Holst

“Os planetas”

Hora de quebrar alguns mitos. Mito número 1: “Os planetas”, do inglês Gustav Holst, é uma obra menor, um mero showcase orquestral. Mito número 2: “Os planetas” trata do sistema solar sob os olhares da mitologia greco-romana. Mito número 3: “Os planetas” é uma obra incompleta, cadê a Terra, cadê Plutão?

Bom, de fato Plutão foi descoberto uns quinze anos depois de obra composta e estreada. Holst estava vivo e sequer cogitou emendar a suíte. Acho que ele foi esperto, porque de lá pra cá Plutão já deixou de ser considerado um planeta, e a obra ficou atual novamente ;-)

A Terra não está presente porque “Os planetas” não é uma suíte sobre astronomia, mas sobre ASTROLOGIA, com L, e a Terra não é um planeta astrológico. Sim! E não tem nenhum deus grego envolvido. Os subtítulos dos movimentos falam de “O portador da guerra”, “O portador da velhice” etc, mas sempre se referindo aos planetas em si e os efeitos que a eles são atribuídos na astrologia. Te peguei nessa, hein?

Holst era fascinado por astrologia. Acho que, logo de cara, percebeu o potencial que as diferentes caracterizações astrológicas tinham para uma abordagem sinfônica, com todos os tipos de música que uma sinfonia, ou uma suíte, exigem. E estruturou sua peça dessa maneira, desrespeitando a ordenação astronômica (e astrológica) dos planetas em busca de coerência musical.

A obra começa com Marte, não com Mercúrio, o que faz todo o sentido: um movimento enérgico, guerreiro, de ritmo marcante. Segue Vênus, não Júpiter, trazendo alívio com um movimento lento e delicado. Volta para Mercúrio, um scherzo leve, diáfano. E pula tudo direto para Júpiter, um movimento massudo, vigoroso, potente. É uma sinfonia!

Mas a suíte continua com Saturno, um segundo movimento lento, sóbrio e solene. Urano é um segundo scherzo, galhofeiro e grotesco. E, enfim, Netuno, um epílogo em que um coro feminino participa para dar encerramento misterioso à obra – depois dos planetas, o enigma do espaço sideral? O vácuo?

A ordem astronômica nesta segunda parte é respeitada, mas primariamente porque musicalmente faz muito sentido: o conjunto fica assim equilibrado, com Júpiter no meio e dois movimentos lentos, dois scherzos, introdução e epílogo orbitando (pun intended) ao redor. E isso reforça o óbvio que muitas vezes se esquece: “Os planetas” é, antes de tudo, uma obra musical perfeitamente realizada, que seria plenamente autossuficiente sem o apoio das descrições astrológicas. Vale lembrar que o nome original da suíte era bem abstrato, meio schoenbergiano até: “Sete peças para orquestra”. Pois é…

Se a linguagem nos lembra filme de George Lucas com música de John Williams, é porque a posteridade bebeu muito na fonte holstiana. A culpa é deles, não de Holst! Hoje nos parece semi-banal: as explosões e rasantes de “Marte”, a secura modal de “Saturno”, o desajeitado “Urano” foram copiados e VIRARAM clichês. Mas posso garantir: eram recursos incrivelmente frescos, excitantes e originais quando Holst os concebeu. E podem soar assim até hoje, se ouvirmos com os ouvidos certos.

Bach

Concerto italiano

Aprendamos com mestre Bach e vamos compactar!

O que é um concerto? Já falamos isso aqui: é uma obra para solista e orquestra. Mas, diachos, o que Bach quis com este Concerto italiano, BWV. 971, que é para cravo solo? Compactar, queridões, Bach quis compactar!

Bach era incrível nisso – compactador muito mais eficiente que o RAR! Suas suítes para violoncelo, ou suas partitas para violino são impressionantes por serem contrapontísticas mesmo em instrumentos monofônicos, que só conseguem soar uma única nota simultaneamente (OK, há exceções). Ele sabia criar a ILUSÃO de contraponto no ouvinte, graças à manipulação hábil da linha melódica e dos registros do instrumento. É endoidecedor.

