Schubert

Missa no. 6

1828!

O último ano de Franz Schubert, que nos presenteou com algumas das maiores obras-primas de todos os tempos, continua aqui na Ilha Quadrada.

Já conversamos sobre a Nona Sinfonia e sobre a Fantasia em fá menor para piano a quatro mãos. Para provar o quanto esse ano foi profícuo e variado, a obra de hoje será bastante diferente. Ouviremos a sua sexta missa, a Missa em mi bemol maior, D. 950, composta na primavera de 1828.

Missa de Schubert? Sim! Difícil associar o compositor, aquele gordito rebelde e festeiro, eternamente sifilítico, à música sacra. Pois que esta é a sua sexta missa! As quatro primeiras foram obras de juventude. A quinta é uma peça plenamente madura, de 1822. Apesar do temperamento de Schubert, não é muito difícil pensar em motivações para essas cinco missas. Dou duas: treino e a busca por uma posição oficial (emprego, pois).

Como já comentei outro dia, música sacra não é somente uma manifestação espiritual, mas também formal. A missa, como uma estrutura fechada, é excelente oportunidade para compositores testarem seus recursos e compararem-se aos demais. Por isso, à época, missas como exercícios de estudante e como base de concursos eram bastante comuns.

OK. Mas esta Missa em mi bemol, criada em uma época em que Schubert vivia um ápice de imaginação e liberdade criativa? Após peças tão revolucionárias como a Fantasia D. 940, por que uma missa assim certinha, com fugas e tudo mais? Tenho humildemente uma hipótese: a obra foi composta por necessidade de emulação. A morte de Beethoven, em 1827, inflamou a mente de Schubert. Beethoven era o maior compositor de Viena e Schubert se sentia esmagado. Esta Sexta Missa provavelmente foi uma resposta schubertiana à “Missa solene” em particular, e à obra de Beethoven em geral.

“Também mereço um lugar neste mundo”, teria dito Schubert no leito de morte, e creio que boa parte de sua produção foi mesmo derivada dessa necessidade de aprovação.

O fato é que a Sexta Missa é uma obra maravilhosa! Uma peça profundamente coral, com poucas passagens solistas, digna e linda companheira da Nona Sinfonia, com quem rivaliza em duração e grandiosidade. Quão schubertiana é essa missa? Bom, o “Kyrie” inicial é inequivocamente típico do compositor, e todo o longo trecho da crucificação dentro do “Credo” é dominado pela ambiguidade maior/menor tão cara a Schubert. Mas gosto de exemplificar o que é essa obra pelo curioso início do “Sanctus”: ao mesmo tempo inovador em sua instabilidade harmônica e convencional na fuga que logo se segue.

A bipolaridade entre o interiorizado estilo “Schubert tardio” e a forma exteriorizada da missa é justamente a tônica da obra. Seria a última e fascinante tentativa do autor de fazer uma música “para os outros”. Depois só faria música para si mesmo – e para nós, da posteridade. Sortudos somos.

Brahms

Quarteto de cordas no. 3

[Este post foi trazido a você pelo AMIGO INTERNAUTA. Ueba! E, uia, Beethoven não venceu desta vez…]

Nosso amigo Johannes Brahms foi um dos primeiros compositores a ter plena consciência do passado. Já foi dito que Brahms, na verdade, criou o próprio modelo do “compositor clássico”: o cara cujo trabalho é estudar profundamente o passado e utilizar essa herança para construir um futuro solidamente ancorado na tradição. O músico como um erudito, mais do que como um poeta – OK, vá lá: se alguém realmente inventou isso, concedemos que tenha sido mesmo Brahms.

Nem sempre Brahms revela essa faceta de cientista. Volta e meia ele se permitia soltar mais. Porém, é fácil notar que, ao se aventurar em determinados gêneros, a sombra do passado o assustava mais. Foi assim nas sinfonias. Brahms empurrou com a barriga a sua Primeira Sinfonia por décadas. O resultado é maravilhoso, mas sente-se nele a reverência com que o autor trata o gênero – a música é tudo, menos espontânea.

