Bartók

Concerto para orquestra

Olha a reciclagem de texto aí gente! Eu já disse que homem é homem, menino é menino, sinfonia é sinfonia, concerto é concerto, concerto grosso é concerto grosso, sinfonia concertante é sinfonia concertante… e concerto para orquestra, que raios é isso?

Siga a lógica: se concerto é para solista e concerto grosso é para um grupo principal de instrumentistas, o concerto é para orquestra quando esse grupo principal é a orquestra toda. Entendeu? Há algo de “comunismo” nesse conceito – todos os intrumentos são importantes, todos têm frases virtuosísticas e claramente destacadas, todos são de alguma maneira solistas. (Na sinfonia não há isso: a orquestra sempre soa homogênea, “sinfônica”.)

Esse lance todo surgiu no começo do século 20, com os neoclássicos dos anos 1920. Parece que o primeiro a cunhar o termo foi Paul Hindemith. Desde Hindemith dezenas de concertos para orquestra apareceram no repertório. Desses, alguns se estabeleceram: Kodály, Lutoslawski, Carter e, principalmente, o de Béla Bartók, de 1943.

Bartók foi um dos cabras mais machos da história da música. Passou até fome, mas nunca se curvou a nenhum ditador, nunca puxou o saco de ninguém e manteve-se artística e politicamente íntegro até o fim. Sofreu um bocado. Se pensarmos que sua Hungria foi um barril de pólvora constante desde sempre, com a chegada constante de austríacos, fascistas, nazistas, soviéticos, incas venusianos (não, esses não!)…

Quando um regime nazifascista se estabeleceu na Hungria durante a Segunda Guerra Mundial, Bartók, totalmente discordante dele, imigrou para os Estados Unidos. Lá, passou perrengue. Doente e paupérrimo, foi sobrevivendo graças à ajuda de amigos. Um deles foi fundamental: Serge Koussevitzky, regente russo que dirigiu a Sinfônica de Boston por 25 anos.

Koussevitzky foi um dos mais importantes mecenas da música do século 20, encomendando e estreando dezenas de obras. Ele rapidamente estendeu a mão para o necessitado Bartók e encomendou-lhe uma obra para orquestra, “do jeito que você quiser”. Bartók escreveu o Concerto para orquestra, que se tornaria das peças mais populares do século e certamente a sua mais famosa.

Em termos de estrutura, o Concerto para orquestra tem o formato concêntrico, simétrico, clássico de Bartók: cinco movimentos, allegro-scherzo-andante-scherzo-allegro. Como já comentamos, Bartók era fã de geometria e proporções matemáticas. A forma em cinco partes é provavelmente a mais equilibrada de todas – um fit perfeito!

As marcas do estilo de Bartók não se restringem a isso: o movimento central é uma elegia em tudo devedora da típica “música noturna” bartokiana; os movimentos intermediários destacam características de execução (os pares de solistas bem caracterizados no segundo movimento, e a valsa caricata “invadida” no quarto movimento); e o finale que une a música popular húngara a um contraponto mais cerrado.

O que mais chama a atenção, no entanto, é a transparência da orquestração: o título da obra não é à toa. Cada seção da orquestra é destacada claramente, cada instrumentista tem o seu momento de brilhar e de estabelecer diálogos. Em pouquíssimos momentos a orquestra soa “cheia”. A textura é límpida a todo momento. É quase uma sinfonia, é meio um concerto, é totalmente fascinante.

Chega de falar. O momento agora é de ouvir. Toca Bartók!

Aliás, pega aí um vídeo. Ver o Concerto para orquestra é experiência fundamental!

Dukas

“O aprendiz de feiticeiro”

Segunda-feira é dia de série. “Mágico, fantástico, lendário” segue a todo vapor. Na semana passada falamos de “O caçador maldito” de Franck, compositor de importância capital para a música francesa. Foi com Saint-Saëns e Franck que começaram a ruir as velhas implicâncias com música sinfônica nessa França obcecada por ópera.

