Beethoven

Sonata para piano no. 23, “Appassionata”

Eu me lembro como se fosse hoje – era 1988 e havíamos comprado um aparelho de som com CD player. Uau, aquilo era muito revolucionário. O aparelho era enorme, modular. Só a parte do CD devia pesar alguns quilos. A caixa de som era quase do tamanho de uma criança pequena, e pesava tanto quanto. Era um adorável trambolho. Hoje em dia ninguém tem mais aparelho de som…

Enfim, o aparelho tinha CD! O nosso som anterior, um Polyvox prateado lindo de morrer, não. Isso era muito excitante, mas não tínhamos nenhum “disco laser” (sim, falava-se desse jeito) para ouvir. Fomos então ao Eldorado, em São Paulo, que era mais uma enorme loja de departamentos do que um shopping center, para resolver isso. No gigante salão de música, uma das estantes era dedicada a CDs – boa parte, talvez a maioria, de música clássica.

Pois é. Pouca gente se dá conta disso, mas foi a música clássica que impulsionou a criação do som digital e do compact disc. Akio Morita, da Sony, era fã de música sinfônica e amigo pessoal de Herbert von Karajan. Além de participar ativamente da criação do CD junto com a Philips, a Sony comprou a CBS, o grande selo americano. Como foi o pessoal da música clássica que primeiro embarcou no CD, entusiasmado com a qualidade do áudio, a maior parte dos “discos lasers” que eram lançados no mercado era dedicada aos clássicos – em geral remasterizações.

Voltando ao Eldorado: compramos alguns CDs para poder experimentar o novo som. Eu tinha 10 anos, não entendia nada de nada (sei lá se evoluí muito desde então) e a seleção foi meio aleatória: Gershwin do Michael Tilson Thomas, a Nona de Beethoven do Lorin Maazel, e três discos do Vladimir Horowitz. Tudo CBS, made in Brazil (menos um, que era DG importado). Dos álbuns do Horowitz, dois eram coletâneas – “Horowitz in Moscow” e “Favorite Encores” – e um era dedicado a três sonatas de Beethoven: “Ao luar”, “Patética” e “Appassionata”.

OK, longo nariz de cera, mas chegamos ao assunto: eu me apaixonei pela “Appassionata”! Que música incrível, quanta força, quanto drama, quanta beleza! De fato, ainda tenho essa sonata como das minhas favoritas, até hoje. E me é impossível ouvir a obra sem me lembrar dos primeiros dias daquele aparelho de som.

A Sonata no. 23 foi composta em 1805. Ganhou o apelido de “Appassionata” bem depois, depois da morte de Beethoven. Acho apropriado – a obra começa de cara com uma introdução solene que leva a uma explosão de paixão romântica, com milhões de enormes acordes. Vale lembrar que esta sonata pertence ao período intermediário do compositor, quando tudo que Beethoven escrevia era maior-que-a-vida.

A obra tem três movimentos. O andamento intermediário é um conjunto de variações sobre um tema de simplicidade schubertiana – muito contrastante com o espírito épico do início da sonata. A peça termina com um presto dramático, meio escuro, que leva a uma conclusão de arrepiar. Olha, a gente escuta e dá vontade de ser pianista, de esmurrar o piano, pular, berrar… caramba, como Beethoven é intenso!

A “Appassionata” merece a fama que tem: é música muito representativa da fase intermediária de Beethoven, e de todo o nascente romantismo musical. Importante, linda… e exciting as hell! E, pra mim, traz lembranças incríveis de infância. Tem coisas que só Beethoven consegue fazer…

Brahms

Quinteto para clarinete

Tem tantos aspectos incríveis pra mencionar sobre o maravilhoso Quinteto para clarinete de Brahms que eu nem sei por onde começar.

Tem a historinha de Brahms descobrindo tardiamente o clarinete: foi em 1890, depois de decidir se aposentar, que conheceu Richard Mühlfeld, clarinetista da orquestra de Meiningen. Encantou-se pelo instrumento e acabou abandonando a ideia de parar de compor. Mandou ver logo em quatro obras encantadoras para o clarinete, composta em um intervalo de quatro anos: um Trio para clarinete, violoncelo e piano, este Quinteto para clarinete e cordas, e duas Sonatas para clarinete e piano. Santo Mühlfeld!