A mesma coisa aconteceu quando Brahms resolveu escrever quartetos de cordas. O gênero, totalmente ligado aos grandes mestres do passado, como Haydn, Mozart e Beethoven, pareceu a Brahms exigir obras de peso. Foi já bem maduro, portanto, que experimentou escrever quartetos. Começou com dois ao mesmo tempo, em 1873. Percebe-se em cada uma de suas notas o esforço do compositor para escrever algo relevante, digno. São obras difíceis, concentradas, sérias, feitas para durar, que admiramos mais do que amamos.

Peso beethoveniano tirado das costas, Brahms podia voltar a ser mais ele mesmo. Aconteceu na Segunda Sinfonia. E aconteceu no Quarteto de cordas no. 3, de 1875. Mais solto, Brahms criou – agora sim – um quarteto muito mais leve, repleto daquele viço que sempre associamos à produção de câmara brahmsiana.

Que beleza de música! A obra começa aos saltitos, já anunciando seu clima ensolarado. O segundo movimento é um andante de profunda beleza, dramático em momentos, mas nunca desolado. Em seguida, um scherzo típico de Brahms – meio enigmático, meio rústico, agitado mais no interior que no exterior. E o finale gigantesco, um conjunto delicioso de variações sobre um tema alegre, falsamente simples.

Com tais maravilhas, como desassociar o nome de Brahms da música de câmara? Deliciem-se! E bom fim-de-semana! \o/

[Abaixo, gravação histórica do fenomenal Quarteto Amadeus. Obrigado, YouTube!]

Gomes

“O guarani”, abertura

Hoje comemora-se o aniversário desta República Federativa do Brasil. Ela é novinha, tem somente 123 anos. Nasceu em 15 de novembro de 1889, batizada de República dos Estados Unidos do Brasil – uia, já fomos estadunidenses -, num golpe militar que despachou um monarca popular mas francamente desinteressado.

Antes éramos bizarramente o Império do Brasil. O país se desanexou de Portugal em 1822, num lance de gabinete, mas manteve os mesmos governantes – a família real portuguesa, agora apoiada por uma oligarquia local que temia a volta do Pacto Colonial. Criação surreal: ex-colonizados criando um novo império na América, sem mudar o comando, em uma época em que impérios já começavam a ruir na Europa.

O imperador derrubado pelos militares em 1889 era Pedro II, um sujeito até culto e bem-intencionado. Gostava de filosofia, ciência e de artes. Manteve correspondência com Richard Wagner e esteve presente ao primeiro Festival de Bayreuth. E mandou um compositor campineiro, Antônio Carlos Gomes, para a Itália estudar.

A história todo mundo conhece: nhô Tonico de Campinas chegou arrebentando, terminou o curso rapidinho e compôs a ópera “O guarani”, baseada no romance de José de Alencar, que estreou em 1870 no Scala de Milão. Foi um imenso sucesso, jamais repetido por nenhum outro compositor brasileiro na Europa. Quando o regime caiu no Brasil, Gomes preferiu ficar na Itália, para só voltar em 1896, convidado para dirigir o Conservatório de Belém. Morreu em seguida.

Gomes é provavelmente o nome maior da música brasileira do Segundo Império. Talvez único. Significativo da nossa imaturidade musical à época: a música de Gomes, a despeito de ser bem-feita e dramaticamente eficiente, de original não tem muito. É ópera italiana de apostila. Influenciou pouquíssima gente aqui no Brasil. Os românticos que lhe sucederam, como Alberto Nepomuceno, Alexandre Levy, Francisco Braga e Leopoldo Miguez, foram todos ligados ao regime republicano e à música alemã.

(Miguez chegou a compor um hino nacional para o novo governo, que o povo não gostou e que teve de se tornar o “hino da república”, até hoje ensinado nas escolas.)

O que ficou de Gomes? No repertório, pouca coisa. Um movimento de uma sonata para cordas, dito “Burrico de pau”, uma canção (“Quem sabe?”), a “Alvorada” da ópera “O escravo” e principalmente a abertura de “O guarani”, abaixo.