Franck, muito mais que Saint-Saëns, conseguiu reunir em torno de si vários compositores mais jovens que, cada um ao seu jeito, passaram a emular o mestre. Cromatismo wagneriano, forma cíclica lisztiana, extremo cuidado arquitetônico, todos os preceitos franckianos foram absorvidos por seus pupilos – entre eles Chausson, Duparc, o próprio d’Indy, Vierne…

O jovem Paul Dukas, colega de Debussy no Conservatório, não foi aluno de Franck, mas não pôde escapar à sua influência. Compôs duas obras que muito devem ao mestre: sua Sinfonia em dó maior, de 1896, e o celebérrimo poema sinfônico “O aprendiz de feiticeiro”, de 1897. Sabe o plot aviso-desafio-punição de “O caçador maldito”? Está todo ali :)

A história, baseada em uma lenda alemã transformada em poema por Goethe, é a de um pequeno camundong… ops, não! “O aprendiz de feiticeiro” conta a historinha de um jovem mago – não, não é o Harry Potter – que, para cabular o trabalho pesado que seu mestre havia lhe passado, decide enfeitiçar uma vassoura e torná-la sua escrava.

O problema é que ele sabia FAZER o feitiço, mas não DESFAZÊ-LO. A vassoura entra em freak mode, começa a destruir a oficina do grande feiticeiro, e o aprendiz, sem saber o que fazer, decide quebrá-la com um machado. Obviamente não dá certo: os pedaços da vassoura se transformam em novas vassouras, o caos impera e só com o retorno do mestre as coisas voltam ao normal.

TODO MUNDO conhece plot e música graças ao filme de Walt Disney, “Fantasia”, que botou Mickey Mouse como o aprendiz. A animação é incrível, de uma qualidade absolutamente inacreditável para 1940, e popularizou a obra de Dukas. O que pouca gente sacou é que Disney pediu para o regente Leopold Stokowski cortar a peça original em mais ou menos um terço de sua extensão, para ficar melhor no filme.

A música é maravilhosa. Começa com um “era uma vez” típico, que descreve o ateliê do feiticeiro, o aprendiz e o aviso do patrão de “não fode com tudo enquanto eu estiver fora”. Em seguida, surge o fodástico tema da vassoura-autômato, aquela marchinha maldita, hilária e aterrorizante ao mesmo tempo, e as muitas tentativas do aprendiz de desfazer a magia (ouça o tema do início retornando, mas nunca plenamente repetido). A cena da machadada é sensacional: o motivo da vassoura é literalmente quebrado em muitos pedaços que aos poucos se reúnem novamente. No final, o tema do mestre retorna e só restam lamúrios para o pobre aprendiz.

É! Está tudo na música! Dukas era mesmo DUKAS – tumdumtssss! (Irresistível. Foi mal.)

(E sempre é interessante ver a versão Mickey Mouse que, por mais mutilada que seja, ainda permanece soberba.)

BONUS TRACK: como o YouTube é mesmo sensacional, abaixo está uma versão da obra para OITO pianos! Putz!

Sibelius

Sinfonia no. 3

A gente muda, a arte muda, o mundo muda. O compositor finlandês Jean Sibelius também mudou. Começou sua carreira como um músico romântico nacionalista. Pense em obras como “Finlândia”, um poema sinfônico que é ao mesmo tempo uma declaração de amor e de guerra, ou a Sinfonia “Kullervo”, um monumento de dimensões lisztianas erigido em honra ao épico nacional, o Kalevala.

Suas duas primeiras sinfonias são nesse mesmo tom. A Primeira, de 1898, é um sombrio e agitado drama tchaikovskiano. A Segunda, de 1902, é uma construção quase bruckneriana de tom afável porém grandioso. Em 1904 compôs um concerto para violino ultrarromântico e virtuosístico, que se inseriu no cânone – feito notável para uma partitura do século 20. Sibelius estava se consagrando com um pós-romântico da estirpe de um Strauss ou Mahler.

E… freada brusca e mudança de direção! Em 1907 Sibelius surgiu com sua Sinfonia no. 3, que é TOTALMENTE DIFERENTE do que ele havia mostrado até então. Ao invés de um agitado dramatismo, um dinamismo clássico e bem delineado. Ao invés da forma expandida, lisztiana, uma construção condensada de rigor lógico. Sibelius descobriu que a sua modernidade, a sua voz própria, estava do outro lado da estrada. Não teve medo de mudar.

A Terceira Sinfonia permanece como obra símbolo dessa transição. Ela, ao contrário das anteriores, é em três movimentos bastante compactos. Os temas são curtos e bem marcados. A sinfonia começa de maneira bem transparente, num estilo “direto-ao-assunto” até inusitado para o autor. O desenvolvimento é maravilhoso! E, surpresa, o movimento termina com um coral absolutamente inesperado. FODA.