Tem a historinha de Mozart. Sabe-se, Mozart também se apaixonou pelo clarinete no final da vida, e compôs duas grandes obras-primas para ele: um Concerto para clarinete e um Quinteto para clarinete e cordas. Brahms seguiu-lhe o exemplo, tanto na formação, tanto na forma do finale – um tema com cinco variações. Santo Mozart!

Tem a historinha da música cigana. Ainda adolescente, Brahms trabalhou como pianista acompanhador de um violinista húngaro amigo seu, Eduard Reményi. Foi Reményi que lhe mostrou a música cigana, e a experiência foi inesquecível. Há incontáveis traços dessa música tão particular em toda a obra de Brahms, mesmo as mais sérias e abstratas – e é impossível pensar no sublime movimento lento deste Quinteto para clarinete sem o tempero cigano. Santo Reményi!

Tem a historinha de Bad Ischl, a cidade em que Brahms, depois de certa idade, passava todos os verões. Solteiro, livre e feliz (“Livre mas feliz” era o seu motto pessoal), dedicava o tempo para andar na natureza, distribuir balas para as crianças, beber nos bares… e compor. Muito. Praticamente todas as obras da maturidade brahmsiana surgiram em Bad Ischl – inclusive as quatro para clarinete. Santa cidade!

Tem a historinha da forma cíclica. Brahms não era muito ligado a “ideia fixa”, temas recorrentes, formas de dupla-função, essa coisarada toda. Ele dava imenso valor à arquitetura, sim, mas de um jeito mais clássico. Há sim uma grande unidade em suas obras, conquistadas menos por esse modelo lisztiano de reaproveitamento temático e mais através do enriquecimento de motivos que surgem de células bem básicas. Temas explicitamente recorrentes são raros em sua produção – me lembro da Terceira Sinfonia, da Sonata para violino no. 1… e do Quinteto para clarinete, que termina com uma citação de CONGELAR O SANGUE do tema que abre a obra. Santa forma cíclica!

Tem a historinha do intermezzo. Brahms meio que aboliu o scherzo de estilo beethoveniano em suas obras. Nota lá: a maioria absoluta delas tem um intermezzo de andamento moderado. (Exceções: o Quinteto para piano, a Quarta Sinfonia.) A Terceira Sinfonia quase chega a ter dois movimentos lentos. Neste Quinteto para clarinete, Brahms faz de novo um intermezzo, bem tranquilo e ensolarado, que acaba se transformando em uma página bem rápida e empolgante, o grande alívio de um quinteto que é pura melancolia. Santo intermezzo!

E, por fim, tem a historinha do outono. Este Quinteto é de 1891. Brahms morreria em 1897. Não era velho, apesar da barbona. Mas as obras deste final de vida apresentam todas uma característica outonal irresistível: uma nostalgia agridoce, um sentimento de “boa vida bem vivida” misturado a uma certa melancoliazinha de fim de viage. O Quinteto para clarinete e cordas é talvez a obra outonal por excelência, a própria definição desse sentimento ao mesmo tempo tão difuso e tão preciso. Santo outono!

Será que faltou alguma coisa? Sim – faltou dizer que o Quinteto para clarinete e cordas de Brahms é DO GRANDE CARVALHO. Vai, vai lá, escuta logo e depois me diz se tem alguma outra historinha para eu contar :)

Mahler

“A trompa mágica do jovem”

Canções são peças de vida independente, na grande maioria das vezes. Podem ser até agrupadas, por tema ou por fonte poética, mas em geral os compositores não tentam fazer de suas coleções sequências com narrativas específicas. (As exceções mais famosas são “A viagem de inverno”, de Schubert, e “Amor e vida de uma mulher”, de Schumann.) Daí que a palavra “ciclo” comumente utilizada para designar coletâneas de canções é meio enganosa. Será que há um tique sinfônico que nos faz enxergar estruturas onde não há?

Um caso clássico é o da coleção “A trompa mágica do jovem”, composta por Gustav Mahler entre 1892 e 1901. Ela nunca foi projetada como um ciclo. O próprio compositor mexeu nas canções, tirando números e acrescentando outros, e até hoje regentes e cantores escolhem como querem fazer caso a caso.

