amanhã se inicia 2013. Nada mais justo que continuarmos, hoje, a nossa mui aclamada e ansiada série “Vareia!”, um conjunto de variações sobre conjuntos de variações sinfônicas. ;-)

Começamos a série com a Variações sobre um tema de Haydn, de Brahms, composta em 1873. Depois nos afastamos gradualmente do modelo brahmsiano, com Dvorák e o descritivo Elgar. Neste capítulo, já no século 20… vamos voltar a Brahms!

Cacete, como assim?

É que a obra de hoje é um reflexo imediato da linguagem e da forma consagrada pela peça de Brahms: as Variações e fuga sobre um tema de Mozart, do compositor alemão Max Reger, de 1914. Reger provavelmente é um nome desconhecido do público. Da mesma geração de autores como Sibelius, Nielsen, Mahler e Strauss (até um pouco mais jovem), Reger meio que desapareceu do repertório por seu conservadorismo – seu gosto pelo contraponto e pela forma acadêmica já não nos parecem muito pessoais e interessantes.

Pois que poquíssimas obras de Reger permanecem sendo tocadas e ouvidas. Uma delas é, sem nenhuma dúvida, estas Variações Mozart. Reger gostava de variações – compôs um monte delas, principalmente para piano. Usou temas de Bach, Beethoven, Hiller, Telemann, Mozart… Quase todas terminam com uma fuga, bem ao seu gosto. Duas delas são originais para orquestra: Hiller e Mozart.

O tema mozartiano usado por Reger em suas variações foi extraído do primeiro movimento da Sonata no. 11 de Mozart, de 1783, célebre pelo finale em forma de “rondó à turca”. O curioso é que o primeiro movimento da sonata de Mozart já é uma tema-e-variações! Fica para nós, ouvintes, o gostoso exercício de comparar os desenvolvimentos temáticos de Mozart e Reger.

A obra de Reger é dividida em dez partes: o tema mozartiano, oito variações – que vão do leve ao solene, do rápido ao lento – e uma fuga final. Apesar da filiação brahmsiana evidente, Reger opta por manter o tema de Mozart intacto em muitas das variações. São poucos os momentos em que o tema é realmente transformado ao ponto da desfiguração. Gosto especialmente da oitava variação, na qual o motivo rococó recebe um tratamento cromático e se transmuta em um adagio de intensidade mahleriana. É surpreendente!

As Variações e fuga sobre um tema de Mozart são uma adição valiosa ao repertório. Peça belíssima, com algumas interessantes surpresas, viva e espontânea apesar da mão pesada do autor. Se não é mais conhecida, falha nossa. Tratemos de corrigi-la!

Esse foi o último post de 2012. Foi um ano muito especial – esta experiência com a Ilha Quadrada tem sido deliciosa. Que 2013 seja ainda mais mágico e musical! Boa virada a todos! \o/

Mozart

Quinteto de cordas no. 4

Ah, Mozart e sol menor! Vamos listar? O Quarteto para piano no. 1, a Sinfonia no. 25, a Sinfonia no. 40 e a peça de hoje, o Quinteto de cordas no. 4. Só obras-primas!

Como comentei quando falamos do Quarteto para piano no. 1, foi na tonalidade de sol menor que Mozart expressou suas maiores angústias e agitações. São sempre peças escuras, dramáticas, de expressão trágica.

Este Quinteto no. 4 não foge à regra. Foi composto em 1787, e forma um parzinho com o Quinteto no. 3, completado um mês antes. Mozart compôs seis quintetos de cordas em várias épocas de sua vida. Estão entre as maiores obras de câmara de sua produção.

Os quintetos de Mozart são, como padrão, obras para quarteto de cordas acrescido de uma segunda viola. Todos eles seguem o mesmo molde sinfônico de quatro movimentos, com andamento lento e minueto servindo de recheio para dois movimentos rápidos. Os quintetos de 1787 são diferentes, porém, na ordem: Mozart coloca o minueto antes do movimento lento.

