Mozart

Sinfonia no. 25

Geralmente associamos a música da segunda metade do século 18 (o classicismo, portanto) à economia de meios, à elegância e à perfeição formal. Está certo, mas essa época foi especialmente turbulenta, principalmente em termos filosóficos e políticos (poxa vida, a Revolução Francesa!) mas também nas artes.

Dou um exemplo: Goethe tinha uns 25 anos e emplacou nesta época um sucesso fenomenal, “Os sofrimentos do jovem Werther”, com seu plot de amor impossível, desencontros em série e – SPOILER! – suicídio no final. A história, de ação rápida e cheia de reviravoltas, marcada pela emoção tumultuada do personagem principal, serve de resumo da tendência artística que começava a tomar conta da Europa: o movimento “Tempestade e ímpeto” (em alemão, “Sturm und drang”).

A música não ficou alheia nem à tempestade nem ao ímpeto: os filhos de Bach, os sinfonistas de Mannheim, Wanhal, Haydn… todo mundo começou a experimentar um estilo cheio de grandes contrastes dinâmicos, temas angulosos, repletos de saltos e efeitos dramáticos, invariavelmente em obras em tom menor.

O Mozart adolescente teve sua fase de “Tempestade e ímpeto” – muito distante da graciosidade simétrica de seu estilo usual. Sua obra mais famosa nessa linguagem é a Sinfonia no. 25, de 1773, em… sol menor! (Ha! Completamos a série do “Mozart em sol menor“!)

Todo mundo conhece a sinfonia do filme “Amadeus”, que começa justamente com ela. O início, de um dramatismo todo escuro e agitado, ansioso, é simultaneamente representativo tanto do Mozart em sol menor quanto do “Tempestade e ímpeto”. A orquestração austera, muito centrada nas cordas, e o tema principal cheio de grandes saltos, ampliam o aspecto tenso do primeiro movimento, realmente memorável.

Os movimentos que lhe seguem se não exatamente estão no mesmo nível de ansiedade, são notavelmente próximos em tom e estilo. Prova da grande unidade da obra: o único movimento que não está no sol menor inicial é o andante, em tom maior. O finale, particularmente, forma um par perfeito com o incrível movimento inicial – é música do mesmo exato molde, embora variada e nunca monótona. Coisa de gênio!

Obra-prima. E… ahem… sabe quantos anos Mozart tinha em 1773? 17. Dezessete. DE-ZES-SE-TE! #chupagoethe #chupamundo

Schoenberg

“Noite transfigurada”

Opa! Repete a ficha: Schoenberg, “Noite transfigurada”, música de câmara… ROMANTISMO? Sim, romântico, muito… e DO GRANDE CARVALHO!

Sim! Antes de se transformar no mastermind do modernismo musical, Arnold Schoenberg provavelmente foi o último romântico. (O quê? Você achava que era o Lulu Santos?) Na verdade, foi ainda mais romântico que os românticos – foi um expressionista, como todos no mundo germanófono de sua época. Os expressionistas retratavam o mundo de uma maneira exacerbadamente interiorizada, eliminando o aspecto objetivo de suas linguagens e distorcendo a realidade para realçar a emoção e o sentimento.

Como se faz isso em música? Schoenberg encontrou a fórmula unindo dois gigantes alemães da segunda metade do século 19: Wagner e Brahms. De Wagner apropriou-se da harmonia densa e cromática; de Brahms, emprestou o cuidado formal e algo da intensidade WHITE HOT que o caracteriza. Acabou criando uma linguagem que é belamente estruturada mas que não se incomoda em esticar ao máximo as fronteiras da harmonia e da emoção – tipo um Brahms on steroids, saca?

A obra de Schoenberg que mais perfeitamente se encaixa nessa descrição é também sua criação mais popular: o sexteto de cordas “Noite transfigurada”, de 1899. Aliás, a própria forma da peça denuncia muito disso – é um sexteto de cordas, mas é também um poema sinfônico, que segue fielmente o texto homônimo de Richard Dehmel. Decida-se, Arnoldinho, música de câmara ou música programática? “Quero ambos.” Legal :)

O poema de Dehmel conta um momento de aflição de um novo casal: em um passeio noturno a um “frio e desolado” bosque, a mulher conta a seu namorado que está grávida de outro homem. Mais ainda – essa gravidez é fruto de uma relação casual com um completo desconhecido. No fim das contas, porém, o homem aceita a situação e diz que a noite mágica que vivem irá fazer da criança seu próprio filho.