O que une essas doze canções? A fonte poética: a coletânea de poemas folclóricos alemães “Des knaben wunderhorn” (“A trompa mágica do jovem”), reunidos por Armin e Brentano em três volumes publicados entre 1805 e 1808. “Trompa mágica” não é um instrumento musical de poderes extraordinários – na verdade, é uma “cornucópia”, aquele grande chifre de onde não param de sair alimentos e riquezas de todo tipo. O nome poderia ser liberalmente traduzido como “O tesouro da juventude” porque era esse mesmo o objetivo da coletânea – que cada criança alemã tivesse contato com uma ~infinidade~ de textos folclóricos.

Folclore alemão. Já dá pra sacar o espírito geral da “Trompa mágica” – guerra, fome, certa crueldade, amor meio tosco e misticismo idem. Mahler, para sua coletânea, escolheu doze dos poemas. Porém, após a primeira publicação, em 1899, acabou pegando duas delas emprestadas – uma foi para a Segunda Sinfonia (“Luz primordial”) e outra foi para a Terceira Sinfonia (“Três anjos cantam”). Mais tarde, em 1901, Mahler acrescentou dois números para a coletânea voltar a ter doze canções: “Revelge” (“Toque do clarim”) e “O tamborzinho”.

Em geral dá pra dividir as doze canções em dois tipos: as militares e as amorosas. Algumas fogem desse esquema – exemplo célebre é “A prédica de Santo Antônio de Pádua aos peixes”, cuja versão orquestral é o scherzo da Segunda Sinfonia -, mas essa dualidade resume bem o espírito da coleção. Mahler assume de bom grado uma visão francamente irônica e antirromântica do texto folclórico: ao contrário, é o grotesco e o bizarro que ganham destaque. A poesia popular, em Mahler, é menos a lembrança de um passado idealizado e mais a representação quase freudiana da psiquê universal. As uniões de antigo e moderno, de banal e sublime, de ingênuo e irônico são o encanto dessas canções.

Mahler não especificou as vozes de cada número – isso fica a cargo dos intérpretes. Em algumas canções o texto dá a entender um diálogo, então tornou-se comum transformá-las em duetos (com voz masculina e voz feminina). Funciona muito bem e é assim que é feito na maioria das gravações. As canções de cunho militar são cantadas obviamente por homens; as mais amorosas (ou que insinuam um eu-poético feminino) são cantadas por mulheres.

Como já comentamos, a ordem dos números também não é especificada por Mahler. Não dá pra enxergar nenhuma estrutura, na verdade. Vai do gosto do freguês. Em geral ordena-se as canções de maneira que as vozes se alternem, criando maior variedade.

A música de Mahler é tão boa, tão expressiva e original, que podemos curtir as canções sem dominar o alemão. Mas vale a pena procurar as letras e conhecer o contexto de cada número – a invenção mahleriana ganha cores realmente especiais. E é muito divertido! As investidas mal-sucedidas da moça no rapaz em “Esforço inútil”; o duelo musical entre o cuco e o rouxinol, arbitrado pelo burro (há relinchos!) em “Elogio do alto intelecto”; a diferença entre o heroísmo wagneriano do soldado e a delicadeza de sua namorada em “A canção noturna do sentinela”… tudo isso fica ainda mais saboroso quando entendemos o que se passa.

Já falei algumas vezes que Mahler é uma espécie de demiurgo, um criador de mundos. E a “Trompa mágica” é, talvez, o ingrediente principal desse universo mahleriano. Todas as suas sinfonias até a Oitava são dominadas, se não pelas canções em si (a Segunda, a Terceira, a Quarta), no mínimo pela atmosfera e temática “wunderhorniana”.

É engraçado: Mahler tinha como fonte inesgotável de inspiração uma obra cujo título é… “cornucópia”. Faz todo o sentido :)

Saint-Saëns

Concerto para piano no. 4

E chegamos ao último capítulo de nossa saga romântica! Começamos lá com Field e Chopin, passamos por Schumann e Grieg e concluímos com Liszt e seu parzinho inseparável: Camille Saint-Saëns!