Este Concerto italiano é para cravo, um instrumento naturalmente polifônico. Mas o bach.rar aqui é de outra natureza: o objetivo era emular um concerto para solista (violino?) e orquestra apenas no teclado. Hmm, legal, e FUNCIONA! O truque usado foi fazer o cravo soar delicado para representar o “solista”, e massivo, cheio de acordes, para representar a orquestra.

Presta lá atenção. A obra começa com um tutti – super acordões a todo vapor. Exposição passada, o cravo passa a desenvolver uma linha melódica ornamentada, graciosa, com acompanhamento simples – eis aqui representados o solista e sua obediente orquestra! Conforme a música vai ficando mais densa, as duas maneiras de se tocar o cravo começam a dialogar, a compartilhar os temas, a tornar o conjunto mais complexo… mas a distinção entre “solista” e “orquestra” virtuais está sempre presente, clara como água.

O movimento lento é outro exemplo supremo dessa dinâmica. Ele começa já num modo “orquestra” diferente, o do acompanhamento suave. O modo “solista” entra um pouco depois, num registro mais agudo e com uma linha melódica mais contínua. É lindo demais, e é uma ária, típico momento de relaxamento dos concertos barrocos ita…

… sim! Isso explica o nome da obra, claro :) Bach propositadamente repete o modelo concertante praticado na Itália. Quantos e quantos concertos de Vivaldi que Bach não estudou, transcreveu, arranjou? Este é o seu concerto “italiano” original, assim como também compôs suítes perfeitamente “francesas” ou cantatas em tudo “alemãs”.

Bach compactou não só o concerto mas também o mundo inteiro!

Stravinsky

“A história do soldado”, suíte

Aí em cima tá escrito “balé”, mas acho que o mais certo seria “pantomima“. Ou não. “A história do soldado”, de Stravinsky, é uma obra teatral que meio que ~desafia classificações~. Melhor explicar: trata-se de uma peça de teatro, falado (quer dizer, não cantado), mas com música e dança. E o mais curioso: a música é destinada a um septeto (violino, contrabaixo, clarinete, fagote, trompete, trombone e percussão). Seria música de câmara então? Ooooolha…

Com apenas quatro personagens (er, o narrador é personagem?) e sete músicos, “A história do soldado” é claramente uma obra de bolso, para uma companhia ambulante de baixo custo. Isso tem explicação: foi composta em 1918, quando a Primeira Guerra Mundial fazia seus últimos estragos. Tempos bicudíssimos, e Stravinsky foi muito esperto ao criar uma obra viável até com sérias restrições orçamentárias.

“A história do soldado” tem texto escrito por Charles-Ferdinand Ramuz, amigo de Stravinsky na Suíça, onde o compositor morava. O argumento, baseado no folclore russo, é faustiano: um soldado vende sua rabeca ao diabo, em troca de riqueza infinita (na forma de um livro que traz todos os eventos do futuro. Biff, é você?). Ele fica mesmo rico (apostando em resultados esportivos?), mas infeliz, saudoso da vida que levava anteriormente. Procura o diabo novamente, pega seu violino de volta, rasga o livro… mas a rabeca não toca mais.

Calma, ainda não acabou. O soldado descobre que, para se livrar de vez do diabo, deve jogar cartas com ele e perder todo o seu dinheiro de propósito. Faz isso, e fica livre: seu violino volta a soar. Com a rabeca novamente funcional, o soldado faz música para acordar uma princesa doente (hm, longa história) e recebe as mãos dela em troca (pois é!). MAS o diabo é ardiloso, e decreta: o novo casal não pode sair do castelo real.

Só que o tal soldado, esse ser irritante e eternamente descontente, novamente saudoso de sua antiga vida, resolve sair. E daí o diabo vence definitivamente a parada. Musicalmente o triunfo do coisa-ruim é demonstrado por um genial duelo entre o violino e a percussão, em que só a percussão toca até o fim. Ela dá a palavra final, literalmente. Moralmente a mensagem que fica é: quem tudo quer, nada tem. ‘nough said!