O segundo movimento fica em nível ainda mais alto. É um noturno meio lento meio moderado, meio sombrio meio leve, meio triste meio alegre: é a consagração das ambiguidades. Que música maravilhosa! O papel de scherzo que a sinfonia formalmente não tem é, de alguma maneira, preenchido por esse clima incerto – e mais ainda pelo início do finale.

Taí a grande sacada de Sibelius no finale da Terceira: pela primeira vez em sua obra, um movimento de sinfonia é um amálgama de dois tipos diferentes de andamento. Ele se inicia com uma espécie de scherzo em construção, fragmentário, muito original, que só depois de bastante engenharia se transforma em um movimento mais decidido, com um tema em forma de hino que pouco a pouco toma conta do ambiente – até terminar de repente. UAU UAU UAU!

Essa obra maravilhosa, tão cheia de incertezas, é bem complicada de se interpretar. Para ser sincero: conheço um monte de gravações, mas apenas uma me satisfaz completamente, a de Lorin Maazel em Viena (não a de Pittsburgh, bizarríssima!).

Strauss

“Quatro últimas canções”

Música clássica não é somente grandes sinfonias, colossais oratórios ou intrincados quartetos de cordas. As formas pequenas, mais líricas que épicas, também têm seu lugar. E um gênero muito associado à música popular está repleto de obras preciosas do repertório clássico: canções.

Vamos falar um pouco de terminologia? Você já deve ter ouvido falar em “lied” (e seu plural “lieder”). Tem gente que tem ojeriza ao termo “canção” e acha que a versão alemã “lied” é mais digna. Bobagem. Canção é canção. Se é de Schubert ou Cazuza não faz diferença. O termo alemão é genérico – então por que usá-lo como se fosse específico?

(Em francês até existe um termo mais específico para a canção não-popular: “mélodie”, em oposição a “chanson”. Em inglês inventaram a tal “artsong”, um termo artificial. Mas em português não há nada disso. Portanto, como falamos português, chame “O rei dos elfos” de canção, não de “lied”, e ficamos todos felizes.)

Exatamente como na música popular, a canção da música clássica é curtinha, tem forma simples e uma ligação extraordinária com a poesia. Em muitíssimos casos, é o poema quem dá as cartas, determinando absolutamente tudo. E por isso mesmo esse é um gênero complicado: se você não entende alemão ou francês ou russo, vai ter uma compreensão bem limitada das canções de Schumann, Fauré ou Mussorgsky, por exemplo.

Daí que relativamente poucas canções tornaram-se realmente populares. Algumas de Schubert, certo Mahler e, principalmente, as comoventes últimas criações de Richard Strauss, empacotadas como “Quatro últimas canções”, de 1948. Para soprano com acompanhamento orquestral, elas foram compostas poucos meses antes do falecimento do compositor e tratam justamente do tema da morte.

As quatro canções não foram pensadas como um ciclo. O que as liga? O tema da despedida, sem dúvida. O estilo também. Três delas usam poemas de Hermann Hesse, a outra um texto de Joseph von Eichendorff. Quando o editor de Strauss notou essas ligações e associou a temática à própria morte do compositor, não teve dúvida: mudou um pouquinho a ordem das canções e uniu todas em um ciclo. Ficou ótimo!

A primeira canção chama-se “Primavera” (sobre Hesse) e trata da despedida e da saudade. O tom geral é agridoce (apesar do início sombrio quando o texto fala da “cripta”), meio pastoral meio melancólico. A segunda canção, também sobre Hesse, é “Setembro”. Setembro é o fim do verão no hemisfério norte; a sensação das folhas caindo e do jardim verdejante que entra em decadência é quase visual. E quando a poesia menciona o último brilho de sol do verão, Strauss entra em “modo Puccini” por alguns segundos.

A terceira canção, “Indo dormir” (ainda Hesse), mantém a temática evidente do descanso eterno. É incrivelmente tocante em sua mistura de canção de ninar e despedida. O solo de violino é de cortar o coração – não, cortar não, fatiar em pedaços bem fininhos! Ô dó, ô dó!