Saint-Saëns foi, ao lado de Franck, figura de proa da música francesa da segunda metade do século 19. Vale lembrar que a cena musical da França dessa época era amplamente dominada pela ópera. Música instrumental ficava relegada a um longínquo segundo plano. Essas polaridades só se inverteram nas últimas décadas dos 1800, e Saint-Saëns tem muito a ver com isso – apesar de não ter escapado de tentar emplacar uma ópera bem ao gosto da freguesia, com cenários exóticos e um monte de balés, bacanais etc. OK, deixa pra lá ;-)

Apesar de ser visto costumeiramente como um conservador, Saint-Saëns tinha grande atração pela obra de Liszt e suas inovações formais. E prova maior dessa filiação é este soberbo Concerto para piano no. 4, de 1875. O quanto ele bebeu na fonte do Concerto no. 1 de Liszt é até difícil medir…!

Vamos lá: quatro movimentos quase sem interrupção (dessa vez a breve pausa acontece entre o movimento lento e o scherzo, bem no meio da obra); um tema domina todo o concerto, que é praticamente transformado numa grande variação; a ênfase, portanto, está no desenvolvimento e nos processos de transformação temática. É uma obra muito mais cerebrina que virtuosística, de engenharia realmente notável.

A ordem dos movimentos é similar à da obra de Liszt: allegro-andante-scherzo-finale. Mas o allegro inicial é desta vez bastante contido, todo em meios-tons, e já é em si algo como um tema-e-variações. Outra diferença: o motivo principal do concerto não está ali, mas no segundo andamento. É uma melodia em formato de hino, muito saintsaensiana (lembra a Sinfonia “Órgão”?). Esse motivo que é, na verdade, o motor do concerto.

Prova disso está na passagem do scherzo para o finale: ao contrário do que acontece no Liszt, aqui é o andante que é convocado para construir essa transição. Saint-Saëns elabora cuidadosamente essa ponte para que o tema-hino ressurja em toda a sua glória. É a conclusão triunfal e lógica de toda uma estrutura que foi construída justamente para este momento.

Para o ouvinte é uma delícia. Há uma satisfação quase tátil com a melodia meio grudenta do finale, e o ouvinte não sabe bem o motivo. Revelo a mágica: ela é tão interessante porque Saint-Saëns já havia dado gostinhos dela desde o começo, através de fragmentos, variações e insinuações espalhados por toda a obra. Quando o tema-hino desenvolve todo o seu potencial no último movimento, ele já nos é familiar.

Isso, amigos, é storytelling. Afinal, tão importante quanto o quê é contado, é como é contado. Certo? ;-)

Assim encerramos nosso passeio pelo concerto para piano do século 19. Foi só um recorte, claro. Há muita música que poderíamos ter comentado (por exemplo, Brahms, ele em si um capítulo à parte), mas o essencial está aí. Espero que tenham curtido a jornada – porque semana que vem começa outra!

Honegger

Sinfonia no. 3, “Sinfonia litúrgica”

Guerras são eventos terríveis, que afetam mais que o cotidiano de países – ficam marcados permanentemente na psiquê de gerações. E é através da arte que esse processo fica visível. Incontáveis obras literárias, visuais, cinematográficas, teatrais foram criadas tendo a guerra como assunto, direta ou indiretamente.

Na música não foi diferente. A minha “era de ouro musical”, a primeira metade do século 20, sofreu não somente com uma guerra de grandes proporções, mas DUAS. Duas gerações de compositores lidaram diretamente com esses conflitos. Ravel, por exemplo, dirigiu caminhão na Primeira Guerra. Vaughan Williams foi maqueiro – carregava soldados feridos. Berg serviu o exército austro-húngaro e sua experiência de caserna foi grande inspiração para “Wozzeck”.

Apesar de nacional de um país neutro no conflito, a Suíça, Arthur Honegger viveu intensamente a Segunda Guerra Mundial. Morava em Paris à época da ocupação nazista e fez parte da Resistência Francesa. Foi fortemente afetado pela situação e, pouco após o fim da guerra, compôs uma das obras mais emblemáticas do período: sua Terceira Sinfonia, dita “Sinfonia litúrgica”.