Com um minueto tão sério e sombrio como o do Quinteto no. 4, o efeito dessa mudança de ordenação é incrível: a tensão do enigmático primeiro movimento se acumula e resta ao movimento lento, um adagio de intensa melancolia, sublimar essa agitação. Essa tristeza entra inclusive no finale, de feição muito misteriosa. Ele começa com uma cavatina lentíssima, profundíssima, e evolui para uma música leve e rápida, quase dançante, que termina a obra de maneira surpreendemente positiva.

WTF? O que Mozart quis com esse finale? Poderíamos ficar anos discutindo – é realmente um assombro, um contraste incrível. Chegaram ao ponto de comparar essa evolução da obra ao clássico modelo dos “cinco estágios do luto” (aquele que começa com negação e termina em aceitação). Bom, daí já é demais.

O fato é que esse Quinteto no. 4 é uma obra absolutamente impressionante, das maiores  criações de câmara não só de Mozart, mas de todos os tempos. OUÇA! JÁ!

Villa-Lobos

“Choros” no. 6

Você sabe o que é um choro? Guarde este conceito: é o ato de derramar lágrimas, por tristeza, alegria ou profunda emoção.

Mas é óbvio que em música é outra coisa: é uma modalidade de música popular brasileira, instrumental, fortemente baseada em contraponto. É essa ideia fundamental que Heitor Villa-Lobos desenvolveu em sua série de dezesseis “Choros” (quatorze numerados, mais uma “Introdução aos choros” e um “Choros bis”). São obras de forma muito solta, de trabalho polifônico relativamente intenso, temperadas por uma boa dissonância, ritmicamente variadas, com muitas inserções de canções folclóricas e/ou populares. É o Villa-Lobos quintessencial, o mais próximo da vanguarda que ele chegou.

Como na série das “Bachianas brasileiras”, as formações instrumentais são variadas: há “Choros” (no plural, sempre) para orquestra, para piano solo, para violão solo, para coro e orquestra, para piano e orquestra, para grupos de câmara, até para banda sinfônica e duas orquestras! Nem todos os “Choros” foram preservados: as partituras dos dois últimos foram perdidas. Pela descrição pareciam altamente inovadores (ou malucas! um deles era esse com banda que comentei).

O “Choros” mais célebre é o de número 10, para coro e orquestra, que usa extensivamente uma canção popular chamada “Rasga o coração”. É maravilhoso e emocionante demais, mas vamos comentar hoje outro “Choros”, o sexto, para orquestra, de 1926. É talvez a obra mais equilibrada do ciclo, a mais lírica decerto. É uma imensa rapsódia de meia-hora, em que temas de feição popular se entrelaçam, se alternam e se complementam a melodias típicas villalobianas.

Gosto de imaginar o “Choros” no. 6 como uma espécie de viagem de trem pelo Brasil. É possível visualizar o Brasil mais urbano e litorâneo, mas também o Brasil mais pacato do interior. A obra tem um perfume nostálgico, um tanto melancólico, absolutamente irresistível.

Guardou o conceito de choro que comentei acima? Então reserve os lenços – você vai precisar ;-)

Gershwin

“Rhapsody in blue”

O que é música clássica? O que é musica popular? Onde está a fronteira? Taí uma discussão bem antiga e complicada. Panorama rápido: a dita “música clássica” surge da música escrita, em oposição à música folclórica, essencialmente transmitida pela tradição oral, de onde surge a dita “música popular”.

A natureza anotada da música clássica permitiu a complexidade crescente – polifonia, harmonias mais elaboradas, formas ampliadas, ritmos artificiais – que passou a caracterizá-la. A música folclórica, transmitida pela memória, depende fundamentalmente da execução – daí que é uma música totalmente derivada da técnica instrumental (ou da poesia que sustenta o canto).

A música escrita também possibilitou sua difusão internacional. Enquanto a música folclórica se resume a uma região ou etnia, dependendo de uma difusão muito lenta, demorada em várias gerações, a música anotada rapidamente se espalha, atravessando países e continentes. Enquanto o folclore mantém-se imutável por muito tempo, a música escrita se mistura, se expande, não para de se transformar. Sua rede de difusão e influência tornou a arte um fenômeno histórico global.