Stravinsky leva a sério a mensagem de que ninguém pode ser, ao mesmo tempo, o que já foi e o que ainda será. “A história do soldado” é uma das obras que marcam a ocidentalização definitiva, sem volta, de seu estilo. O compositor já estava há muito tempo fora de sua Rússia natal: desde 1910 morava a maior parte do tempo na Suíça. Mesmo assim, todos os balés que compôs para Diaghlev são marcadamente russos, em argumento e estilo musical. A “História” é um pouquinho russa no plot, mas só – a música é um mélange de circo, ragtime, pasodoble, tango, valsa…

O Stravinsky cosmopolita nasce aí, na junção de um conto russo com ritmos populares urbanos ocidentais. Fora a estilização extrema da linguagem, reduzida ao mínimo na instrumentação de câmara. “A história do soldado”, na verdade, é um fascinante capítulo de “A história de Stravinsky”… ou da própria “A história da música do século 20”.

Ah, sim! Abaixo, a suíte de concerto do balé/pantomima/lo que sea, que Stravinsky reuniu em 1920. Ela basicamente tem toda a música da obra, eliminando as (longas) partes faladas e as repetições. Aos que tiverem interesse pela peça inteira em seu contexto teatral, há diversas gravações (não somente no francês original, mas também em inglês).

Grieg

Concerto para piano

… mas é claro que o parzinho do Concerto para piano de Schumann é o Concerto para piano de Grieg! Estava fácil demais! :)

Começa na tonalidade: ambos os concertos são em lá menor. E começa no começo também: uma “explosão” orquestral, seguida por uma espécie de floreio do solista, que é encadeado pela exposição do tema principal, moderado, pelas madeiras e, depois, pelo piano. (Repare que o procedimento schumanniano é um bocado mais compacto, porém.) E as similaridades se somam (outro exemplo: a cadenza e a conclusão do primeiro movimento), mas o que importa mais é a semelhança do estilo lírico geral.

O noruguês Edvard Grieg é mais ou menos uma geração mais novo que Schumann. Ainda bem novinho, estudou no Conservatório de Leipzig, e nesse período teve a oportunidade de ouvir o Concerto op. 54 executado por Clara Schumann (uia!). A experiência deve ter se cristalizado na memória. Em 1868, vários anos depois, já de volta à Noruega, compôs o seu próprio concerto. BINGO! A obra ficou imensamente célebre, e até hoje é ainda mais conhecida que sua inspiração imediata.

O que Grieg faz diferente de Schumann? Várias coisas. Em primeiro lugar, o concerto do norueguês é bem menos camerístico: o piano tem uma proeminência quase chopiniana. (Certamente a carreira de Grieg como pianista virtuose influenciou aqui.) Em segundo lugar, Grieg é bem menos preocupado com estrutura: ele se perde um pouquinho em várias oportunidades, alonga tudo um bocado, e dá ao concerto um caráter meio rapsódico, principalmente nos movimentos rápidos. Em terceiro lugar, porém mais importante, é a maneira como Grieg insere material “folclórico” na obra. O concerto é um exemplar do nacionalismo romântico da segunda metade do século 19. Exemplo claro disso é o finale com ritmos de halling, a dança norueguesa.

Mas eu queria destacar a diferença que mais me afeta, particularmente: o movimento lento. Schumann, em seu concerto, optou por um trecho curto à guisa de intermezzo, fazendo somente a ligação entre os movimentos externos. Grieg, ao contrário, colocou a melhor de suas inspirações no seu adagio: é lindo até dizer chega! Ele começa somente com a orquestra, suavemente, para daí o solista entrar, criando um clima totalmente diferente, luminoso, diáfano… OH DEUS OH DEUS OH DEUS *apneia* *respira*

É extraordinário além da classificação!

O concerto de Grieg provou-se uma obra-prima precoce, provavelmente sua peça mais popular e é um cavalo-de-batalha imbatível do repertório de piano e orquestra. É uma belezinha do começo ao fim, mas só pelo SUPREMO movimento lento já merece um espaço especial aí no seu coração de ouvinte. Entendido?