Oficialmente “protofonia” (AMIGO INTERNAUTA, será que existe outra abertura que tenha recebido este curioso nome? Cartas para a redação!), é um potpourri de temas da ópera. O comecinho todo brasileiro conhece, graças ao programa oficial de rádio “A voz do Brasil”. Seguem um momento lírico, outro dançante (“O guarani” é uma ópera com grande balé) e um ápice dramático. Termina da maneira convencional de sempre.

A impressão que fica é: OK, parece Suppé, parece Verdi, parece música romântica de ópera genérica. Rola um vazio. O que tem isso de especial?

Bom, julguem vocês :) E bom feriado!

Sibelius

Sinfonia no. 5

Todos morrendo de ansiedade! Quarta-feira, dia de homenagear com a comenda mais gloriosa da internet brasileira do meu Brasil-sil-sil: o SELO DO GRANDE CARVALHO. \o/

Aqui é satisfação garantida e recomendo tirar as crianças da sala, porque a obra de hoje é MUITO FODA: vamos ouvir a Sinfonia no. 5 do finlandês Jean Sibelius.

Putz, nem sei como começar. Conheci a música de Sibelius exatamente através dessa sinfonia, há uns 15 anos, e foi uma paixão arrebatadora. Por semanas, eu não conseguia ouvir outra coisa. O que eram esses sons? O que significa essa estrutura? Meu cérebro pegava fogo!

A Quinta de Sibelius é talvez sua obra mais famosa. Foi composta em 1919. Ela (e, mais radicalmente, a Quarta) se situa num momento de transição de sua obra – de um compositor nitidamente pós-romântico, de filiação tchaikovskiana evidente, para um autor mais moderno e individual. E a palavra que pode resumir bem o estilo maduro de Sibelius é: concentração.

Exemplifico. A sinfonia é dividida em três movimentos, mas essa divisão é ilusória. Olhando com lupa é relativamente simples enxergar nela movimentos ocultos, comprimidos lado-a-lado ou completamente misturados. O primeiro bloco sintetiza um primeiro movimento moderado com um scherzo mais agitado. O segundo bloco é o movimento lento, um tema com variações. E o terceiro bloco é um amálgama de finale agitado com finale majestoso (às vezes sobrepostos). Tudo concentrado, realmente apertadinho, com pouquíssimos temas que geram uns aos outros, em menos de 30 minutos de música. Tudo é concentração e economia de meios. (Sibelius iria além em suas obras posteriores!)

ARREPIO TOTAL: a sinfonia se inicia com as trompas, que clareiam o ambiente como se fosse o sol se esgueirando entre as nuvens. Em seguida, temas bem básicos começam a se espalhar, a se misturar, a crescer de maneira incrivelmente orgânica. É música com muitas vírgulas e pouquíssimos pontos finais. Somos levados por esse fluxo e nem percebemos que o clima não parou de mudar desde o início. Quando nos damos conta, já estamos na transição MAIS FODA DA HISTÓRIA, que nos leva do andamento moderado para o scherzo, mais rítmico, de contornos mais definidos. A gente não quer, mas o movimento termina. E que término, meus amigos. ARREPIO DUPLO!

O miolo da sinfonia é um conjunto de variações sobre um tema de encantadora simplicidade. É um show de invenção harmônica, mas principalmente uma manifestação puríssima de beleza. Putz. Em seguida, com pausa mínima, começa o finale, esse bloco extraordinário que consegue misturar música rápida e música lenta sem ser exatamente nenhuma das duas coisas. Não consigo explicar bem: ouça e descubra!

Ah. Cuidado com o finalzinho – nele tem pegadinha do Sibelius. RÁ!

Gente, é incrível demais. Nem ouse não clicar no play. A Quinta de Sibelius é demais DO GRANDE CARVALHO!

[O vídeo abaixo – extraordinário – traz um dos grandes especialistas em Sibelius, seu conterrâneo Jukka-Pekka Saraste, em concerto na Noruega.]