OK! Acordados? ;-) Agora vamos introduzir em nossa história um cidadão chamado Thomas Edison e sua invenção, o fonógrafo. Graças ao som gravado, as manifestações musicais basicamente ligadas à execução começaram a ser registradas e, principalmente, difundidas, gerando influências, criando misturas e – pela primeira vez – evoluindo historicamente. Igual à sua contraparte escrita. E agora, como diferenciá-las?

Restou a complexidade relativa da música, que comentamos acima. Mas que dureza, hein? Até hoje essa fronteira não é bem definida. Piazzolla é clássico ou popular? Tom Jobim deve ser chamado de “maestro”? Os concertos do Hekel Tavares, o que são? E GEORGE GERSHWIN?

O americano Gershwin resume bem a discussão. Cancionista de mão cheia, criador de musicais de imenso sucesso, dos maiores nomes do “Great American Songbook” (ao lado de Kern, Berlin e Porter), já rico, famoso e imortalizado aos 25 anos. O que mais poderia querer? Escrever música de concerto?

Sim, mas não foi invenção dele. Em 1924, Paul Whiteman, dono de uma orquestra de jazz muito célebre, encasquetou com um concerto de jazz sinfônico. Sem nem falar com Gershwin, mandou publicar um anúncio em que propagandeava um “concerto de jazz” de sua autoria, com data e tudo. Foi Ira, irmão do compositor, que leu o aviso no jornal. Não teve jeito e Gershwin teve que compor a obra para Whiteman, em tempo recorde.

Sem muita noção de orquestração, Gershwin entregou a obra – que chamou de “Rhapsody in blue”, para piano e jazz band – sem instrumentação para Ferde Grofé, arranjador oficial de Whiteman. A estréia foi um sucesso! Em forma de partitura para dois pianos, e em gravações para gramofone, a “Rhapsody” vendeu mais de um milhão de cópias. Grofé, em seguida, orquestrou a peça mais duas vezes. A última, para orquestra sinfônica completa, foi a que tornou-se mais conhecida.

Gershwin adorou a experiência de escrever obras de maior fôlego. Em seguida compôs um concerto para piano mais formal, o Concerto em fá, o poema sinfônico “Um americano em Paris” e, principalmente, sua ópera “Porgy and Bess”. Aprendeu a orquestrar, aprimorou sua noção formal, ganhou musculatura musical… mas a peça que permaneceu de verdade no repertório e no coração do público foi mesmo a imperfeita e imatura “Rhapsody in blue”!

O fato é que a “Rhapsody” – que Leonard Bernstein muito perspicazmente definiu não como uma composição, mas como uma colagem – tem música de um vigor impressionante. As melodias são lindas, a variedade de ritmos é empolgante; a “Rhapsody” é música que, acima de tudo, é viva e pulsante.

Sabe quem era fã? Bernstein já sabemos, mas tem outro: o venerável Arnold Schoenberg, vizinho de Gershwin na Califórnia por um tempo. Quer saber? Estou bem acompanhado: a “Rhapsody” merece o SELO DE EXCELÊNCIA DO GRANDE CARVALHO! \o/

Tchaikovsky

“O quebra-nozes”, suíte

Papai Noel, presentes, pinheirinho enfeitado… Tudo isso é muito comum no Natal, mas sabe o que é mais ainda? Especial do Roberto Carlos? Sim! Mas tem outra coisa também: apresentações do balé “O quebra-nozes”, de Tchaikovsky. A ponto de ser difícil imaginar música mais natalina que “O quebra-nozes” – à parte, é claro, “Noite feliz” e os açucarados standards americanos tocados nos shoppings.

Tchaikovsky é um compositor difícil de se lidar. Um criador inventivo, melodista incomparável, dono de uma ciência musical muito superior aos seus colegas russos. Mas, ao mesmo tempo, uma pessoa complicada, vulgar, de expressão muitas vezes superficial e – pior – excessivamente auto-indulgente.

Se obras como “Capricho italiano”, a Abertura “1822” e o Concerto para piano no. 1 resvalam no barulhento e no mau gosto, peças de maior fôlego como suas três últimas sinfonias escancaram suas angústias pessoais de um jeito quase constrangedor para nós, ouvintes. Creio mesmo que sua música mais equilibrada é a que produziu para o teatro, em especial para o balé – um gênero considerado “menor” que deve muito de sua reabilitação a Tchaikovsky.