Semana que vem, voltaremos um pouquinho no tempo e avançaremos um montão no estilo… o que será que vem por aí? :)

Chausson

Quarteto para piano e cordas

FODA FODA FODA FODA FODA!

Estou mega empolgado porque hoje é sexta-feira e vamos falar do ultrahiperinacreditável Quarteto para piano e cordas de Ernest Chausson! \o/

Essa obra absurdamente linda, composta em 1897, é virtualmente desconhecida. Mas por quê? Se essa não é a maior injustiça da história da música, não sei qual poderia ser. Aliás, dá pra dizer que Chausson, de maneira geral, é um grande injustiçado. Franck e Saint-Saëns são os compositores franceses (ÊPA, belgian detected) mais célebres da segunda metade do século 19. Mas, ouso dizer, Chausson é meu favorito, de longe.

Esse camarada, que morreu a mais estúpida das mortes (bateu a bicicleta no muro, literalmente, aos 44 anos), compôs pouco: trinta e poucas obras, todas da mais alta qualidade. Tem a linda Sinfonia em si bemol maior, o “Poema” para violino e orquestra, o ciclo de canções “Poema do amor e do mar” e, principalmente, obras de câmara de uma beleza inalcançada pelos seus conterrâneos. Chausson é, nesse sentido, o Brahms francês!

E em outros sentidos também! Er, não a grande barba. Mas o gosto pela música de câmara, a inspiração minuciosamente apurada e trabalhada, o esmero estrutural, a intensidade romântica super WHITE HOT MY HEART IS BURNING IN FLAMES – tudo isso faz de Chausson um par muito digno (e meio tardio) de Brahms.

O legal é que o estilo de Chausson une esse brahmsianismo sem disfarces a uma harmonia quase debussista, em tudo anunciadora da música francesa do século 20, e aos tiques formais de Franck – a.k.a. “forma cíclica”.

Este quarteto demonstra tudo isso. Um equilibradíssimo primeiro movimento, um scherzo que não é scherzo (na perfeita tradição brahmsiana de intermezzo moderado), um finale muito dinâmico que repete temas de movimentos anteriores. No centro da obra…

… não, no centro da obra, não. No CENTRO DA VIDA, no CENTRO DA EXISTÊNCIA, no CENTRO DE TUDO QUE HÁ DE MAIS IMPORTANTE NO UNIVERSO, está o inigualável movimento lento, a página mais comovente da música francesa de todos os tempos, segundo eu mesmo.

Pega lá os lenços. Vai por mim. É melhor se precaver. Se estiver lendo esta página no trabalho, dane-se: pode chorar mesmo, lave a alma, e se alguém reparar diga simplesmente: “foi o Quarteto para piano e cordas de Chausson”.

Bruckner

Sinfonia no. 4, “Romântica”

Se você conhece alguma obra de Anton Bruckner, fatalmente será a Quarta Sinfonia, dita “Romântica”. E isso faz muito sentido. A Quarta é mesmo a mais acessível das sinfonias de Bruckner – seu subtexto de romance de cavalaria e sua atmosfera de floresta wagneriana fornecem um cenário para apoiar o ouvinte não-habituado.

Não só isso: a música é muito boa também! De fato, a Quarta, composta em 1874 (hmmm… falaremos mais de datas adiante), é a primeira sinfonia completamente madura do autor. Bruckner foi um compositor temporão – somente após seus quarenta anos começaram a sair de sua pena obras de maior personalidade. As três missas numeradas, as duas sinfonias conhecidas como 00 e 0 e as três primeiras sinfonias do cânone (1, 2 e 3) marcam esse período de transição. Por mais entusiasmantes que obras como a Terceira Missa e a Primeira Sinfonia sejam, difícil negar que teriam dificuldade de se estabelecer no repertório por si só. São as obras posteriores que marcam o Bruckner que conhecemos hoje.

