Nielsen

Quinteto de sopros

“Alô? Oi, Christian! É o Carl, tudo bem?”

Foi numa manhã de outono de Copenhagen, em 1921, que uma banal ligação telefônica fez surgir não só uma, mas três belíssimas obras de arte. Carl Nielsen procurava seu amigo pianista Christian Christiansen para discutir qualquer coisa, e acabou interrompendo o ensaio alheio. A obra que estava sendo tocada antes do telefonema inoportuno era a Sinfonia concertante para oboé, clarinete, trompa e fagote de Mozart. Christiansen, que fazia o papel da “orquestra” do ensaio, foi atender o telefone, mas os solistas de sopros permaneceram tocando. E Nielsen, do outro lado da linha, escutou. E viu que era bom :)

Dessa constatação nasceu a necessidade de se compor obras para sopros. A primeira foi este Quinteto de sopros, que comentamos hoje. Nielsen projetou, em seguida, concertos para todos os cinco instrumentos. Os dois primeiros – para flauta e para clarinete – resultaram em grandes obras-primas! É uma pena que Nielsen não viveu o bastante para escrever os restantes – oboé, trompa e fagote. Taí uma de minhas maiores frustrações enquanto ouvinte :(

O Quinteto de sopros foi, portanto, o primeiro laboratório que Nielsen usou para amadurecer sua linguagem para os concertos. Mas é uma grande e importante obra com seus próprios méritos – provavelmente uma das peças de Nielsen mais executadas. A música é maravilhosa do início ao fim! O primeiro movimento é uma sonata pastoral, com um clima meio rústico que se acentua no minueto que vem a seguir. Uma ponte sombria, na qual o oboé é substituído pelo corne inglês, introduz o finale, um conjunto de variações sobre um coral do próprio compositor, sem dúvida a parte mais interessante do quinteto.

Essas variações tornam bem explícito o gosto de Nielsen em explorar as “personalidades” de cada instrumento. Há o momento da trompa, o solo do fagote, as passagens da flauta, duetos aqui e ali – a instrumentação é sempre variada e muito, muito expressiva. As harmonias e os climas vão se alternando, e de repente nos vemos em lugares bem distantes do pastoral primeiro movimento ou do rústico minueto. É realmente impressionante.

Alô? Ei, psit: clica no vídeo abaixo porque é FODA demais. Câmbio e desligo!

[Nem a captação nem a execução é das mais perfeitas… porém fiz questão de achar um vídeo que mostrasse a peça sendo tocada. Sabe como é, o prazer inenarrável de ver os cenhos franzidos e as sombrancelhas levantadas de instrumentistas de sopro lutando para manter suas respirações. ;-)]

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Liszt

Sinfonia “Fausto”

Uma das maiores obras de arte da história, sem dúvida, é a tragédia em versos “Fausto”, de Goethe, escrita entre 1775 e 1826. Sua versão da antiga história do estudioso que faz um acordo com o demônio Mefistófeles influenciou enormemente não somente a literatura, mas toda a cultura. Incontáveis criações foram inspiradas por Goethe: poemas, romances, pinturas, esculturas, peças de teatro, filmes e… obras musicais, é claro. O mito faustiano nunca deixou de incendiar as mentes de artistas e público.

Um dos criadores que mais se impressionaram com a mensagem de Goethe foi Franz Liszt. E foi inflamado por essa história que compôs sua grande obra-prima, a Sinfonia “Fausto”, de 1857. É ela que hoje recebe nosso SELO DE EXCELÊNCIA DO GRANDE CARVALHO. É demais! \o/

A Sinfonia “Fausto” de Liszt, das maiores e mais importantes criações do romantismo musical, impressiona muito por sua ousadia e inventividade. Começa que ela nunca se pretende uma narrativa da história de “Fausto”, mas sim um estudo de personalidade dos três personagens principais: Fausto, Margarida e Mefistófeles. Cada um recebe temas principais e um longuíssimo movimento para desenvolvê-los, formando assim uma trilogia.

Quer dizer: mais ou menos. Mefistófeles, de fato, é dono do último movimento, mas ele não tem temas próprios. É sensacional: repare que todos os motivos ali tocados são variações distorcidas dos temas do próprio Fausto. O que Liszt quer dizer com isso? Daí vai do gosto do freguês: o “Espírito da Negação” não pode ter música própria; ou Mefistófeles na verdade é um lado da personalidade de Fausto mesmo. Pick one. Musicalmente, encerrar a sinfonia com uma variação do início faz todo o sentido, e Liszt explora isso de maneira realmente FODÁSTICA.