Sim, porque se o gênero começou com compositores do porte de um Lully, de um Rameau, no século 19 estava relegado a artesãos especializados como Minkus, Drigo e Delibes. Quando um nome “sério” como Tchaikovsky entrou na área, choveram criticas. Mas as portas estavam abertas. Depois dele chegaram Stravinsky, Debussy, Ravel, Prokofiev, Satie… Os tempos dos “compositores de balé” haviam terminado.

“O quebra-nozes” é o último balé de Tchaikovsky, de 1892. Foi sua segunda colaboração com o coreógrafo Marius Petipas, logo em seguida a “A bela adormecida”. O argumento, de Petipas, é baseado em E.T.A. Hoffmann, e conta uma história bem simples: na véspera de Natal, a pequena Clara ganha, de um tio misterioso, um quebra-nozes de madeira, no formato de um homenzinho. À meia-noite, quando todos dormem, o quebra-nozes se transforma em um príncipe que, após vencer um exército de ratos que invade a casa, leva Clara a um mundo fantástico, a Terra dos Doces, onde são coroados rei e rainha, e assistem a um desfile de guloseimas de vários países e a um grande baile das flores. Ela pega no sono. Quando acorda, está novamente em casa. Teria sonhado tudo? E essa coroa de Rainha da Terra dos Doces que estava de seu lado quando acordou? Ó dúvida ;-)

O balé foi recebido friamente, mas a música de Tchaikovsky chamou a atenção. (“O quebra-nozes” se transformaria em hit natalino muito tempo depois, principalmente nos países anglófonos.) Tanto que Tchaikovsky logo a transpôs para a sala de concertos, compondo duas suítes – a primeira, que ficou imensamente célebre, apresentando as danças “étnicas”; a segunda, totalmente esquecida, resumindo a ação.

A primeira suíte começa com uma “Abertura miniatura” que revela o gosto de Tchaikovsky pela música rococó do século 18. Em seguida, seis danças de diversas origens, como Rússia, Arábia, China etc. O finale é a celebérrima “Valsa das flores”. A música flui de maneira fabolusamente fácil e é difícil não ficar encantado com as cores e as melodias de Tchaikovsky.

Assim Tchaikovsky manda muito bem – sem grandes dramas, sem choro, sem berro; só graciosidade, criatividade e leveza de espirito. E é o que esta Ilha deseja a todos: um fim-de-ano especialmente leve e feliz! Boas festas!

Elgar

Variações “Enigma”

Segunda! Véspera de Natal! E dia de continuarmos nossa série do momento, “Vareia!”, que pretende mostrar um pouquinho das variações orquestrais ao longo da história. Já comentamos obras de Brahms e Dvorák. Hoje vamos para aquele que é, provavelmente, o conjunto de variações sinfônicas mais conhecido de todos: as Variações “Enigma” do compositor inglês Edward Elgar, de 1899.

A princípio um gênero bem cerebral, aos poucos as variações foram atingindo maior força expressiva, e as referências extra-musicais não tardaram a chegar. A primeira obra que eu me lembro de unir variações a uma forma programática foi “Istar”, de Vincent d’Indy, de 1896, que além de narrar a história de Éster, tem outra peculiaridade: o tema só é apresentado no final da peça. Outro conjunto importante de variações programáticas é “Don Quixote”, de Richard Strauss, de 1898 (que só não incluí nesta série porque é para violoncelo solo e orquestra…).

Elgar segue esta linha. Através da forma de variações, não segue uma narrativa, mas descreve amigos do compositor. Cada variante do tema principal é o retrato de alguém: tem aí a esposa de Elgar, uma aluna, seu editor e assim por diante. O conjunto termina retratando ele mesmo. São quatorze variações.

E o nome “Enigma”? Ah, sim! Tem dupla motivação. A primeira é que Elgar não especificou diretamente quem eram os amigos retratados. Cada variação recebe um título críptico, às vezes iniciais (como C.A.E., R.B.T., W.N.), às vezes apelidos (como Ysobel, Dorabella, Edu), outras vezes algo mais misterioso (como Nimrod e ***). O segundo enigma é mais duvidoso: diz-se que Elgar teria incluído um segundo tema oculto, base de toda a obra, que nunca foi descoberto.