“Litúrgica”? Sim. Não, não é uma obra sacra, nem há partes vocais. Mas a ideia principal da missa de requiem domina toda a sinfonia – a busca da paz. Obedecendo ao padrão neoclássico dos anos 1940, Honegger estruturou a obra em três movimentos. Todos têm títulos latinos, extraídos do requiem: “Dies irae”, “De profundis clamavi” e “Dona nobis pacem”. O arco, do conflito à paz, é evidente.

Os movimentos externos são agitados e representam o mundo em guerra. O primeiro é das páginas mais agressivas e intensas de todo o repertório – é o próprio caos causado pela guerra. O segundo andamento tem clima completamente oposto: é introspectivo, meditativo. “De profundis clamavi” é uma oração, uma súplica por perdão e salvação.

O terceiro movimento funciona como uma interrupção da oração e uma volta ao mundo real: uma marcha grotesca, insistente, brutal, domina toda a orquestra até alcançar o terrível cataclisma – uma baita dissonância, diga-se de passagem! Esse clímax, porém, marca a mudança à qual a sinfonia ansiava: a “pacem” tão pedida enfim é alcançada. Ela é simbolizada por um tema que já havia aparecido, escondidinho, nos movimentos anteriores. A obra termina da maneira mais delicada e suave possível.

Creio mesmo que esta é a das viradas mais incríveis e emocionantes da história da sinfonia. Curiosamente, outra Terceira Sinfonia, composta dois anos antes, tem arquitetura bastante similar: a de Bohuslav Martinu. Papo para uma outra sexta-feira ;-)

Voltando a Honneger: TEM DE OUVIR. Sua Terceira é uma das grandes obras-primas sinfônicas do século 20; é repleta de música impactante e é profundamente emocionante do início ao fim.

Schubert

Fantasia “Wanderer”

Schubert compôs canções. Muitas, e várias delas serviram de base para obras instrumentais. Vêm à minha cabeça as mais famosas: o Quarteto de cordas no. 14, baseado na canção “A morte e a donzela”, e o Quinteto para piano e cordas, dito “A truta”, sobre a canção de mesmo nome.

Mas de todas as peças schubertianas baseadas em canções, a minha favorita é mesmo a Fantasia para piano, D. 760, de 1822. Ela usa como base a canção “O andarilho” (“Der Wanderer” no original, e por o apelido de Fantasia “Wanderer” que a obra recebeu), de 1816, que é a seguinte:

A canção é estruturada em quatro partes. Preste atenção na segunda parte, a mais lenta e soturna de todas. É desse motivo que Schubert extrairá todo o material temático da Fantasia. Isso fica particularmente explícito no segundo movimento, um conjunto de variações sobre o tema – exatamente como nas peças de câmara citadas acima!

Mas a coisa é ainda mais intrincada e sutil: os outros três movimentos da Fantasia (todos tocados sem interrupção) também são baseados nessa melodia, distorcida ao ponto do não-reconhecimento. A obra resulta, portanto, numa mistura muito sofisticada de sonata e de variação, e é certamente por isso que Schubert chamou a obra de “Fantasia” e não de “Sonata”. Fosse 1850 e ele não teria tal pudor!

O último movimento da Fantasia é especialmente surpreendente: é uma espécie de fuga sobre uma variação do tema da canção. É extremamente difícil para o intérprete, e mega excitante para o ouvinte. Mas minha parte predileta é o movimento lento, em que Schubert – à parte a maravilha da engenharia que sustenta a obra – atinge níveis absurdos de sublimidade. Existe essa palavra? Bom, que seja: é sublime, causa apneia, é DO GRANDE CARVALHO!

Janácek

Sinfonietta

Fanfarras são coisas bem legais. Não parece, mas são. Eu me lembro de duas experiências pessoais com fanfarras: uma no próprio colégio em que eu estudava, cuja banda marcial ensaiava nas noites de quinta-feira; outra quando fui vizinho de uma escola que tinha um grupo que praticava todos os sábados. Era divertido ouvir aquele monte de clarins, tubas, trombones, todos tentando fazer juntos um som coerente.

O tcheco Léos Janácek teve experiência similar lá pelos idos de 1925 e ficou intrigado com a ideia de compor uma fanfarra. A fome juntou-se à vontade de comer quando a organização de um festival de ginástica da cidade de Brno chamou o compositor para criar uma obra para o evento.