A obra começa com o movimento dedicado a Fausto, que tem inúmeros temas – é um personagem complexo, de várias facetas. O primeiro motivo tornou-se particularmente famoso por seu cheiro atonal: contém todas as 12 notas da escala cromática. Não é Schoenberg, mas é “tipo Schoenberg”, sabem? :) Seguem-se a ele partes nostálgicas, partes heróicas, partes sonhadoras… É música variada, poderosa, uma meia-hora que passa muito, muito rápido.

O movimento lento é dedicado a Margarida. Seu música é delicada, melíflua, inocente, adequada à descrição que Liszt aqui tenta fazer – e ao papel que ela desempenha no final da sinfonia. Após o trecho de Mefistófeles, que já comentamos, há um epílogo em que o tema de Margarida ressurge, intocado pelo demônio, para ser base do “Coro místico” final. Sim, a Sinfonia “Fausto” tem um breve final coral! Um verso de Goethe é cantado por coro masculino e tenor solista (que não haviam participado da sinfonia até então) e isso encerra a sinfonia de maneira redentora e emocionante.

Creio mesmo que a sinfonia de Liszt é das obras mais negligenciadas do século 19. Não é nada fácil de executar, muito menos de interpretar, e mesmo a fama de “exibicionista superficial” que Liszt ganhou após a morte atrapalhou muito a difusão dessa música genial. Mas há tempo de recuperar. Sem meias-palavras: a Sinfonia “Fausto” é uma obra-prima fundamental, total DO GRANDE CARVALHO e que precisamos todos apreciar e entender. É assim sensacional? É! Então clica logo aí ;-)

[Abaixo, Bernstein, lento e intenso como sempre, num vídeo incrível!]

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Haydn

Sinfonia no. 100, “Militar”

Este é o centésimo post desta Ilha Quadrada. Em outras palavras: nestes meses, já conversamos sobre 100 obras. CEM! Não é bacana? Muito obrigado a todos pelo prestígio e pelo ótimo papo, sempre. Está sendo uma delícia! \o/

Para comemorar, quem mais poderíamos ouvir? Haydn, é claro! Bem a propósito, vamos curtir sua Sinfonia no. 100, de 1794. NÚMERO CEM. É até engraçado escrever isso. Estamos acostumados com sinfonias de números bem magrinhos: Primeira, Quarta, vá lá, Décima-Terceira. CENTÉSIMA? Uau.

Esta sinfonia foi composta por Haydn para sua segunda turnê londrina, de 1795. Haydn era uma celebridade na Inglaterra. Seus concertos, organizados pelo empresário Johann Peter Salomon eram eventos bastante disputados. Tanto que teve que dar um pulo à Inglaterra duas vezes em cinco anos – e na época não era só pegar um avião e pronto. Mas valia o esforço: lá Haydn só encontrava o sucesso, e dos grandes.

Para essas duas ocasiões ele compôs doze sinfonias DE ARREPIAR OS PELOS DO DEDÃO DO PÉ. Uma das mais emblemáticas é justamente essa 100, que ganhou o apelido de “Militar” graças ao segundo movimento. Ouça lá, é genial: é uma espécie de marcha, cheia de fanfarras e principalmente um montão de percussão “orientalizante”, como pratos e triângulos. No final do movimento, o toque do trompete – não, não é a Quinta de Mahler! – que leva a um estouro da percussão e um clímax dramático em toda a orquestra, inteiramente inesperado. Carambolas!

Dos outros movimentos, não há o que dizer: é Haydn da maior qualidade. O que significa: OUÇA CORRENDO! ;-)

Dvorák

Variações sinfônicas

E seguimos todos variando aqui na Ilha Quadrada :) Hoje é dia do segundo capítulo de nossa série “Vareia!”, que está apresentando um panorama rápido dos conjuntos de variações orquestrais, começando pelo começo: as Variações sobre um tema de Haydn, de Brahms. Seguimos pertinho, com um autor muito próximo: Dvorák.