A procura pelo “tema enigma” da obra virou esporte olímpico na Inglaterra. Já chutaram de tudo: “God save the queen”, a “Arte da fuga” de Bach, a Sinfonia “Praga” de Mozart etc etc. Como Elgar morreu em 1934 e não escreveu a solução em lugar nenhum, nunca iremos descobrir a resposta ao mistério. E, quer saber?, é uma grande bobagem!

A obra por si só é suficientemente linda, e alçou Elgar à fama internacional. É sua criação mais conhecida. O trecho mais famoso – ATENÇÃO, pegue os lenços – é a nona variação, dita “Nimrod”. Nimrod é o rei babilônico, lendário caçador, citado no Antigo Testamento. Elgar descreve aqui o editor Augustus Jaeger (“jäger” em alemão significa “caçador”), aproximando o tema original ao movimento lento da Sonata “Patética” de Beethoven. Elgar aqui consegue o feito de ser extremamente emotivo sem ser piegas – uau!

Outras obras são citadas. Uma, muito marcante, é a citação de “Mar calmo e viagem próspera” de Mendelssohn, na variação “***”, que descreve uma amiga que partia para Austrália. E, como já deu para notar, as variações abrangem uma gama muito grande de episódios. Tem partes que retratam buldogues caindo na água (“G.R.S.”), tempestades (“Troyte”), um cara que fala alto demais (“W.M.B”) e assim por diante.

As Variações “Enigma”, com esses pequenos dramas, são a obra musical pequeno-burguesa por excelência. Elgar, em geral, é a própria representação da era vitoriana em música. Mas se, em outras obras esbarra na vulgaridade, aqui Elgar apresenta um retrato bastante comovente de sua época e de seu meio. A fama da obra é justificadíssima; então clica aí ;-)

Messiaen

“Quarteto para o fim dos tempos”

Cada um tem o seu fim do mundo. O do compositor Olivier Messiaen não foi nada leve: em 1940 ele foi capturado pelo exército alemão, que então invadia a França, e foi enviado para o campo de concentração de Stalag VIII, na Polônia. Saiu no ano seguinte, e de sua tenebrosa passagem pela prisão nasceu uma obra-prima: o “Quarteto para o fim dos tempos”, uma obra para clarinete, violino, piano e violoncelo baseada do Apocalipse de João.

A formação inusitada do quarteto se deve às próprias condições da vida na cadeia. Logo que chegou ao Stalag VIII, Messiaen encontrou um violoncelista, um violinista e um clarinetista. Fez amizade com seu carcereiro, que trouxe papel pautado e lápis, e assim escreveu um trio para seus companheiros músicos. Depois obteve acesso a um piano velho que encontrou na prisão e assim criou uma parte de piano para ele próprio tocar, ampliando o trio para a forma final do quarteto. Organizou a estreia da obra no campo de conentração mesmo, em um dia frio e chuvoso, para colegas e carcereiros.

O quarteto, como usual para Messiaen, tem oito movimentos, instrumentação variada e títulos muito curiosos. O primeiro se chama “Liturgia de cristal”, o segundo se chama “Vocalize para o anjo que anuncia o fim dos tempos”, o terceiro é “Abismo dos pássaros” e assim por diante. Há movimentos para o quarteto todo, outros para solo de clarinete, para duo de violoncelo e piano, para o trio sem piano, quase todas as permutações possíveis.

A música é muito característica do compositor. Ritmos malucos, longas passagens estáticas (e extáticas), melodia e harmonia muito peculiar. Como exemplo, ouça o sexto movimento, que tem o nome intrigante de “Dança de fúria para os sete trompetes”, praticamente todo em uníssono. Esse tema esquisito mas cativante, genial, só poderia sair da imaginação maluca de Messiaen!

A obra, mais ou menos do início da carreira do compositor, tornou-se muito justificadamente célebre. Não só por sua história emocionante, mas pela incrível qualidade musical. Vá em frente, sem medo – é assim sensacional!

Bom fim-de-semana! Voltamos na semana que vem, uma semana de festas – quer dizer, se o mundo não acabar até lá ;-)