O ciclo fecha com a canção que Strauss curiosamente compôs primeiro, “No pôr-do-sol”, sobre Eichendorff. O título já diz muito. Vou me abster de comentários, à exceção de um: a palavra-tema de todas as canções só é mencionada UMA VEZ no ciclo todo, e justamente é a ÚLTIMA coisa dita, suavemente: “morte”.

Nada há de mais comovente. E aí, está com o coração em dia? ;-)

[Óbvio que é obrigatório ler os poemas! Aqui, inclusive em português.]

Liszt

Sonata em si menor

A primeira metade do século 19 foi um período pleno de revolução para a música. Logo de cara há Beethoven, que praticamente definiu o que seria o romantismo musical. Depois um monte de inovadores: Berlioz, Schumann, Wagner… cada implodindo à sua maneira as convenções.

Mas não tem jeito: para mim o maior dos revolucionários pós-Beethoven foi mesmo Franz Liszt, que a posteridade meio que insiste em ignorar. Esse cara inventou tanta coisa que é difícil de imaginar a música do século 19 sem ele. Música programática? Sim, Berlioz fez antes, mas Liszt consolidou o gênero. Cromatismo? Sim, Wagner o explorou intensamente, mas foi Liszt quem assentou esse terreno. Forma cíclica? Berlioz e mesmo Schubert e Schumann já haviam experimentado algo, mas sem as invenções de Liszt ela não teria se tornado o principal artifício formal do romantismo.

Aquela que é provavelmente a maior obra de Liszt é um exemplo muito claro de como ele conseguia capturar um modelo existente, levá-lo ao extremo e transformá-lo em molde para as gerações seguintes: a Sonata para piano em si menor. Sua descrição é algo familiar: uma obra para piano em quatro movimentos tocados sem interrupção, com uma base temática unificadora. Opa, não seria essa a Fantasia “Wanderer” de Schubert? ;-)

O lance é que Liszt pega o modelo schubertiano e faz miséria. Primeiro que o aspecto geral da Sonata em si menor é fascinantemente próximo de uma forma-sonata, o que leva a interpretações dúbias: seria uma sonata em um só grande movimento ou uma sonata em quatro movimentos ligados? Esse ilusionismo à la Escher nos deixa ainda mais perplexos quando percebemos que a Sonata em si menor tem um monte de temas recorrentes – uns cinco, mais ou menos – e eles formam um panorama extremamente variado.

Além disso, ao contrário da fantasia de Schubert, as fronteiras formais da sonata de Liszt são muito borradas, bem difíceis de serem vistas. Se não prestamos atenção, passamos de uma seção a outra e ficamos irremediavelmente perdidos: “onde estamos agora?” é a pergunta recorrente nesta obra :)

A sonata começa com uma introdução lenta bastante sombria, com um tema declaratório que se inicia apenas esboçado, delineado. Em seguida, esse motivo fica mais rápido e dramático e dá origem a uma seção lírica muito bonita. Não sem algum drama, a sonata se encaminha para um movimento lento, um scherzo em estilo fugado (vale lembrar que há também uma fuga na fantasia de Schubert, mas no finale) e à última seção, que resolve quase todas as tensões. Quase, porque a conclusão silenciosa, cheia de mistério, ainda deixa muita coisa no ar. Uau!

Some à maravilhosa engenharia lisztiana o incrível virtuosismo de execução e a beleza das melodias. O resultado, não por acaso, é uma obra DO GRANDE CARVALHO, das maiores do romantismo musical e sem nenhuma dúvida a mais importante sonata para piano desde Beethoven. Merece o SELO DE EXCELÊNCIA? Ô! E sobra! Então clica!

Brahms

Sexteto de cordas no. 1

Ah, o jovem Brahms!

Geralmente associamos a música de Johannes Brahms à sua imagem de patriarca severo, incréu e rude, com aquela barba imensa sobre a pança e apego incomum à perfeição formal e à economia de meios.

Mas esse julgamento, se não é de todo errado para o Brahms tardio, exclui totalmente uma faceta menos conhecida e muito importante de sua produção: sua obra de juventude. Quando moço, Brahms era um vulcão de paixão e imaginação romântica. Ele chegou a assinar obras com o pseudônimo de “Kreisler Jr”, evocando o personagem de E.T.A. Hoffmann – quer dizer, mais romântico que isso, impossível!