(Gente, agora para tudo: que maravilha de mundo é esse em que um EVENTO REGIONAL DE GINÁSTICA pode encomendar obras de… JANÁCEK!)

Foi assim, meio prosaicamente, que nasceu uma das obras mais conhecidas de Janácek, que ganhou o nome de Sinfonietta. Não uma sinfonia full-fledged, mas algo no meio do caminho. Acho que a estrutura não usual (cinco movimentos de andamento moderado, bem curtinhos) explica o nome. Mais ainda: a Sinfonietta, no fundo no fundo, é uma experiência com o estilo de fanfarra.

A obra se inicia com um movimento só para os metais e a percussão – exatamente como uma imensa banda marcial. Os demais movimentos são para a orquestra sinfônica usual e exploram o tema exposto pela fanfarra no começo. Toda a obra deriva dessa fanfarra, e o que Janácek faz dela é realmente notável. No final, a fanfarra do início retorna triunfalmente, em repetição literal, mas com a instrumentação enriquecida pelo restante da orquestra. É de arrepiar os pelinhos do dedão do pé!

A Sinfonietta é obra tremendamente original, e não poderia deixar de sê-lo – é a característica maior do autor, dono de um dos estilos mais intrigantes da música do século 20. O que são aquelas melodias malucamente curtas e angulosas, temperados por ritmos inusitados, extraídos da fala, e harmonias inexplicáveis? Como classificar as frases horripilantemente agudas nas cordas ou os vários efeitos estranhos nos sopros? É tudo tão bonito, novo, único, tão demais… TEM DE OUVIR!

Liszt

Concerto para piano no. 1

E continuamos a série “Concerto romântico”! Já vimos os primeiros passos do concerto para piano no século 19, com Field e Chopin, a mudança promovida por Schumann, e a solução de compromisso proposta por Grieg. Hoje é dia de vermos que o maior pianista de sua época foi, surpreendentemente, o compositor que mais se preocupou em fazer a estrutura do concerto avançar: Franz Liszt!

O nosso amigo Liszt, um dos motores de inovação do romantismo musical, esboçou desde sempre seu primeiro concerto para piano, mas só conseguiu finalizá-lo em 1848. A demora se justifica: a obra é finamente trabalhada, muito mais uma enorme variação do que um concerto de roupagem tradicional. Liszt repetiria a dose em seu segundo concerto (composto na mesma época) e na Sonata em si menor, de 1853. São três obras de ousadia formal realmente notável.

Este Concerto para piano no. 1 foi estruturado em quatro breves movimentos tocados (quase) sem interrupção – há uma pequena pausa entre o primeiro e o segundo. Os dois primeiros andamentos expõem os temas principais da obra, que serão desenvolvidos nos movimentos posteriores. São duas partes, portanto, e elas têm igual duração e importância: apesar da cara de rapsódia, o concerto é, na verdade, muito simétrico e equilibrado.

A obra já começa a todo vapor, com o motivo principal do concerto, super famoso. Acostume-se com ele – Liszt está tão preocupado em reforçar sua importância que essas sete notinhas serão repetidas à exaustão. O piano é soberano mas não “dissolve” a orquestra que o acompanha – na verdade, ela tem igual importância na condução dessa estrutura, de maneira quase camerística. Há inclusive diversas ocasiões em que instrumentos são convidados a montar pequenos duetos com o piano (clarinete, flauta, triângulo… triângulo?).

Aliás, é o triângulo que marca a passagem da primeira para a segunda metade do concerto, do movimento lento para o scherzo. A partir desse momento, Liszt passa a reapresentar os temas já expostos, a criar novos baseados nestes, a variá-los infinitamente. A cada citação do motivo principal nos lembramos da estrutura em espelho do concerto. Até que chegamos ao ponto crucial da obra: a transição do scherzo para o finale, que é feita justamente com uma recapitulação praticamente literal da abertura, mas interpolada a material emprestado do movimento lento!