[Acabo de ganhar o prêmio Insensível do Ano, por transformar um poema expressionista em um relato bem seco! Leiam o original. De qualquer maneira, preciso confessar que o poema me causa ojeriza. Ele representa BEM DEMAIS a misoginia típica da Viena de Schoenberg e Freud. Uma histérica tornada devassa é “salva” por um amante santificado… muito difícil de engolir em 2014.]

Exatamente como Wagner e Liszt faziam, Schoenberg montou sua narrativa através de motivos condutores, pequenos trechos melódicos que simbolizam personagens (o homem, a mulher), emoções (felicidade, angústia) e conceitos (a noite, a maternidade). Mas os temas concebidos por Schoenberg têm um desenho clássico e são desenvolvidos de uma maneira muito brahmsiana. É uma mistura curiosa, e realmente linda.

Schoenberg estruturou seu sexteto em um fluxo contínuo de música, algo como um grande movimento de trinta minutos. Mas como a partitura acompanha verso por verso o poema de Dehmel, é fácil enxergar cinco divisões na obra, dos primeiros passos do casal no bosque, passando pelo momento da revelação e chegando ao perdão trazido pela noite “transfigurada”.

Esse perdão, aliás, meio que quebra o sexteto em duas partes. A primeira é muito tensa e escura. As harmonias e o tratamento temático são ultracromáticos, quase atonais. Há um bocado de dissonância. Quando o homem diz, depois do agitado e desesperado relato da mulher, “veja quão belamente o universo brilha”, a obra ganha um tom otimista e extático, as harmonias ficam mais claras e as dissonâncias, bem menos comuns.

Depois de “Noite transfigurada”, Schoenberg se embrenharia ainda mais fundo no expressionismo, com o super poema sinfônico “Pelléas e Mélisande” e principalmente com a mini ópera “Expectativa”, que já é plenamente atonal. Ambas as peças compartilham com “Noite transfigurada” os temas bem românticos da noite, do bosque e do casal impossível, mas com a abordagem extremada característica (e mais uma boa dose de repulsa às mulheres…). Só após algum tempo que Schoenberg irá ~descobrir~ o dodecafonismo serial que associamos imediatamente ao seu nome.

“Noite transfigurada” é uma obra tão bonita e emocionante quanto importante, que consegue sintetizar como nenhuma outra todo o momento de transição da música e da arte alemã. É do GRANDE CARVALHO, o maior do frio e desolado bosque. Ops :)

Ah, sim! Se você quer descobrir os segredos de “Noite transfigurada” a fundo, PRECISA ler a estupenda série de artigos do Amancio Cueto no blog Euterpe, em que ele demonstra sua visão além do alcance e evidencia coisas incríveis na partitura (até uma cena de sexo ruim e degradante! uia!).

Milhaud

“O boi no telhado”

Darius Milhaud viveu dois anos no Rio de Janeiro, entre 1917 e 1919. Foi secretário do embaixador francês no Brasil, o escritor Paul Claudel.

As impressões da vida carioca povoaram a mente fervilhante de Milhaud por algum tempo. Logo em seguida ao seu retorno à França, compôs uma peça que imaginava poder servir de acompanhamento para algum filme (mudo) de Charlie Chaplin. Mas acabou cruzando com Jean Cocteau, o multiartista mais influente da época, que fez Milhaud transformar a então “Fantasia cinematográfica” no balé “O boi no telhado”.