Sua linguagem é uma releitura tremendamente original de três influências principais: a música de igreja, a Nona Sinfonia de Beethoven e o romantismo de Schubert e Wagner. Isso fica muito claro nesta Quarta. Vejamos. Wagner: cromatismo, a orquestra grandona e cheia de metais, a atmosfera meio medieval de óperas como “Tannhäuser” e “Lohengrin”. Beethoven: a forma sinfônica bastante expandida, com tema cíclico. Ah, sim! A abertura em suspense, com cara lenta mas já no tempo principal do movimento, como na Nona! Schubert: o molde melódico, a harmonia instável. Ouça o andante!

O primeiro movimento traz o início célebre, que muitos comentaristas (inclusive o próprio Bruckner) associam ao raiar do dia. É realmente lindo, os trêmolos das cordas acumulando tensão, os metais soando meio indecisamente, até a explosão definitiva do tema principal. FODA. É a fórmula bruckneriana por excelência! Tão clássica, aliás, que três dos movimentos da obra começam com esse modelo de suspense, efeito acumulativo e grande tutti; acho mesmo que é a marca distintiva da sinfonia.

O andamento lento é uma espécie de marcha fúnebre, de tom ao mesmo tempo nobre e elegíaco. Em seguida, um dos mais conhecidos scherzos do repertório, o “scherzo de caça” (e dá-lhe metais sobre trêmolos nas cordas!). O finale – que também começa com o crescendo que caracteriza a “Romântica” – é um mamute bem mais difícil de acompanhar, mas altamente compensador por sua densidade e audácia de escrita. (Quando estou inspirado, ou particularmente concentrado, é minha parte favorita da sinfonia.) O finalzinho é DE ARREPIAR!

Scherzo e finale da Quarta são o gancho ideal para falarmos do “Problema Bruckner”. Sim! Bruckner tinha um problema, que agora é nosso: era indeciso e tinha mania de revisar constantemente suas obras. Pois que ele voltou a esta Quarta em pelo menos duas ocasiões, depois que já estava pronta! O “scherzo de caça “, por exemplo, só surgiu na primeira das revisões, em 1878. (O scherzo original era totalmente diferente.) Dez anos depois, em 1888, Bruckner visitou novamente a sinfonia, mexendo um bocado no finale e retocando todo o resto. Ô insegurança!

(É nessa versão final de 1888 que costumamos ouvir a Quarta. Quer dizer: simplificando muito as coisas, é isso. Na verdade mesmo, Bruckner – e outros – mexeram na sinfonia várias vezes entre 1878 e 1888, e da combinação dessas alterações menores surgiram umas sete ou oito edições diferentes da obra! Existem gravações da Quarta original, de 1874, que são bastante divertidas por mostrarem como a obra nasceu, ainda meio sem polimento. Na minha opinião, os retoques posteriores melhoraram – e muito – a sinfonia. O mesmo fenômeno aconteceu na Oitava, cuja última versão é superior. Mas a Primeira e a Terceira originais são infinitamente mais interessantes que as versões revisadas.)

A posteridade fez jus à Quarta – é não somente a sinfonia de Bruckner mais executada e gravada, mas também das obras mais populares da segunda metade do século 19. Merece toda essa atenção? Sem dúvida! Os temas são lindos, a progressão, emocionante. TEM QUE OUVIR, então clica logo aí :)

Gershwin

“Porgy and Bess”

Algumas obras-primas sofrem com seu conteúdo extramusical. Vimos na semana passada o caso de “Noite transfigurada” de Schoenberg, cuja excelência musical não combina com a misoginia DA BRABA do texto no qual o sexteto é baseado. Algo parecido acontece com “Porgy and Bess”, de George Gershwin. Aquela que é, sem nenhuma dúvida, a maior ópera americana sofre com uma acusação de racismo que faz todo o sentido MAS que não tira seus enormes méritos musicais.

A historinha de “Porgy and Bess” – a partir do livro “Porgy”, de DuBose Heyward, que também é o autor do libreto da ópera – se passa num cortiço na Carolina do Sul chamado Catfish Row. Todos os personagens são negros. Os protagonistas são Porgy, um mendigo aleijado, e Bess, a bonitona local, namorada de Crown, um estivador. Logo na primeira cena, Crown, doidão de cocaína, mata outro morador num jogo de dados e foge. Bess fica, mas é ostracizada pela comunidade – o único que a acolhe é Porgy.