Martinu

Concerto para piano no. 4, “Encantações”

Já comentei aqui: a música do tcheco Bohuslav Martinu é uma das minhas grandes paixões. Até que ela entrou na minha vida relativamente tarde – escutei uma obra de Martinu pela primeira vez há seis anos. Era o Concerto para oboé. A segunda obra que conheci foi justamente a peça que iremos comentar hoje: o Concerto para piano no. 4, dito “Encantações”.

Martinu morreu em 1959. É, portanto, um contemporâneo mais ou menos exato de Bartók ou Poulenc. O que fico sempre me perguntando: por que um compositor tão criativo, com um estilo tão distintivo, não é mais reconhecido? Por que uma obra-prima como o Concerto para piano no. 4 não é mais ouvida?

Acho que a resposta está na própria posição de Martinu na “política musical” do século 20. O nosso século (sou de 1978, posso chamar o século 20 de “nosso”?) foi uma época bem ingrata para os criadores musicais. A revolução trazida principalmente pela chamada “segunda escola vienense” – leia-se Schoenberg e pupilos – colocou vários compositores em situação delicada. Ou se definiam fortemente nessa vanguarda, ou eram irremediavelmente taxados de anacrônicos.

Um dos poucos que conseguiram transitar bem, fora de qualquer corrente, foi Bartók, para mim o grande ponto de equilíbrio da música do século 20. Stravinsky também navegou nessas águas como quis, criando seus próprios caminhos. Quando desejou ser neoclássico, vestir a “peruca do papai Bach” (como satirizou Schoenberg), o fez; quando achou interessante ser serialista, mandou ver nos doze tons.

Mas a maioria dos compositores se viu esmagada de alguma maneira. Martinu foi um desses. Mudou diversas vezes de linguagem, oscilando entre o francamente irônico (ao modo dos “Six” parisienses), o secamente mecânico (oppa neoclassical gangnam style) e o abertamente romântico. Onde encaixar o cara? Nesse limbo cruel, Martinu foi esquecido. Ô dó.

Supresa: após sua fase americana, ele criou um estilo completamente novo E maravilhoso! Anotem aí: este Concerto no. 4, a Sinfonia no. 6, as suítes sinfônicas “Afrescos de Piero della Francesca”, “Parábolas” e “Estampas”, o Concerto para piano no. 5… obras incríveis, muito pessoais, difíceis de serem classificadas. Devem ser ouvidas!

O Concerto no. 4 é dividido em dois movimentos, ambos de feitura muito livre. Eles misturam diversos tipos de música. Não existe claramente um movimento lento ou agitado. Os temas surgem e vão embora, os climas vão se alternando. Alguns motivos essenciais se repetem (notem o final), mas é raro – em geral, a música é um fluxo contínuo e mutante. A orquestração é inusitada, repleta de combinações timbrísticas sensacionais. O que é esse diálogo com a harpa no segundo movimento? E mesmo o comecinho da obra?

É tanta novidade, é tanta maravilha – e você não conhece ainda? CLICA AÍ NO PLAY. Depois me agradeça nos comentários ;-)

Schubert

Fantasia para piano a quatro mãos, em fá menor

Bem-vindos a 1828.

1828? Sim! Hoje continua (ou começa?) a nossa série dedicada ao último ano de vida de Franz Schubert – uma época complicada para ele, mas que nos gerou obras-primas como nenhuma outra. Virou lenda.

Na semana passada comentamos sobre a Sinfonia no. 9, a “Grande”, que por muito tempo imaginava-se que era do último ano de Schubert. Não, foi composta um pouco antes. Hoje vamos falar de uma obra criada em janeiro de 1828: a Fantasia em fá menor para piano a quatro mãos.

Como já disse uma vez aqui nesta Ilha, a prática de piano a quatro mãos era comum no século 19. Mais mãos, mais “orquestral” e rica – harmonicamente, contrapontisticamente – fica a música. Além disso, é uma atividade lúdica, divertida, para os intérpretes. Schubert era conhecido por participar de saraus em que grandes grupos faziam música e brincavam juntos – as “schubertíadas”. Por isso a relativamente grande quantidade de música para piano a quatro mãos que compôs.