A obra de Brahms é de 1873, foi estreada no mesmo ano e criou o imaginário das variações orquestrais. Em 1877, um Dvorák ainda meio desconhecido se aventurou no modelo brahmsiano. Pegou o tema de uma canção para coro masculino a capella que havia acabado de escrever, “Eu sou um rabequista”, e compôs 27 variações e uma fuga sobre ele. Pronto: nasciam as formidáveis Variações sinfônicas. \o/

O quanto as Variações de Dvorák devem às Variações de Brahms? Um bocado, mas creio que menos do que imaginamos. Claro que a linguagem dvorakiana nunca se afasta muito de Brahms, e é fácil classificar alguns trechos – como o que ouvimos por volta dos 13 minutos do vídeo abaixo – como próximos às Variações Haydn. Mas o ponto crucial é que o estilo de desenvolvimento temático de Dvorák é muito diferente.

Ao contrário do conjunto de Brahms, as Variações sinfônicas começam e permanecem muito próximo do tema original por bastante tempo. Somente na segunda metade da obra é que o motivo original começa a ficar menos visível – mesmo assim, ainda sempre identificável. Brahms vai muito mais a fundo, extrai muito mais do tema que está trabalhando, desde o início.

Após 27 variações, a obra termina com uma fuga pra lá de interessante e um epílogo vibrante, com alguns toques folclóricos e todo o colorido orquestral que esperamos de Dvorák. Não à toa a peça fez tanto sucesso quando o regente Hans Richter a apresentou Europa afora, dez anos depois de sua composição.

Como sempre em Dvorák, são de babar a beleza incrível das melodias e a rica inventividade dos acompanhamentos. É uma delícia, com um monte de momentos de puro deleite dvorakiano. Tudo que esse camarada escreveu gera uma satisfação quase física, quase tátil – não me canso de ouvir sua música!

Então, dê uma variada em seu repertório e delicie-se com as Variações sinfônicas de Dvorák. Se gostar, curta. Se não gostar… ah, você vai gostar com certeza! ;-)

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Mozart

Sinfonia concertante para violino, viola e orquestra

Homem é homem, menino é menino, sinfonia é sinfonia, concerto é concerto… e sinfonia concertante é o quê? Bom, aí tem debate pra mais de metro.

Sinfonia, nem precisa dizer, é uma espécie de “grande sonata para orquestra”, a princípio sem solistas. Mas isso não é inteiramente verdade. Aos poucos os compositores foram experimentando: Beethoven mesmo introduziu solistas VOCAIS em sua Nona (fora o coro), Niels Gade enfiou uma enorme parte para piano em sua Quinta, Berlioz compôs uma sinfonia para viola e orquestra e assim por diante (d’Indy, Saint-Saëns, Mahler etc etc).

Concertos, peças para solista e orquestra, têm caráter mais leve: em geral são menos voltados para o desenvolvimento temático e mais focados na exploração técnica e expressiva dos instrumentos solistas. São mais intimistas, líricos, e menos épicos. (Mesmo em obras monumentais como os concertos de Beethoven ou Brahms.) Creio que essa diferença de objetivos é o que realmente divide sinfonias de concertos, muito mais que a presença ou não de solistas.

Legal, chegamos a algum lugar :) Mas e a sinfonia concertante? Na minha opinião, é só um rótulo, criado no século 18 para designar todo concerto com mais de um solista. É um concerto com um nome diferente, e pronto. Tanto que, no romantismo, o termo desapareceu: pensemos no Concerto tríplice de Beethoven, no Concerto duplo de Brahms etc. No final das contas, o título de sinfonia concertante se eternizou por conta de duas obras somente: a Sinfonia concertante para violino, violoncelo, oboé e fagote de Haydn, e esta incrível Sinfonia concertante para violino e viola de Mozart, o assunto de hoje.

Composta em 1779, a Sinfonia concertante de Mozart poderia ser chamada, sem medo, de “Concerto para violino e viola”. Ela começa com a costumeira introdução orquestral, que carrega os temas principais a serem desenvolvidos em seguida pelos dois solistas. O primeiro movimento é a parte principal da obra, ocupando mais da metade de sua duração, e concentrando a maior parte do maravilhoso trabalho temático. Mas o movimento lento, comparativamente menor, não fica atrás em beleza. É, aliás, o ponto culminante emocional da obra – pô, estamos falando de Mozart! É maravilhosamente intenso, quase patético, lindo de doer.

E… é isso. Com Mozart é assim: a música é muita, as palavras, poucas. Ouçam, OUÇAM! :)

[A gravação abaixo é bem curiosa: os solistas são os fabulosos Norbert Brainin e Peter Schidlof, do Quarteto Amadeus, temporariamente fora de seu ambiente natural, a música de câmara. Nesse caso, aturar o som distorcido e cheio de ruído da velha gravação VHS vale a pena!]