E o Brasil, o que tem com isso? Tudo! “O boi no telhado” – apesar do enredo de Cocteau situar a ação num bar americano, cenário quente graças à recentíssima Proibição – é na verdade um grandé rondó baseado na música popular que Milhaud ouviu no Rio. O próprio nome do balé vem de um “tango” que fez muito sucesso no carnaval carioca de 1918 ;-)

Só que o tal “tango” bovino não é o tema recorrente da peça. A melodia do rondó, ao que tudo indica, é do próprio Milhaud. Seguem-lhe cerca de 30 canções populares. Por exemplo: logo em seguida ao rondó é citado o curioso maxixe “São Paulo Futuro” – que ganha um acompanhamento bitonal com dissonâncias de arrepiar os cabelos!

(“O boi no telhado” é citado um pouco depois, mas acaba aí – sua importância para o balé de Milhaud está muito mais em emprestar o nome do que um tema.)

Entre as citações de Milhaud estão composições muito famosas, como o “Corta-Jaca” de Chiquinha Gonzaga, “Apanhei-te cavaquinho” de Ernesto Nazareth e o “Tango brasileiro” de Alexandre Levy. E isso é só o começo – tem citação que não acaba mais. (Lembra a “Bachianas brasileiras” no. 4, de Villa-Lobos, que citou o tema folclórico “Vamos, Maruca“? Taí aqui também!)

[Se você quiser um guia completo de tudo o que Milhaud enfiou em “O boi no telhado”, obrigatório dar uma olhada em “As crônicas bovinas“, site da americana Daniella Thompson.]

O engraçado é o tratamento que Milhaud dá aos temas brasileiros, invariavelmente em contrapontos inusitados, muitas vezes bitonais e dissonantes. As idas-e-vindas da música dão um efeito meio caleidoscópico à obra e acho mesmo que o enredo surrealista de Cocteau – com mafiosos, boxeadores, anões, policiais… – empalidece perto do que eu realmente imagino ao ouvir essa música: um imenso baile de carnaval, em que as coisas mais disparatadas acontecem simultaneamente.

Acho adequado à data :)

Chopin

Concerto para piano no. 1

… e o parzinho do Field da semana passada só poderia ser Chopin! Alguma dúvida? :)

Segue a nossa série “Concerto romântico”, que conta um pouquinho a história do concerto para piano e orquestra oitocentista. No nosso primeiro capítulo falamos dos modelos deixados por Mozart e Beethoven, e do “elo perdido” entre os grandes mestres e a produção romântica posterior.

Chopin está bem no comecinho desta história, mas ouso dizer que seus dois concertos simbolizam bem o que é o concerto romântico típico. Aliás, quando os escreveu, Chopin era bastante jovem (20 anos) e compositor um tanto imaturo. Surpreendente que tenha composto essas duas obras que, apesar de alguns problemas meio óbvios, permanecem super cativantes, tanto para o público como para os pianistas – e seguem firmões no repertório!

Dos dois, o meu favorito é o que foi publicado primeiro, em mi menor. (Na verdade foi composto depois do número 2, em fá menor.) A forma é a usual: um bem longo e meio rapsódico primeiro movimento, depois um movimento lento meditativo e um rondó final. Como de costume, o concerto começa apenas com a orquestra, que expõe os temas. Só depois entra o piano, que se cala pouquíssimas vezes desde então. Típico: muitas das obras para piano e orquestra do século 19 foram publicadas em versão somente pianística. O acompanhamento era encarado como opcional.

O costume da introdução orquestral é uma pena, porque dá ênfase justamente ao ponto fraco de Chopin, a sua falta de sutileza com a orquestra. Sim! Chopin é um mestre absoluto da escrita pianística, inclusive nas obras de juventude. Mas na orquestra ele escorrega um bocado. Neste concerto ele faz sua orquestra GRITAR meio sem cor quase o tempo todo. A exposição do primeiro movimento, apesar da beleza dos temas, fica monótona pela orquestração bruta.

(E daí resta o seguinte desafio aos regentes: como fazer a parte orquestral soar melhor? Apesar de serem obras tão centradas no piano, eu costumo escolher gravações desse concerto pela qualidade do acompanhamento. A versão de Argerich, que é incrível, fica prejudicada pela secura da orquestra de Abbado que a sustenta. Abaixo, selecionei a leitura de Alexis Weissenberg com Skrowaczewski só porque nela participa uma orquestra de som francês muito característico, que é uma delícia de ouvir. Preste atenção nas madeiras. Acho que hoje em dia não existem mais orquestras assim; que puxa!)