Como eu já disse aqui, toda a obra de Brahms esconde uma intensa emoção, mas o que faltou dizer é que durante um bom tempo essa emoção manteve-se à mostra, totalmente exposta. A música do jovem Brahms PEGA FOGO sem nenhum pudor – acho mesmo que é das mais intensas que já foram compostas. Brahms, frio e formal? Você tá maluco…!

Dou exemplos: o Trio para piano e cordas no. 1. A Sonata para piano no. 3. As Baladas para piano, op. 10. O Concerto para piano e orquestra no. 1. E minha obra de juventude predileta: o Sexteto de cordas no. 1, composto em 1860. Brahms tinha 27 anos e era romântico até a ponta da unha do dedão do pé!

O sexteto (formação clássica: dois violinos, duas violas e dois violoncelos) começa nas nuvens, com um tema absolutamente arrebatador no violoncelo, explorado a seguir pelos violinos e por todo o conjunto. O longo e espaçoso primeiro movimento desenvolve um clima meio pastoral, e chega a quantidades inéditas de ARREPIOS – o que é aquele segundo tema do violoncelo (exposto mais ou menos por volta dos 2:30)? PUTA MERDA. Peraí que vou cortar ambos os pulsos e já volto!

O segundo movimento é LENDÁRIO: um tema-e-variações a partir de um motivo em ritmo binário (pense numa espécie de marcha lenta), de sabor arcaizante. É de uma fantasia tão transbordante que é até difícil de descrever. O scherzo alivia um tanto as tensões, com um trio saltitante. E o finale retoma o clima do primeiro movimento (inclusive com temática bem similar), mas numa temperatura emocional já bem mais morna. Ufa ufa!

Gentes, o negócio é fazer o seguinte: separem os lenços – boa quantidade – e APERTEM LOGO ESSE PLAY! ;-)

Franck

“O caçador maldito”

A semana começa e a nossa série, “Mágico, fantástico, lendário”, continua! Já falamos d”O franco-atirador” de Weber e d”O navio fantasma” de Wagner. O personagem de hoje tem muito em comum com esses dois anteriores, com uma grande diferença (ATENÇÃO, SPOILER!): ele se dá mal.

Trata-se do poema sinfônico “O caçador maldito”, do belga César Franck, de 1882. Como nas obras anteriores, a historinha é baseada em antigas lendas alemãs. Aqui o protagonista é um conde renano que desafia as ordens da igreja e resolve caçar em pleno domingo de manhã. Como punição, é amaldiçoado: se transforma em caça, sendo perseguido pelos lendários caçadores fantasmas por toda a eternidade, sem descanso.

A peça começa com uma sobreposição genial: o toque de caça do conde, desafiador, e os cânticos da igreja. Em seguida, o conde embrenha-se na floresta – a fanfarra de aventura constantemente martelada. No meio da caçada, uma seção mais lenta, aterrorizante: a maldição vai tomando forma. E a caçada recomeça, mas as posições se invertem: os caçadores agora são os espíritos dos quais o conde deve fugir, para todo o sempre.

Não é difícil sacar os pontos de contato entre as lendas do atirador, do holandês e do caçador: a soberba que leva à transgressão que leva à punição. Se você observar, praticamente todos os contos de fada, de todas as culturas, são moralizantes. A comunidade é sempre cruel: há muito pouco perdão para quem dá uma escorregada.

E a música de Franck? Empolgante, dos grandes poemas sinfônicos franceses do século 19. Não que tenha sido uma forma muito cultivada na França. Foram Franck e Saint-Saëns que trouxeram esse gênero, fundamentalmente alemão, para terras francesas. Não à toa, o maior e mais famoso de todos os poemas sinfônicos franceses deve muitíssimo a “O caçador maldito”, em todos os sentidos. Mas é assunto para a semana que vem. ;-)

Camargo Guarnieri

Concerto para piano no. 1

Vambora, vambora!

Hoje a minha cidade natal completa 459 anos. E, se a música de Heitor Villa-Lobos representa muito bem o Rio de Janeiro – orgânico, sinuoso, caótico, exuberante -, minha querida São Paulo tem em Camargo Guarnieri o seu perfeito retrato musical: arquitetural, geométrica, dinâmica, agressiva. Sortudo o Brasil, por ter ambas as cidades e, principalmente, os dois compositores!