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Schumann

“Kreisleriana”

Robert Schumann, o grande compositor romântico alemão, passou a juventude dividido entre a literatura e a música, até que se decidiu pelo piano. Mas sempre tentou unir suas duas paixões.

Foi no piano que Schumann escreveu sua melhor música. Profundamente ligadas ao romantismo literário e às aspirações de sua época, são para o piano obras-primas como “Carnaval”, as Peças de fantasia, os Estudos sinfônicos, a Fantasia em dó maior e aquela que eu considero a maior criação de Schumann: a “Kreisleriana”, um conjunto de oito peças características.

E é justamente a “Kreisleriana” que ganha hoje o SELO DE EXCELÊNCIA DO GRANDE CARVALHO. Viva! \o/O nome vem de Johannes Kreisler, personagem do escritor alemão E.T.A. Hoffmann, talvez o romântico quintessencial. Kreisler é modelado por Hoffmann como um compositor antissocial, hipersensível, de comportamento imprevisível – praticamente o arquétipo do artista do século 19. (Brahms, quando jovem, se identificou tanto com o personagem xará que chegou a assinar suas primeiras obras como “Kreisler Junior”.)

Schumann mesmo, muito no estilo da época, tinha não-somente um pseudônimo, mas três: “Eusebius”, o Schumann sonhador; “Florestan”, o Schumann impetuoso; e “Mestre Raro”, uma espécie de super ego. Os três povoaram por muitos anos toda a produção schumanniana: escritos, artigos e principalmente sua música – “Carnaval” que o diga!

Nesta “Kreisleriana”, Schumann substitui o diálogo entre Eusebius e Florestan pelo comportamento cambiante de Kreisler. São oito peças semi-independentes, ao estilo de uma suíte, cada uma delas com partes internas bastante contrastantes. A obra começa animada, em “modo Florestan”, mas muito rapidamente torna-se reflexiva; é em “modo Eusebius” que a maior parte da obra se desenvolve.

A “Kreisleriana” é um poço de inovação: rítmica, melódica, harmônica. Os motivos, geralmente de desenho irregular, soam como se fossem música folclórica de outro planeta; de quando em quando surgem passagem mais “terrestres”, voluptuosas, líricas. O efeito é inigualável. Certamente pouquíssimos compositores foram tão originais quanto o Schumann das obras para piano.

Entre as alternâncias de humor, dezenas de momento ARREPIO. Penso particularmente no sexto movimento, dos trechos mais emocionantes de toda a literatura pianística. O final é saltitante mas profundamente enigmático, por vezes dramático. É bonito demais, é instigante demais, é moderno demais… e é de 1838!

ESCUTA AÍ! A gravação abaixo, eletrizante, é de Martha Argerich, a nossa querida Martita.

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Stravinsky

“Agon”

12/12/12, 12:12.

It’s twelve tone time! \o/

Certamente todos vocês já ouviram falar do sistema dodecafônico serial, ou “técnica dos doze tons”. Ele foi inventado pelo austríaco Arnold Schoenberg por volta de 1921 (o termo que o próprio Schoenberg usou foi “descoberto”) e trata-se de uma maneira de se evitar conscientemente a tonalidade.

Hmm. Muito técnico. Vou tentar explicar – a superficialidade e meu próprio desconhecimento podem matar a exatidão, perdoem-me. Mas vamos lá: tom é, grosso modo, uma nota ou acorde fundamental que domina uma peça ou trecho musical. Uma música em dó maior, por exemplo, é dominada por esse acorde – provavelmente começa com ele e termina nele, gera tensão quando se afasta dele e tende ao “conforto”, ao “repouso”, quando a ele retorna.

OK, ainda é bastante abstrato. Mas vale dizer que toda a música ocidental composta desde o barroco (i.e., século 17) até o início do século 20 é tonal. A música popular é tonal. Nossos ouvidos estão incrivelmente habituados com a tonalidade. É a nossa língua materna musical.

MAS… as experiências românticas com cromatismo – i.e., a constante mudança de tom – demonstraram o quanto alargar um pouquinho a noção de tonalidade poderia agregar à música em termos de cor e expressão. Era um mundo novo e fascinante. Depois de Wagner e Liszt, vieram Mahler, Strauss e os impressionistas franceses (Debussy e Ravel) para explodir de vez nossos ouvidos. Já não dava para voltar atrás.