A música é linda, inspiradíssima. Gosto demais do segundo movimento, uma romança que é praticamente um noturno, uma meditação de beleza incrível. O rondó que lhe segue é muito adequadamente de tintas folclóricas: afinal, o nacionalismo estava na ordem do dia. (E desculpa o clichê: se o andamento lento se aproxima dos noturnos, este rondó está algo perto das polonaises.)

Chopin deu vôos mais altos? Sim! Autores posteriores compuseram concertos de maior fôlego? Sem dúvida! Mas este Concerto no. 1 permanece repleto de música não só muito gostosa de se ouvir, mas também importante de se conhecer. Sorte que é das mais populares do repertório – justíssimo!

Semana que vem, a evolução natural da espécie!

Lutoslawski

“Livro para orquestra”

Uma das minhas maiores motivações para manter esta Ilha é ter o prazer de apresentar música diferente. Vocês já repararam que esta é a série “oculta” das nossas sextas, né? :)

Por isso fico MEGA FELIZ de ter a chance de falar aqui do polonês Witold Lutoslawski, um dos caras mais fodas da segunda metade do século 20!

Até 1945 vivemos uma era de ouro musical, repleta de autores e estilos diferentes e cativantes – é mesmo meu período favorito. Mas depois da Segunda Guerra o cenário político fez os compositores optarem por uma busca radical de uma nova linguagem. As experiências do pessoal de Viena – Schoenberg, Webern et al – foram adotadas universalmente como padrão de música livre de qualquer viés ideológico ou de mercado.

Lutoslawski, que é de 1913, percorreu mais ou menos esse caminho, mas achou uma linguagem mais pessoal. Começou como um autor nacionalista, muito próximo a Bartók. Nos anos 1950 virou para o experimentalismo. A diferença é que ele descobriu, nas Bienais de Música de Veneza, o recurso da aleatoriedade, e começou a usar conscientemente o aleatório como elemento formativo de sua música.

Música aleatória é um assunto meio polêmico porque o nome nos leva a imaginar as experiências de Nancarrow recortando rolos de piano mecânico, ou de Cage compondo através do I-Ching. Não é isso. Lutoslawski enveredou pela “aleatoriedade controlada”, em que o compositor fornece ao intérprete um ponto de partida definido para a improvisação (algumas notas, um padrão rítmico, um acorde). A música resultante é, sim, nova a cada execução, mas sempre reconhecível e coerente.

Provavelmente o que fascinava Lutoslawski era a capacidade que longos trechos semi-improvisados têm de de gerar de texturas e harmonias novas. Graças a esse recurso ele conseguiu fugir da secura saariana do serialismo integral, tão em voga em sua época. Acrescente a essa receita uma personalidade artística um tanto romântica (Lutoslawski acreditava na “grande narração”, em detrimento do lirismo pontilhista weberniano) e chegamos a uma produção que é ao mesmo tempo novíssima, surpreendente e acessível.

Talvez minha peça favorita de Lutoslawski seja este “Livro para orquestra”, composto em 1968. Por que a obra tem esse nome? Lutoslawski imaginava escrever um conjunto de peças soltas, no espírito de uma coletânea barroca – por isso o termo “livro”. Mas seu gosto pela narrativa o levou a montar uma obra em um fôlego contínuo, em que quatro “capítulos” se encadeiam sem interrupção.

PARA PARA PARA! Sem interrupção, vírgula! Entre as quatro grandes partes, Lutoslawski colocou pequenos trechos à guisa de interlúdios. E o mais legal, optou por fazer as seções de ligação aleatórias, ou “controladamente” aleatórias. Fica mais ou menos assim: trechos “narrativos” alternam-se com seções de forma muito livre.

O efeito é incrível e, ao contrário do que parece, reforça o arco geral da obra, que flui suavemente do início ao fim. A música de Lutoslawski é cativante, repleta de texturas e efeitos instrumentais modernos (glissandos, fanfarras quebradas nos metais, pancadas na percussão, cordas dissonantes) aliados a um sentido infalível de tema e melodia (sim!).