Seguem-se a descoberta do amor improvável entre Porgy e Bess, as investidas de Sportin’ Life – o traficante – sobre ela e o retorno do próprio Crown, que Porgy termina por matar em uma briga. Com Crown morto e Porgy preso, Bess se torna presa fácil para Sportin’ Life e – SPOILER! – vai com ele para Nova York. A ópera termina com Porgy libertado da prisão e, against all odds, saindo de Catfish Row para encontrar Bess onde ela estiver.

Acumulam-se os estereótipos: todos os personagens falam um inglês pra lá de estropiado; vários são drogados, sempre ligadões na “happy dust”; a comunidade professa uma religiosidade ingênua, salvacionista, repleta de um otimismo conformado (o único de pensamento mais livre é justamente o traficante, Sportin’ Life); as interações com brancos, todos autoridades que não cantam, são marcadas por certo temor reverencial; as principais disputas do enredo são resolvidas com assassinatos.

Os personagens não chegam a ser caricaturas de vaudeville, mas o viés negativo é meio generalizado. Bess, por exemplo. Não duvidamos de seu amor por Porgy, mas ela se demonstra totalmente incapaz de controlar seus desejos: repele Sportin’ Life e Crown quando Porgy está por perto mas, nas duas vezes em que ele está distante, muda de opinião por um pouco de cocaína. O pior de tudo: não há um pingo de discussão social em “Porgy and Bess”. Ninguém reflete sobre sua situação, nem quer sair de Catifsh Row e de tudo o que o cortiço representa – exceto, talvez, o traficante, o que é um bocado simbólico.

Não à toa a ópera gerou muita controvérsia quando estreou, em 1935, e virou tabu nos anos 60 e 70, o auge das discussões sobre os direitos civis nos Estados Unidos. Mas, no final das contas, apesar de todo o debate, a ópera voltou a ser encenada. Sabem por quê? POR CAUSA DA MÚSICA SUPREMA DE GERSHWIN! Ela é muito superior ao libreto. Então, ufa!, vamos a ela!

Todo mundo meio que conhece a música de “Porgy and Bess” graças a alguns números que ganharam vida independente: “Summertime“, “I loves you, Porgy“, “It ain’t necessarily so“, “Bess, you is my woman now“, todos viraram standards do jazz, ícones do “Great American Songbook“. São canções incríveis, mas mais incrível ainda é a engenharia narrativa de Gershwin. Por trás das blue notes, dos ritmos de charleston e dos coros de spirituals, há uma construção bastante sofisticada de motivos condutores, citações cruzadas e espertas caracterizações.

Vale muito a pena ouvir a ópera inteira. Não só pelas árias, cuja beleza nem é necessário sublinhar. Até as transições entre os números, com recitativos que poderiam ser bem aborrecidos, são todas inspiradas. Mesmo as cenas “vazias” – como aquela em que Porgy espera Bess se curar de uma febre e ouve os vendedores cantarem seus produtos – são repletas de viço e atmosfera. O acompanhamento orquestral é de mestre (e pensar que Gershwin nem instrumentara sua “Rhapsody in blue” de onze anos antes).

Chama a atenção na ópera, porém, a misturança de estilos. Gershwin “ain’t got no shame” e bota tudo que ele gosta no caldeirão – a ópera pucciniana, o jazz novaiorquino, o folclore negro que vivenciou na Carolina do Sul, o canto judaico, a música romântica russa… Às vezes soa meio descosido, mas Gershwin era assim mesmo, uma rapsódia em forma de gente. E uniformidade nunca esteve em questão: a narração funciona e é coerente, apesar do estilo oscilante.

Gente, larguem as canções isoladas e encarem a ópera toda. É demais! “Porgy and Bess” tem música linda do começo ao fim, uma construção extremamente bem-feita e é um assombro de vitalidade e inspiração. Go for it!