Não só por isso! Tocar piano a dois é algo que exige certa intimidade. É sentar bem juntinho, coloca mão pra lá, joga mão pra cá, um monte de esbarrões… E Schubert dava aulas para uma moça, a condessa Karoline Esterházy, por quem estava apaixonado. Compôs a Fantasia pensando nela. Dedicou a peça a ela. Hmmmmmm. ;-)

Segundas intenções à parte, o fato é que a Fantasia é uma obra impressionante. Vejam o título – “fantasia” – indicando uma peça de forma mais livre. Mas calma lá. Ela é dividida em quatro movimentos, exatamente como uma sonata, tocados sem interrupção e compartilhando temas. (Esquema bem parecido com o da Fantasia “Wanderer”, obra anterior para piano solo.) É diferente, mas alguns anos depois nenhum compositor teria medo de chamar peça assim de “sonata” – Liszt que o diga!

A Fantasia começa com um tema absolutamente memorável, que ressurgirá no finale, tanto recapitulado literalmente quanto servindo de base para uma imensa fuga. Após a fuga, um final inesperado – sombrio, meio estranho, simplesmente fantástico.

Desnecessário dizer que esta Fantasia, publicada postumamente, suscitou grande e duradoura admiração. Segue conquistando o coração dos ouvintes e músicos. E Schubert, que teria só alguns meses de vida, faria mais, muito mais. Curta a Fantasia e… semana que vem nossa saga continua :)

Smetana

Quarteto de cordas no. 1, “Da minha vida”

[Este post foi trazido a você pelo AMIGO INTERNAUTA. Cheers!]

Conhecemos Bedrich Smetana principalmente pelo monumental ciclo de poemas sinfônicos “Minha pátria” e por sua ópera nacionalista “A noiva vendida”. Mas a produção de Smetana tem muitas riquezas a nos oferecer.

Uma das mais preciosas é o seu Quarteto de cordas no. 1, dito “Da minha vida”. Aliás, que vida a de Smetana! Nascido numa parte da Boêmia falante de alemão (época do Império Austro-Húngaro), engajou-se na “primavera dos povos” de 1848, como revolucionário. Casou-se, teve quatro filhos, três deles mortos na infância. Foi trabalhar na Suécia. Arranjou uma aluna-amante sueca. A esposa morreu em seguida. Voltou para a Boêmia, foi morar com o irmão e casou-se com a concunhada, dezesseis anos mais nova. Fundou o primeiro teatro de ópera em língua tcheca, que teve de aprender na marra, a duras penas. Tornou-se o grande líder musical nacionalista tcheco. Famoso e influente, ficou surdo. Compôs o ciclo “Minha pátria” praticamente todo sem ouvir-lhe um só som. Morreu meio louco, muito doente e aclamado como o pai da música tcheca.

Ufa, ufa. Agora tome fôlego :)

Este Quarteto no. 1 é de 1876. Smetana morreu em 1884. É, portanto, uma autobiografia parcial – ele ainda faria muita coisa importante. Mas este ano representa um ponto importante da vida do compositor: foi quando ficou claro que sua surdez era grave e definitiva. Daí a necessidade de um testamento – o Quarteto “Da minha vida” é uma espécie de “Heiligenstadt” posto em música.

A obra começa de maneira dramática – a exposição de seu ideais de vida e arte -, continua feliz e vigorosa – uma vida afetiva agitada – e atinge um ápice de doçura e profundidade – a paz da maturidade.

Mas o ponto culminante do quarteto todo está mesmo no final do último movimento. Até então uma dança vigorosa – o bem-sucedido esforço de Smetana em busca de uma arte nacional tcheca -, ele fica sombrio de repente. Uma nota estridente e sustentada passa a dominar a atmosfera – é o zumbido de seu ouvido doente. O tema do primeiro movimento retorna – a arte como salvação – e o quarteto termina resignado. É arrasador e emocionante, muito sincero e, acima de tudo, muito humano.