Daria para escrever muito mais linhas descrevendo as aventuras dos temas que aparecem e reaparecem neste concerto. Mas não vou ficar fazendo SPOILER, até porque essa é a graça maior da obra: a engenharia. Escute, escute várias vezes até começar a perceber os truques de Liszt. É delicioso: toda vez que reconhecemos uma artimanha (“uia, esse cara aqui veio lá do movimento lento”, “ha, de novo o scherzo!”, “olha o tema principal disfarçado, SAFADENHO!”) rola aquela alegria tipo coelho-saindo-de-cartola, sabe? Liszt era mesmo mágico!

E, muito conscientemente, operou pequena revolução: o concerto para piano era o refúgio para o qual corríamos para ouvir o piano derramar belas e numerosas notas. Ninguém precisava pensar, só se deleitar. Liszt transformou o concerto para piano num palco de engenharias formais de calibre sinfônico – o concerto lisztiano é um maravilhoso quebra-cabeça nível DESAFIO COBRÃO.

Claro que este Concerto no. 1 deixou pelo menos um filhote notável. Alguém se arrisca a dizer qual é? Assunto do próximo post! Palpites? COMENTE!

Mendelssohn

Quarteto de cordas no. 6

Felix Mendelssohn teve uma infância aparentemente perfeita: filho de um rico banqueiro de Berlim, era frequentado por artistas e intelectuais e teve a melhor das educações para fazer florescer seu gênio. Ele cresceu, foi imensamente bem-sucedido como intérprete e compositor. Tinha uma personalidade afável, feliz, e sua obra espelhava isso. Mas guardava uma angústia oculta: remorso pelo destino de sua irmã mais velha, Fanny.

Na infância, era Fanny a mais promissora dos Mendelssohn. Hoje parece ok, mas na primeira metade dos anos 1800 não era de bom tom que uma moça “de família” se tornasse profissional de algo, mesmo que esse algo fosse a música. Ainda mais se tivesse um irmão talentoso. O fato é que Abraham, o pai, e Felix trataram de sabotar a carreira de Fanny, que no final se casou como esperado e manteve a música apenas como hobby. Felix chegou mesmo a “roubar” composições de Fanny e publicá-las como se fossem suas! (De novo: se as coisas não são justas para as mulheres ainda em 2014, imagine em 1825.)

Quero crer que ninguém, no fundo, acredita em injustiças; Mendelssohn sabia o que estava fazendo, mas era pressionado pelo pai e pelas convenções sociais da época e se sentia mal. Fanny morreu subitamente em 1847, com pouco mais de 40 anos, e Mendelssohn sofreu demais com essa perda. Provavelmente, o acúmulo de culpa e remorso veio à tona. Passou meses recolhido, sem fazer nada.

Para retomar a vida após o choque, Mendelssohn foi para a Suíça e lá compôs o absurdamente incrível Quarteto de cordas no. 6, que não nos deixa mentir: ele estava MUITO, MUITO PUTO DA VIDA. Tudo aquilo que ele não transparecia ele deixou transbordar neste quarteto. É das obras mais esporrentas e angustiadas do século 19 – e talvez de todo o repertório de câmara! Justo Mendelssohn…!

O início é uma tempestade, e todo o agitado e austero primeiro movimento é belíssimo par do Quarteto “Serioso” de Beethoven. Aliás, nesta obra Mendelssohn mostra toda sua dívida com o mestre de Bonn: temas curtos e incisivos, dissonâncias, ritmos inusitados, objetividade e foco no desenvolvimento temático.

O movimento que lhe segue é ainda mais assombroso – um scherzo todo escuro, pessimista, tenso. Só encontramos certo alívio no andamento lento, de beleza mais melancólica que resignada. O finale retoma o clima do início, sem trazer real solução: ao que parece, o objetivo da obra era mais urrar do que curar.

O Quarteto no. 6 parece uma desopilação, um expurgo. Mendelssohn PRECISAVA por para fora. Criou uma obra-prima estonteante, total DO GRANDE CARVALHO…. e que ficou meio esquecida pela posteridade. Como assim? Muita obra menos interessante é ouvida por aí para podermos nos dar ao luxo de ignorarmos tal colosso. Então repare esta falha AGORA MESMO! É UMA ORDEM!

Gente, o vídeo abaixo é maravilhoso. TEM QUE ASSISTIR! Depois aproveite a versão disponibilizada no Concertmaster.