Prokofiev

Sonata para piano no. 7

Dos grandes compositores russos do século 20, Shostakovich é o mais plenamente soviético e Stravinsky, o mais ligado ao antigo regime imperial. Sergei Prokofiev fica no meio da estrada. Nascido entre os dois, experimentou um pouco da trajetória de ambos.

Menino prodígio, logo cedo foi passar um tempo em Paris colaborando com os Balés Russos de Diaghlev – como Stravinsky. Depois da Revolução de 1917, emigrou definitivamente, pulando de país em país – também como Stravinsky. Nas vésperas da Segunda Guerra, decidiu voltar à Rússia, agora União Soviética, onde foi censurado como “formalista” pelo regime stalinista – exatamente como Shostakovich. Morreu no exato dia da morte de Stálin e seu enterro teve de ser adiado…

Essa vida complicada pode ser percebida na evolução do estilo de Prokofiev. Suas primeiras obras são propositadamente modernas, muitas vezes politonais e repletas de dissonâncias. Os balés que compôs para Diaghlev o enquadrariam facilmente na vanguarda dos anos 10 e 20, com gosto peculiar para o grotesco e o “primitivo”.

Porém, com o retorno à União Soviética, o estilo de Prokofiev suavizou. Talvez tenham sido as pressões oficiais, talvez o amadurecimento tenha tornado o compositor mais tranquilo… Enfim, as obras de Prokofiev dos anos 30 e 40 são mais ligadas ao século 19 – o grandioso e o dramático, antes totalmente encobertos pela ironia e pelo sarcasmo, agora tornavam-se elementos importantes de sua música. Engraçado como, no catálogo de Prokofiev, convivem obras tão diferentes quanto a “Suíte cita” e o balé “Romeu e Julieta”!

Acho que, na fase soviética, as obras mais interessantes de Prokofiev são mesmo as três sonatas para piano que compôs entre 1939 e 1944, de números 6, 7 e 8. Pelas circunstâncias históricas de sua criação, ficaram conhecidas como as “Sonatas de guerra”. Estão entre as mais incríveis peças para piano do século 20, e a minha favorita é mesmo a do meio, a sétima.

Ela é estruturada nos três movimentos usuais, cada um mais breve que o anterior. O tema principal do primeiro movimento é anguloso e irregular, assimétrico, um dos grandes exemplos do que eu chamo de “melodia abstrata“. Esse clima inquieto é dissolvido um pouco por uma razoavelmente longa seção meditativa, melancólica, que termina em um clímax dramático e agitado.

O andamento lento é, talvez, o mais impressionante. Ele é carregado por um tema meio de marcha, saudosista e triste, de beleza schubertiana. Segue a ele uma breve e rapidíssima tocata, de ritmo mecânico em “estilo boogie-woogie“. É sensacional… e acaba de repente. No final, a sensação é de desconforto – como se a sonata vestisse um casaco apertado demais para poder se mexer bem.

Será que era assim que Prokofiev se sentia na União Soviética?

Schumann

Concerto para piano

Apesar de hoje em dia Robert Schumann ser julgado geralmente como um “conservador”, classicista de linha mendelssohniana, essa é uma meia-verdade. Se prestarmos atenção em suas obras para piano, por exemplo, veremos que Schumann mantinha conscientemente uma boa distância da forma clássica.

Evidência número 1: seu fabuloso Concerto para piano nasceu como uma “fantasia” em um só movimento (foi completado somente anos depois). Evidência número 2: a abordagem concertante de Schumann é muito diferente da de seus contemporâneos. Se compararmos esse concerto com os similares de Field, Hummel ou mesmo Chopin, fica muito óbvio que Schumann era o mais inovador de todos!

A primeira coisa que chama a atenção: o piano é soberano, sim, mas nem de longe “dissolve” a orquestra como em Chopin. O tratamento aqui é muito mais próximo do mozartiano, com diálogos quase camerísticos entre solista e orquestra. É simples entender, só na audição, o que isso significa. Perceba que, em vários momentos, as frases melódicas são compartilhadas – uma parte é dita pela pelo piano, outra pela orquestra, num esquema que vai muito além do “pano de fundo” romântico usual.