Camargo Guarnieri não é exatamente paulistano: nasceu em Tietê, região de Itu, interior de São Paulo. Seu pai amava ópera e deu nome de compositores a seus filhos: Belline (sic), Rossine (sic novamente) e Mozart. Sim! Camargo Guarnieri, um dos maiores músicos que o Brasil já teve, foi batizado Mozart! Claro que é esquisito para um compositor profissional, de nível mundial, se chamar Mozart (alô, pais! não façam isso com seus filhos – eles serão adultos um dia!) e por isso Camargo Guarnieri, assim que pôde, aboliu definitivamente o uso de seu primeiro nome.

Logo cedo foi pra São Paulo desenvolver sua carreira, e de lá nunca mais saiu. Ficou intrinsecamente ligado à cidade. Muito próximo de Mário de Andrade, apropriou-se do discurso “antropofágico”. Sabe o quadro “Abapuru”, de Tarsila do Amaral, que une o imaginário indigenista às formas limpas e cores primárias da pintura moderna? Camargo Guarnieri, de maneira bem consciente, criou seu equivalente musical: todo o arcabouço neoclássico stravinskiano a serviço de melodias modais puxadas da música do sertão mineiro e nordestino.

Funciona maravilhosamente! Esse perfume modal é a assinatura de Camargo Guarnieri – aliado à forma perfeitamente estruturada e à instrumentação transparente, aguda, tornou sua obra a mistura perfeita entre a manifestação brasileira e a língua franca musical que se falava na época em todo mundo. (Acho mesmo que o neoclassicismo está para a música assim como o Estilo Internacional está para a arquitetura. Aliás, são duas manifestações exatamente contemporâneas. Seria então Camargo Guarnieri o Niemeyer das salas de concerto? Hehehe!)

Um exemplo fantástico do estilo de Camargo Guarnieri é seu Concerto para piano no. 1, de 1931. Ele começa logo de cara com um tema pentatônico (escuta lá, é uma melodia tipo “chinesa”), num ritmo sincopado. É um excelente cartão de visitas. A obra tem forte personalidade própria, mas é difícil deixar de reparar nas influências de Bartók, Ravel e até do concerto russo romântico (Rachmaninoff e passagens líricas cujo modalismo curiosamente faz lembrar Gershwin). No fulgurante finale, Camargo Guarnieri esboça uma aproximação com Villa-Lobos, nos ritmos e em alguns tiques melódicos. É de cair o teto da casa!

Parabéns, São Paulo! E um ótimo fim-de-semana para todos nós aqui da Ilha! \o/

Stravinsky

“Petrushka”

É uma verdade universalmente conhecida que cultura é uma teia de referências. Quando hoje acordei de sonhos intran­quilos, fiquei pensando em como isso se materializa em termos de citações. Se querem mesmo ouvir o que penso, a primeira coisa que vão querer saber é que criar e procurar referências é MUITO legal. É tipo a luz da nossa vida, a labareda na nossa carne… não, mas quase :)

Todas as famílias felizes se parecem mas o uso de citações em música varia bastante. Na verdade, o recurso de se apropriar de um tema e fazer uma referência explícita para o ouvinte, é muito antigo. No início do Renascimento, por exemplo, compositores inventaram a chamada “missa paródia”, que se trata de uma missa construída a partir de um tema já existente. Um ficou clássico: a canção “O homem armado”, usado à exaustão em missas de dezenas de compositores, inclusive Josquin e Palestrina.

Mas foi no século 20 que o uso citação evoluiu. Compositores começaram a explorá-lo sistematicamente como meio de se construir um universo referencial próprio. O exemplo mais relevante é Mahler: suas sinfonias citam o tempo inteiro, desde temas populares (“Frère Jacques” na “Titã”), obras anteriores (canções da “A trompa mágica do jovem” nas sinfonias 2 a 5) e mesmo pequenos fragmentos recorrentes do compositor (a abertura da Quinta no meio da Quarta)… Mahler assim criou um mundo mahleriano coerente para suas obras habitarem, mais ou menos do mesmo jeito como Tolkien inventou a Terra Média.

Existe um extremo da citação. que é a colagem. E daí é impossível não pensar na grande colagem quintessencial: o maravilhoso balé “Petrushka”, de Stravinsky, de 1911. O plot conta a historinha de um marionete controlado por um mágico charlatão em uma agitadíssima feira popular de Terça-feira Gorda.