Fiquem com o testemunho extraordinário desse maravilhoso, e pouco reconhecido, compositor. E bom fim-de-semana! \o/

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Ravel

“A valsa”

A hoje inofensiva valsa já foi considerada inebriante, capaz de fazer “bons cidadãos” cometerem atos ofensivos aos “costumes”. Acho que a culpa era dos rodopios. Faça o teste aí: saia do Facebook por um instante e dê umas giradas. (OK, não tente se acabou de comer.) Surge uma zonzeira mesmo.

Tergiverso. O fato é que a valsa, inicialmente coisa de pobre lascivo, no final do século 19 já tinha se tornado o símbolo perfeito de um certo status quo – a aristocracia centro-europeia. As valsas de Johann Strauss Jr e de Émile Waldteufel eram o próprio bom-mocismo em forma de música.

O tempo passou, o século virou, a guerra veio, e a aristocracia já tinha ido pro buraco. Com ela, a valsa. Tornou-se decadente, deprimente, irremediavelmente cafona, uma sombra de um mundo que já não existia mais.

Esse é justamente o plot de uma das obras orquestrais mais famosas do francês Maurice Ravel, “A valsa”, de 1920. É uma grande valsa sinfônica. Ela começa lentamente, atinge um ápice e termina em grande e abrupto caos. A imagem oficial é de um salão de baile visto acima das nuvens, que vamos atravessando até vermos de perto.

Legal. Mas a minha visão é mais psicodélica. “A valsa” é como se Strauss Jr tivesse tomado mescalina – a obra começa com torpor, continua em euforia e termina em terror. É uma valsa lisérgica, distorcida e apocalíptica, como uma viagem ruim.

Sensacional, totalmente anticonvencional e digno retrato de uma belle époque que, em 1920 – a Primeira Guerra terminara há pouco – estava se tornando cada vez mais distante.

Vamos! Rodopiem!

Stravinsky

“A sagração da primavera”

Hoje é quarta, o dia mais esperado da semana. Sabem por quê? Porque é dia de entregar o SELO DE EXCELÊNCIA DO GRANDE CARVALHO, a maior honraria da música clássica mundial, quiçá universal! (Só perdendo para o Prêmio Bravo, é claro. Pun intended.)

Atenção para a reciclagem de texto:

Anteontem morreu outro importante compositor contemporâneo, o americano Elliott Carter. Carter foi um prodígio de produtividade e longevidade: viveu 103 anos, compondo até seus últimos dias. Sua última obra é de agosto deste ano.

Isso já falamos ontem. O que não comentamos é que a obra que mais influenciou Elliott Carter, que definiu sua carreira como compositor, é justamente a agraciada de hoje: “A sagração da primavera”, de Igor Stravinsky.

Gentes, vejam só: a obra, decisiva para os rumos da música do século 20, moderna e chocante até para os ouvidos atuais, é uma velhinha de 99 anos. Grandes obras-primas, música digna do GRANDE CARVALHO, é assim mesmo: fresca e atual para sempre.

Stravinsky teve muito de sua carreira ligada a uma companha de dança, os Balés Russos, empresa capitaneada por um dos maiores mecenas da história, Sergei Diaghilev. O jovem Stravinsky ainda era um compositor obscuro, aluno de Rimsky-Korsakov, quando Diaghilev o chamou – primeiro para um arranjo de Chopin, depois para o que viria a ser o balé “O pássaro de fogo”, sua primeira obra-prima.

Ainda de linguagem romântica, bem korsakoviana, “O pássaro de fogo” foi um sucesso. O que o público parisiense não esperava era que, no ano seguinte, Stravinsky e Diaghilev apresentassem uma obra tão diferente como “Petrushka”. QUE CHOQUE! “Petrushka” é uma verdadeira festa de colagens, citações, ritmos, cores… moderno pacas! E também foi um sucesso.