Curiosamente, ao mesmo tempo em que ganha espaço como “carregador” do discurso, a orquestra cede vários espaços para o piano. Não há mais a longa exposição orquestral, como em Chopin – o piano participa desde o começo (na “explosão” que abre a obra, e também assumindo o motivo principal do primeiro movimento logo em seguida à sua exposição pelas madeiras). Além disso, Schumann recupera o hábito da cadenza, tornada obviamente desnecessária nos concertos muito dominados pelo solista do início do romantismo.

O primeiro movimento segue gigantesco – sua duração equivale à soma dos outros dois – e reina na obra, fornecendo os temas que serão fundamentais para dar a ela forte unidade. O ponto em que isso fica mais evidente é na transição entre o andamento lento (na verdade, um intermezzo moderado) e o final. As duas partes devem ser tocadas sem interrupção e a mudança de movimento é cuidadosamente preparada com o retorno do tema inicial da obra. O efeito é incrível, super coerente… e vale lembrar que Schumann compôs o concerto em duas épocas distintas, separadas entre si por quatro longos anos!

O concerto de Schumann é mais que um marco importante na evolução do gênero concertante – é uma obra-prima absoluta, DO GRANDE CARVALHO, pedra fundamental da música do século 19. E influenciou um bocado… principalmente a obra que iremos comentar na semana que vem. É um parzinho bem óbvio, aliás :) Palpites? Comente abaixo!

Martinu

Sonata para violino no. 3

Agora vocês vão ter que me dar um desconto – este post será pura empolgação! É que vou escrever sobre uma das minhas obras de câmara favoritas, a terceira Sonata para violino do tcheco Bohuslav Martinu! Olha só a responsabilidade: em um ambiente dominado por carinhas como Beethoven, Schubert, Brahms… falar de Martinu? Sim!

Martinu é um dos grandes esquecidos do século 20, e volta e meia irei incomodar vocês com sua incrível música. Seu estilo é único, mas também bastante variado. Começou a carreira na França, como um modernista da cepa de um Milhaud ou um Poulenc. Depois se encontrou no neoclassicismo stravinskiano. Terminou a vida com uma linguagem só dele, que por falta de melhor termo chama-se de “impressionista”. Todas essas fases são repletas de obras encantadoras.

Em 1941, durante a guerra, Martinu migrou para os Estados Unidos. Lá, por algum motivo, seu estilo neoclássico mudou. Ficou menos seco, ganhou um fôlego narrativo maior, frequentemente em busca de uma expressão mais épica. Estava se aproximando dos românticos – eu chamo essa fase de “estilo Grand Brahms”. De fato, suas quatro primeiras sinfonias foram compostas nos EUA e são exemplos perfeitos de sua nova linguagem.

O “estilo Grand Brahms” era essencialmente sinfônico mas, claro, tinha que abranger música de câmera também. Suas grandes obras camerísticas dessa fase são o maravilhoso Quinteto para piano e cordas no. 2, a triste e curiosa Fantasia para theremin, oboé, cordas e piano (sim, theremin, o instrumento eletroacústico!) e, naturalmente, esta Sonata para violino no. 3 – o melhor Martinu americano, IMHO.

A sonata foi composta em 1944, em Nova York. Martinu usualmente adota o modelo de três movimentos, mesmo em suas sinfonias, mas aqui ele estrutura de bom grado sua peça em quatro partes. Faz muito sentido, já que é a presença do scherzo que proporciona a oportunidade de abrir o finale com uma introdução lenta que contém, provavelmente, a música mais inspirada da sonata. É de matar cardíaco!

A obra inteira é exame do coração: o dinâmico primeiro movimento, o lindíssimo adagio, o épico trio do scherzo… e o ponto culminante, a introdução lenta do finale. Lindo, lindo, lindo, monumental.

Não, não podemos nos esquecer de Martinu, muito menos da Sonata no. 3, esta obra-prima. OUÇA, ESPALHE, EVANGELIZE, FAÇA SUA PARTE! O mundo agradece :)