Quando Schoenberg sistematizou esse “atonalismo científico”, ele só estava caminhando nessa evolução pessoal que havia começado num cromatismo exacerbado (“Noite transfigurada”) e caído num atonalismo livre, desordenado (“Pierrô lunar”). A técnica que ele bolou consistia em construir suas obras a partir de sequências de doze notas predeterminadas. Nenhuma nota poderia ser repetida antes das outras da série serem tocadas. Assim evita-se que um som domine a música.

O sistema schoenberguiano, que o próprio criador testou em obras de feitura “clássica” como concertos, quartetos de cordas e óperas, estabeleceu-se fortemente, em especial após a Segunda Guerra. Seu caráter científico, abstrato, caiu como uma luva para artistas que desejavam se desassociar de qualquer manifestação mais de massa, “totalitária”, que cheirasse fascismo ou socialismo.

E o público? Sinceramente… nunca se comoveu muito. Se os próprios compositores em geral não estavam muito preocupados com acessibilidade e comunicabilidade, porque os ouvintes deveriam se preocupar com o que eles escreviam? Mas, de qualquer maneira, o dodecafonismo serial foi uma força motriz da música pós-1950 e um milestone histórico bastante importante, que todos devemos conhecer.

E eu? Ah, eu não sou tão fã assim de música serial. O complexo estilo schoenberguiano, levado às raias do pontilhismo por autores como Webern, não fazem a minha cabeça. Mas tenho uma idiossincrasia: gosto muito, muito mesmo, do que Igor Stravinsky empreendeu nos moldes seriais (após a morte de Schoenberg). Vai entender! Acho mesmo que é música difícil mas repleta de “viço” e que tenta, sim, fazer uma conexão mais forte com o ouvinte.

Como exemplo de serialismo vigoroso e atraente, eis a minha obra favorita de Stravinsky nesse estilo: o balé “Agon”, de 1957, para doze bailarinos. DOZE, sacaram? ;-) Não há história, mas uma série de quadros abstratos, de clima variado. A orquestra é grande mas super transparente, com uso proeminente de instrumentos como bandolim, piano, harpa e percussão.

É uma delícia! Não consigo pensar em obra mais bacana para comemorarmos 12/12/12. OUÇAM! :)

[A gravação abaixo, absolutamente fenomenal, é de Robert Craft, secretário particular de Stravinsky por quase toda a sua vivência nos EUA, e provavelmente a maior autoridade viva no compositor.]

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Enescu

Deceto de sopros

Dúvida cruel: qual o limite da música de câmara? Onde começa a música orquestral?

Começo assim indagativo pois a obra de hoje desperta certa dúvida – é o Deceto para sopros do compositor romeno George Enescu, escrito em 1906. Deceto! A palavra é tão rara que tive que pesquisar para ver se existia (Enescu chama a obra, em francês, de “Dixtuor”). Parece que sim.Deceto é uma obra escrita para um grupo de dez instrumentistas. DEZ! É uma orquestra? Ou um conjunto, tipo um quinteto, mas duas vezes maior? Xi… Na dúvida, é música de câmara, OK? :)

Enescu foi um músico realmente prodigioso. Caso raríssimo de duplo virtuose, igualmente fantástico ao violino e ao piano. E era um excepcional regente. E um belíssimo compositor, criador de obras admiráveis. Não à toa tornou-se lenda em seu país, a Romênia. Até a cidade onde nasceu foi renomeada em sua honra: de Liveni para George Enescu. :-O

A obra mais conhecida de Enescu é, sem dúvida, a Rapsódia romena no. 1, de 1901. Mas ele também compôs três notáveis sinfonias, num estilo complexo, hipercromático, próximo de Mahler ou Suk. Mais a ópera “Édipo”, sonatas para piano, sonatas para violino, quartetos de cordas… o cara era FODA mesmo!

Eu particularmente adoro música para sopros. E acho esse Deceto de Enescu – para duas flautas, dois clarinetes, dois fagotes, duas trompas, oboé e corne inglês – uma peça maravilhosa, deliciosa do início ao fim, que deveria ser muito mais conhecida.

Que harmonias lindíssimas…! E a instrumentação é tão variada, tão sinfônica, que muitas vezes fico na dúvida: é mesmo música de câmara?

Ops, voltei ao início. :-P Esqueçam tudo isso e APERTEM LOGO O PLAY!