Para recriar o ambiente de feira, Stravinsky lança mão do recurso de justapor ritmos, melodias e até tons diferentes. O resultado é incrível. A atmosfera maluca, caótica, é quase palpável. Há momentos em que ficamos perdidos nessa multidão – já não sabemos o que devemos seguir. É estupefaciente :)

Vamos à caça das referências? Algumas: a canção francesa “Ela tinha uma perna de pau” na cena das dançarinas e o realejo; a melodia russa “Descendo a Peterskaia” na dança na feira no quarto ato; e, quando a Bailiarina se exibe para o Mouro, as citações das valsas do precursor da família Strauss, Joseph Lanner: “Die Schönbrunner” e as “Danças da Estíria”.

Com essa mistura toda de harmonia bitonal, ritmos complexos, música de circo, valsa vienense e todo tipo de tranqueira kitsch, Stravinsky mostra que do mais banal pode surgir o mais sublime. “Petrushka” praticamente inaugurou a era do corte rápido e da edição frenética – pilares de muitas das manifestações artísticas atuais, da música ao cinema ao comercial de TV.

Por tudo isso e por essa modernidade eternamente desconcertante, “Petrushka” recebe o SELO DE EXCELÊNCIA DO GRANDE CARVALHO. É demais mesmo! E olha só quanto vídeo vou colocar: uma sensacional encenação do Bolshoi (com coreografia, figurinos e cenários da estreia), uma versão em concerto, e os temas citados para sua diversão. Desapareço mas volto em grande estilo, fala aí ;-)

Abaixo, uma versão para concerto, mais comumente realizada (as diferenças musicais são pequenas):

BÔNUS: algumas das melodias citadas.

“Ela tem uma perna de pau”. Uau!

“Descendo a Peterskaia”, no mais glorioso estilo soviético:

“Die Schönbrunner”, valsinha de Lanner:

E, ainda de Lanner, as “Danças da Estíria”:

Wagner

“O navio fantasma”, abertura

Mais uma segunda, mais um capítulo de nossa série “Mágico, fantástico, lendário”. Na semana passada falamos de “O franco-atirador”. Hoje o assunto é descendente direto da seminal obra de Weber: Richard Wagner.

Wagner tinha adoração por Weber. Chegou a publicar um pungente discurso sobre ele, no qual dizia que todo alemão deveria tê-lo em mais alta estima. Faz sentido – todo aquele mundo fantástico das lendas e contos da carochinha medievais alemães, tão crucialmente importante para o romantismo germânico, está em “O franco-atirador”. Wagner iria além.

Antes disso, perambulou um pouco por outras tradições: Shakespeare e principalmente a “grand opéra” francesa, de autores como Meyerbeer e Halévy, tão refletida no enorme drama histórico “Rienzi”. Weber foi aparecer na ópera de Wagner só em 1843, em “O navio fantasma”. Pra nunca mais sair.

A historinha da opera é conhecida: o capitão do navio Holandês Voador certa vez amaldiçoou e invocou o demo. Desde então ficou condenado a vagar eternamente pelos mares, como um espectro. Pois que o capitão norueguês Daland, após forte tempestade, acabou encontrando, sem saber, o Holandês. Coisa vai, coisa vem, e por caprichos da ópera, calhou de entregar a mão de sua filha Senta ao Holandês, que assim se livraria da maldição. Deu certo! Quer dizer, quase, pois o ex-namorado de Senta, Erik, meio que estraga tudo. No final – ATENÇÃO, SPOILER -, o Holandês vai embora, desolado, e Senta, fiel até o fim, se joga no oceano.

Parece que a redenção do Holandês enfim acontece, mas apenas no pós-morte. Não é preciso ser muito especialista para ver os temas tipicamente wagnerianos já todos aqui: fidelidade, amor em vida impossível, sacrifício, redenção pelo amor.

Destaco aqui a abertura, famosíssima, que já começa quente: a baita tempestade, de estremecer a platéia. Depois, os temas do Holandês e de Senta. É fabuloso, muito teatral, e incrivelmente familiar. “O navio fantasma” é digno do melhor Wagner? Não, sem dúvida. Mas foi um interessante início de uma jornada realmente épica – das maiores da história da música.