Gente, é o seguinte: para tudo aí, pega o fone de ouvido, fecha o olho e embarca no “Livro para orquestra”. É diferente de tudo o que você imagina. Vai, confia em mim! :)

Handel

Concerto grosso op. 6, no. 11

Handel é um dos meus compositores prediletos, mas curiosamente falei muito pouco dele nesta Ilha. Sei lá, acho que ele é bem melhor de ouvir do que de comentar :)

Um aspecto muito curioso da personalidade handeliana era a mistura de faro apurado para o negócio, para o show biz, com musicalidade muito acima do normal. Quando se estabeleceu na Inglaterra, seu foco principal era o teatro de ópera. O modelo operístico italiano estava na moda e Handel conseguiu fazer fama e fortuna compondo e montando grandes óperas históricas em Londres.

Mas um dia a moda passou e Handel viu seu negócio sofrer. A lenda diz que foi com uma inspiração repentina que projetou “O messias”, obra-prima que praticamente inventou um gênero na Inglaterra: o oratório bíblico. E o sucesso lhe sorriria novamente.

Como intervalo nos oratórios, Handel estabeleceu o hábito de apresentar concertos. Muitas vezes eram concertos para órgão, na qual ele mesmo era solista – dois conjuntos absolutamente maravilhosos chegaram a ser publicados -, em outras ocasiões eram concertos grossos para cordas e contínuo.

Desse hábito nasceu aquele que é provavelmente o maior conjunto de concertos grossos da história, “Brandenburgos” à parte: os doze Concertos grossos op. 6, publicados em 1739. Alguns eram obras completamente novas, outros eram reciclagens de peças anteriores (Handel sempre foi um exímio reciclador de sua própria música). Aliás, o meu Opus 6 favorito, aqui destacado, é ele mesmo reciclado de um concerto para órgão (o de número 14, que não foi publicado nas duas coletâneas dos op. 4 e 7).

Diferentemente dos concertos de Vivaldi e Bach, geralmente formatados no estilo italiano de três movimentos, os concertos handelianos são quase suítes no molde francês, com várias partes. Fácil de reparar isso neste Op. 6 no. 11, com seus dois primeiros movimentos que formam, em conjunto, uma perfeita abertura francesa (lento e solene, depois fugado).

Só que a esse início francesado segue um segundo díptico, agora totalmente à italiana – um movimento lento muito típico e um finale cantante em forma tripartida. Poderia ter saído da pena de um Vivaldi!

Saca só o mix: um concerto meio francês meio italiano, composto por um alemão para um oratório bíblico montado para ingleses… Totalmente típico de Handel, o mais cosmopolita e universal dos compositores barrocos – e uma delícia do começo ao fim!

Smetana

“Minha pátria”

Franz Liszt criou o poema sinfônico, mas tenho cá pra mim que a maior de todas as obras neste molde não é dele: é este incrível ciclo “Minha pátria”, composto entre 1874 e 1879 pelo tcheco Bedrich Smetana. É tão maravilhoso que não hesito – “Minha pátria” recebe agora o SELO DE EXCELÊNCIA DO GRANDE CARVALHO, com todos os méritos, com todas as justiças!

A biografia de Smetana, que já comentei antes, é das mais agitadas do século 19. Seu final de vida foi trágico. Ficou surdo e doente, e morreu num manicômio. A composição de “Minha pátria” acontece mais ou menos ao mesmo tempo da descoberta da perda da audição – na verdade, o compositor nunca pôde ouvir sua maior criação.

Smetana passou boa parte da vida tentando estabelecer uma arte tcheca, principalmente através da ópera. “Minha pátria” é a tentativa de Smetana de representar – ou mesmo “fundar”, se me permite usar esse termo – musicalmente sua Boêmia natal, tanto do ponto de vista histórico-cultural quanto do natural.

O ciclo é composto de seis poemas sinfônicos. Smetana não imaginava que fossem executados como uma grande suíte; mas, ao mesmo tempo, criou ligações temáticas entre as partes que tornaram irresistível a prática da audição integral. Acho que faz muito mais sentido assim – a obra se fecha melhor e soa exatamente como deveria ser, um grande e emocionante épico nacional.