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Brahms

Variações sobre um tema de Haydn

Já comentei que variações são uma das minhas formas favoritas. Nada mais justo do que comentarmos bastante sobre elas, em CINCO episódios somente sobre esse assunto. Bem-vindos a “Vareia!”, a nova série da Ilha Quadrada! \o/

Apesar de ser um recurso de desenvolvimento musical muito antigo, variações como peças independentes de concerto são um fenômeno bastante recente, da segunda metade do século 19.

Ei? E as Variações Goldberg de Bach, ou as Diabelli de Beethoven, só para falar das mais famosas? OK, mas me refiro especialmente a obras orquestrais. Calma lá! Chopin compôs suas Variações sobre “La ci darem la mano” para piano e orquestra já em 1827. Concordo! Só que decidi, muito arbitrariamente, focar apenas em variações puramente sinfônicas. Lidem com isso ;-)

Daí temos que pular para 1873, o ano em que Johannes Brahms resolveu pegar um tema meio bobinho, falsamente atribuído a Haydn, e compor uma série de variações sobre ele. Escreveu para dois pianos, inicialmente, mas viu que era bom e partiu para orquestrá-las. O resultado está aí: as Variações sobre um tema de Haydn, o primeiro e mais célebre conjunto de variações orquestrais da história.

E QUE MÚSICA, meus amigos! O tema, dito “Coral de Santo Antônio” e de autoria desconhecida, é simplório, mas a música que Brahms cria a partir dela é de outro planeta. Muitas vezes até nos esquecemos do motivo original. Como Bach ou Beethoven, e diferentemente de quase todo mundo, Brahms vai até o coração oculto do tema e cria um mundo absolutamente novo em torno dele.

Após a introdução que mostra o motivo “de Haydn”, seguem-se 8 variações (cada vez mais distantes do tema) e um finale solene (que retorna a ele, em trecho de rico contraponto). A ordem geral das variações se assemelha mais ou menos à de uma sinfonia: rápido, lento, moderado e rápido.

A obra foi incrivelmente influente. Diversos compositores posteriores se sentiram estimulados por esse exemplo e compuseram conjuntos de variações sinfônicas de vida independente. Mas Brahms jamais retornou ao gênero que ele mesmo inventou. E a gente aqui, chupando dedo…

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Poulenc

“Concerto campestre”

Quando falamos de cravo, já imaginamos Bach, Scarlatti, Rameau, baixo-contínuo, orquestras pequenas, ornamentações barrocas. Difícil pensar no cravo como solista de um concerto moderno, composto em 1928, acompanhado por uma orquestra sinfônica completa (e bem grande!).

Pois é o caso de uma das obras mais interessantes de Francis Poulenc, o seu “Concerto campestre”. A obra foi escrita para a cravista polonesa Wanda Landowska, grandemente responsável pelo ressurgimento do instrumento no século 20, eclipsado pelo piano ao longo do século 19. Até mesmo obras antigas eram tocadas à época no piano (até hoje se faz isso, na verdade, mas com menor frequência). Landowska fez platéias e músicos sacarem o quão bacana podia ser o cravo e estimulou diversos compositores a criarem obras novas para ele.

Vale lembrar que o cravo que Landowska usava era um cravo grandão, estilo “de concerto”, criado pela Pleyel, fabricante de pianos. Ao contrário do cravo barroco, esse “cravão” francês tem um som mais opulento, de maior presença, que consegue ser ouvido melhor perante uma orquestra sinfônica – daí a opção ousada de Poulenc em instrumentar tão ricamente seu concerto.

A peça é dividida nos três movimentos costumeiros. O espírito geral é leve e gaiato, como o título “campestre” dá a entender. No entanto, o concerto começa com uma introdução lenta e solene – certamente Poulenc queria evocar aqui a música barroca. A pompa é logo substituída por uma série de episódios divertidos e ensolarados, em que a linguagem barroca dá lugar ao neoclassicismo exuberante tão típico dos “Six” franceses.

O movimento lento é uma “siciliana”, uma dança lenta típica do barroco, muito associada ao clima pastoral que o concerto quer passar. A última parte da obra começa com um solo mega rápido e virtuosístico do cravo, que é sucedido por passagens quase histriônicas da orquestra, em estilo de fanfarras. O clima pastelão é quebrado uma ou duas vezes por passagens mais meditativas, e o concerto mesmo é encerrado silenciosamente pelo solista.

É divertido demais, repleto de sons novos e transbordante de bom humor. OUÇA DJÁ! E um excelente fim-de-semana a todos, é claro! ;-)

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