Em 1913, a dupla apavorou de novo, com “A sagração da primavera”. E não foi um sucesso – foi um escândalo completo. Na estreia, um dos eventos mais famosos da história, espectadores se agrediam com gritos, ofensas e guardachuvadas. Entre vaias e assobios, ninguém ouviu a música. Uns meses depois, em forma de concerto, a “Sagração” foi um putz êxito. (Cá entre nós, ela se consolidou nesse formato – encenações completas são relativamente raras.)

O que ninguém na tumultuada estreia parisiense ouviu: a música é uma revolução total. É o primitivo e o instinto posto em música, como nunca tinha sido feito antes. Difícil descrever. Em mais ou menos trinta minutos – que passam voando -, nossos ouvidos são constantemente desafiados por combinações rítmicas, harmônicas e tímbricas absolutamente inéditas e MUITO FODAS. É aterrorizante, é excitante, é sensorialmente maravilhoso, é intelectualmente instigante. E a mocinha morre no final. (Ops. Spoiler.)

Não à toa a “Sagração” influenciou tremendamente toda a geração que se seguiu. Além de Carter, autores como Villa-Lobos ficaram entusiasmados pela obra de Stravinsky (“Rudepoema” que o diga). O interessante é que Stravinsky não quis usar novamente o molde. OK, é possível escutar algo da “Sagração” em “As bodas”, por exemplo. Mas, essencialmente, essa Rússia primitiva que ela evoca não voltaria mais. A “Sagração” foi um fenômeno totalmente definidor – mas isolado.

Eu tenho, cá pra mim, que “A sagração da primavera” é a maior OBRA DE ARTE do século 20. Não obra musical. Obra de arte, no geral. Não tem Picasso ou Mann que rivalize.

Acho, por isso, que TODO SER HUMANO deveria conhecer essa obra, e bem. Tinha que fazer parte dos direitos básicos do cidadão. Tipo saber ler e escrever. Fazer contas. E conhecer “A sagração da primavera”. Não necessariamente nessa ordem :)

Chopin

Sonata para piano no. 2

Ontem morreu outro importante compositor contemporâneo, o americano Elliott Carter. Carter foi um prodígio de produtividade e longevidade: viveu 103 anos, compondo até seus últimos dias. Sua última obra é de agosto deste ano.

Ao contrário de Hans Werner Henze, preciso dizer que nunca entendi NEM UM POUCO a música de Carter. De linhagem obviamente pós-weberniana, sua linguagem ainda me é completamente incompreensível. Quem sabe um dia?

Para homenageá-lo, algo “conservador” mas curiosamente moderno: a Sonata no. 2 de Frédéric Chopin, célebre por seu movimento lento, uma marcha fúnebre.

Chopin, aquele dos açucarados “Noturnos”, moderno? SIM! A obra é de 1839. A estrutura, em quatro movimentos, parece convencional. Mas dá só uma olhada de perto. O primeiro, após uma introdução lenta, é agitado e turbulento, com um “demonismo” pouco ligado ao nome de Chopin. OK. O segundo é um scherzo relativamente pesado, que só relaxa com um longuíssimo trio, de melancolia tipicamente chopiniana. OK.

O scherzo termina meio interrogativo, já encaminhando o clima do terceiro movimento, bem diferente: uma marcha fúnebre, obviamente sombria, porém seca, praticamente livre de sentimentalismos (à parte a seção central, lírica e toda “embelezada”). Hmm, interessante, já começaram a pipocar pontos de interrogação nas nossas mentes. Mas não é só isso: o enigma continua. Após a desolação agreste da marcha fúnebre, um quarto movimento curtíssimo, mega rápido, esquisito, anguloso, que parece não querer dizer nada. É assim, pá, pum, acabou. Uau!

Cacete, o que quis Chopin com esse finale? Os pontos de interrogação da marcha fúnebre se multiplicam. A impressão final da sonata é mais que desoladora, é devastadora. A marcha fúnebre, como comumente no romantismo, deveria ser resolvida por movimentos rápidos, mais afirmativos (vide o Quinteto para piano de Schumann). Não, Chopin a continua com um movimento que só reforça o sentimento de estranheza. Para a morte, não há solução.

Isso é moderno. Será que Carter gostava de Chopin?