“Minha pátria” começa, aliás, com o tema unificador do ciclo – um motivo de quatro notas na harpa. Decore :) Toda a primeira parte simboliza a construção do castelo Vysehrad, lar dos primeiros reis tchecos e berço do país. O tema representa tanto o castelo (que aliás dá nome ao primeiro poema sinfônico) quanto a própria nação tcheca; a harpa evoca imediatamente a figura de um bardo começando a contar uma história.

A segunda parte é a mais famosa. Trata-se de “O Moldava” e seu tema é o rio que banha Praga. O rio, na verdade, é uma desculpa para Smetana nos levar a um passeio panorâmico pela Boêmia. Começamos na nascente do Moldava (os pedacinhos do tema surgindo aqui e acolá e se fundindo para formar a grande e célebre melodia), passamos pelos bosques (caçada; festa de camponeses; fadas e criaturas da noite), por uma queda d’água (o desenvolvimento dramático) e finalmente chegamos a Praga (o tema do castelo! olha ele aí!).

Do turismo à mitologia – no terceiro poema sinfônico, “Sárka”, o assunto é a lenda das amazonas tchecas, que odiavam os homens e declararam guerra a eles. Sárka, a rainha guerreira, finge-se de vítima, atrai um nobre e infliltra-se em um acampamento de soldados. Espera caírem no sono, chama suas colegas amazonas e… BANHO DE SANGUE. Não sobra nenhum cara pra contar a história. Caramba, porque lendas tchecas precisam ser assim tão violentas?

Na quarta parte Smetana se embrenha na natureza, em grande estilo. “Dos bosques e das florestas da Boêmia” é uma descrição apaixonada do interior tcheco. Vai do esplendor da floresta boêmia no auge do verão – a música é incrivelmente excitante – e chega ao folclore, com uma série de danças que não se afastam muito do espírito de “A noiva vendida“. (É uma delícia!)

Os dois últimos poemas sinfônicos foram planejados como um díptico e tratam dos hussitas, os reformadores religiosos do século 15 que, em sua luta contra a igreja, representaram todo o anseio tcheco por emancipação nacional. A dissidência religiosa acabou gerando uma guerra de verdade, com exércitos e mortos.

“Tábor”, a primeira parte do díptico, representa a resistência dos hussitas, reunidos na cidade de Tábor. A peça é toda estruturada em torno de um canto de guerra (o “hino hussita”, muito célebre, também citado por outros compositores). A crueza de sua linguagem propositalmente representa a força dos que lutavam por liberdade de culto e independência política. É talvez o trecho mais sisudo de todo o ciclo, e tem uma modernidade realmente surpreendente.

“Blaník” vem em seguida para terminar “Minha pátria” de maneira monumental. A parte se inicia com o “hino hussita”, exatamente como no fim de “Tábor” – a sensação é de exata continuidade -, mas faz o caminho da batalha à reafirmação da identidade nacional, simbolizada no retorno do tema do castelo de Vysehrad, habilmente misturado ao próprio “hino hussita”.

Musicalmente, “Minha pátria” é um milagre de originalidade e força expressiva. Smetana adota de bom grado a herança de Liszt, mas vai além, fundindo a engenharia lisztiana às cores nacionais (nem poderia ser diferente) e a um vigor muito, muito pessoal. Smetana tinha uma voz própria – e uma voz que gritava bem forte!

São 80 minutos de música da mais alta qualidade, emocionante e inspiradora. Um tesouro para os tchecos e para todos os que amam arte verdadeiramente DO GRANDE CARVALHO.

Villa-Lobos

“Bachianas brasileiras” no. 4

Já falamos aqui sobre a célebre série das “Bachianas brasileiras” de Villa-Lobos. Duas das “Bachianas” que comentamos são orquestrais: as de número 2 e 7. Hoje o papo é sobre a “Bachianas” que Villa compôs para piano solo, a de número 4. (Depois o próprio compositor orquestrou a peça… mas deixa isso pra lá! ;-))

Tenho cá comigo que esta Quarta “Bachianas” é tanto a mais próxima de Bach como a mais próxima do Brasil de toda a série. Explico!

Bach: o primeiro movimento é um maravilhoso prelúdio todo construído sobre o tema da “Oferenda musical”! É genial: Villa pega o tema bachiano (que, diz a lenda, lhe foi ditado pelo rei da Prússia) e o adapta, o transformando num lamento tristonho que é brasileiro até a raiz dos cabelos…

Brasil: … e por isso acabou sendo transformado novamente para gerar o “Samba em prelúdio“, de Baden Powell (o fundador do escotismo. não, mentira!), com letra de Vinícius de Moraes.

Bach: o segundo movimento é um coral, à maneira de um hino lento, exatamente como as harmonizações bachianas presentes no “Pequeno livro para órgão“, mas…

Brasil: … durante toda a peça uma araponga, pássaro comum no sertão, não pára de piar. Sim! Presta só atenção numa nota aguda, isolada, repetida constantemente. É o bicho, piando.

Bach: o terceiro movimento é uma ária, uma melodia acompanhada à maneira de uma canção, com o mesmo espírito das árias das suítes e partitas do mestre de Leipzig. Só que…

Brasil: … o tema desta vez veio de uma cantiga folclórica nordestina, “Ó, mana, deixa eu ir” (e daí quem seguiu Villa-Lobos no empréstimo foi Milton Nascimento).

Bach: a obra termina com uma dança. E que suíte barroca que não tem dança, um monte delas?

Brasil: a diferença é que esta “Bachianas brasileiras” termina com uma dança não da Alemanha ou da Escócia ou da França, mas do interior de São Paulo. É um tema folclórico que o próprio Villa já havia recolhido e registrado, chamado “Vamos, Maruca“.

Na versão para piano, as convergências entre as linguagens barroca e brasileira, entre Bach e Villa-Lobos, ficam mais evidentes. Sim, a orquestração é linda, engenhosa (o prelúdio em cordas divididas, a araponga no xilofone) e merecidamente famosa. Mas gosto particularmente da Quarta “Bachianas” ao piano – com toda a sua pureza original.

Field

Concerto para piano no. 2

Hoje começa mais uma nova série aqui na Ilha! Serão seis episódios temáticos, sempre às segundas-feiras, e o assunto não poderia ser mais cativante: o concerto para piano romântico!

Mas a abordagem desta vez será um pouquinho diferente. Ao invés de seguirmos na usual ordem cronológica, a ordem será feita em duplas, agrupando obras de parentesco estilístico evidente. Concertos gêmeos? Às vezes sim, às vezes nem tanto, mas sem dúvida ligados. Com esses pares tentaremos mostrar como o estilo de concerto para piano evoluiu no século 19.

Quando penso em concerto para piano inevitavelmente penso em Mozart e Beethoven. São realmente o ponto de partida desta saga. Mas ao olharmos a história do concerto para piano verificamos um salto estilístico entre esses grandes pioneiros e os autores que lhe sucederam. Acompanhe: o modelo mozartiano é clássico e equilibrado, com as vozes de solista e orquestra se entrelaçando e se completando. Já o estilo concertante de Beethoven é basicamente sinfônico, com ênfase no desenvolvimento temático e no diálogo entre opostos – piano e orquestra.

A modalidade romântica de concerto não é nem uma coisa nem outra. Ela privilegia o solista, não tem o aspecto camerístico mozartiano nem a narrativa sinfônica que imaginamos do estilo beethoveniano. O típico concerto oitocentista é uma peça criada por um compositor-virtuose para servir de oportunidade de demonstração de seu domínio do instrumento. Tem que ter música variada, passagens difíceis e colocar sempre o solista em evidência – esta é a fórmula.

Em busca do “elo perdido” do concerto romântico encontrei o encantador Concerto para piano no. 2 do irlandês John Field. Quem? É, este camarada, contemporâneo próximo de Paganini, sumiu do repertório, mas ele foi um bocado influente em sua época. Concorrido virtuose do piano, após peregrinar pela Europa se estabeleceu na Rússia, onde praticamente criou sozinho a escola russa de piano. Não somente: inventou um gênero que Chopin tornaria célebre, o “noturno”, e compôs sete concertos que foram avidamente consumidos por seus pares.

Este segundo concerto, que era amado por Schumann, é uma curiosa mescla do estilo mozartiano (principalmente no desenho dos temas) com características pessoais que se transformariam em padrão na primeira metade do século 19: um primeiro movimento longuíssimo, cheio de episódios meio desconectados, e domínio completo do piano sobre a orquestra (muito evidente no movimento central, um belo e breve noturno).

Essa insistência do piano em ficar “pianando” incessantemente é um dos traços clássicos do concerto oitocentista. A orquestra, onde está? Criando muito carinhosamente um cenário bonito para o piano derramar suas milhões de notas :)

Apesar de ser uma obra menor, acho o Concerto no. 2 de Field incrivelmente intrigante por ser essa mescla do antigo com o novo. Acho que faz sim um bonito papel de “elo perdido” entre as obras-primas concertantes de Mozart e Beethoven e o que os grandes românticos vão criar em seguida.

Aliás, qual é o concerto que faz parzinho com este Field? Assunto do próximo episódio! :) Alguém arrisca? Tá fácil! Ouve aí e dê seus palpites! ;-)

Roussel

“Baco e Ariadne”

Todo mundo tem um ano bom. O ano bom de Albert Roussel foi 1930. Nele ele compôs suas duas grandes obras-primas: a Sinfonia no. 3 e este incrível balé “Baco e Ariadne”. Salve 1930!

Antes, Roussel não havia encontrado uma linguagem própria. Estava indefinido entre o impressionismo de seus contemporâneos próximos Debussy e Ravel, e o formalismo germânico que lhe chegava via Franck e a Schola Cantorum. Foi com essas duas peças que Roussel firmou um estilo mais pessoal, vigorosamente neoclássico. E ele é realmente impressionante.

(Preciso confessar que não consigo engolir muito bem o Roussel anterior… nem o posterior, que estica o neoclassicismo de 1930 a um extremo de secura e sisudez.)

Acho mesmo que “Baco e Ariadne” é o apogeu da obra de Roussel e uma das jóias esquecidas da música do século 20. Como o nome adianta, o balé se passa na Grécia mitológica. O casting de sua estreia impressiona: coreografia de Serge Lifar e cenários de De Chirico, uau! Mas foi um fracasso. A obra acabou vingando na sala de concertos, na forma de duas suítes que nada mais são que as duas cenas do balé, ipsis litteris.

O plot lida com os eventos posteriores à vitória de Teseu sobre o Minotauro (logo no início da peça). Ariadne, filha de Mino, rei de Creta, havia se apaixonado por Teseu e o ajudara a andar no famoso labirinto (graças ao novelo!). Na fuga de Creta, Teseu levou Ariadne a Naxos e, enquanto ela dormia, foi embora para o mar. Ela acorda, abandonada. Desesperada, quer se jogar dos rochedos, quando é salva pelo deus Dioniso. Não sem uma longa corte, repleta de idas e vindas, ele a beija e a transforma em sua esposa, a alçando à imortalidade.

A música criada por Roussel reflete o dinamismo e a atmosfera ensolarada da lenda grega. Ela começa já a todo vapor, com ritmos vigorosos, cheios de acentos irregulares, que agarram o ouvinte pelo pescoço – é, meu amigo, você vai ficar na ponta do sofá, com o coração acelerado, até a música cessar!

No meio de tanta ação, um tema absurdamente maravilhoso surge – é o tema da união entre Ariadne e Baco, que fica mais claro quando os dois se beijam e, bem no finalzinho, após a incrível “bacanal”, quando Ariadne enfim se torna deusa. É lindo demais. A respiração para, o olho fica marejado, de repente as coisas ao nosso redor se transformam…

A gente escuta “Petrushka“, a gente escuta “Dáfnis e Cloé”, mas não ouve “Baco e Ariadne”! Por quê? Repare este erro AGORA! Se a sua vida não mudar, pode vir falar comigo – aqui é satisfação garantida ou seu dinheiro de volta! :)