Dvorák

Quarteto de cordas no. 12, “Americano”

Antonín Dvorák sempre viveu modestamente na sua Boêmia natal. Na verdade, demorou para se livrar de preocupações materiais mais imediatas. Em 1874, quando tinha uns 33 anos, ganhou um prêmio do governo austríaco e chamou a atenção de Brahms, mas permaneceu relativamente obscuro. Em 1877 ganhou o prêmio novamente e aí sim veio o sucesso – Simrock, o mesmo editor de Brahms, acabou por lhe encomendar as “Danças eslavas” e uma carreira internacional começou.

O ápice desse reconhecimento veio em 1892, quando foi convidado para chefiar o Conservatório de Nova York. A oferta foi irrecusável! Os Estados Unidos eram uma jovem nação em busca de respeitabilidade, e importar grandes nomes da Europa era uma das estratégias – Tchaikovsky regeu o concerto inaugural do Carnegie Hall um ano antes, Mahler repetiria a jornada dvorakiana quinze anos depois.

Feliz da vida, Dvorák rumou à América. O começo foi incrível – compôs e estreou sua Nona Sinfonia no que provavelmente foi o maior triunfo de sua carreira -, mas logo teve seu salário diminuído e as pressões, ampliadas. Um de seus refúgios americanos era uma pequena comunidade rural tcheca no estado de Iowa, meio-oeste dos EUA, na qual passava os verões. Nela, matava um pouquinho da saudade de casa e, ao mesmo tempo, travava contato com a música local.

E voltou a compor! A primeira obra de Spillville foi este Quarteto de cordas no. 12, que muito cedo recebeu o apelido de “Americano”. Faz jus ao epíteto. Ele é repleto de melodias pentatônicas, que lembram imediatamente tanto a música folclórica branca americana quanto o spirituals negro. Dvorák inventa aqui uma fórmula que se provou eficaz: o perfume modal combinado com certa ênfase em ritmos sincopados são a base de muito do que imaginamos “Velho Oeste” em música.

(Sim! Essa linguagem “americana” não existia até aparecer Dvorák, um tcheco, para criá-la! Só depois é que foi usada à exaustão por compositores nativos como Chadwick e Parker. Parker, aliás, foi professor de Charles Ives. Ouça lá sua Sinfonia no. 1 e me diga se é ou não puro Dvorák!)

O Quarteto no. 12 é delicioso e permanece como um dos mais famosos do repertório. O segundo movimento tem um sabor nostálgico aparentado ao spirituals e é maravilhoso do início ao fim. E o terceiro, um scherzo, tem um convidado especial, um passarinho chamado sanhaçu-escarlate, cujo canto insistente atormentava Dvorák. Acabou inserido no quarteto – preste atenção numas figuras repetidas do violino :)

Dvorák voltou a Europa dois anos depois. Mas da estada americana ficaram várias obras-primas: a Nona Sinfonia, este Quarteto “Americano”, um quinteto de cordas, uma sonatina para violino, o supremo Concerto para violoncelo… e principalmente um estilo novo, que deixou de presente para os anfitriões. Esse cara era demais!

Debussy

“O mar”

Creio que o legado de Claude Debussy não seja suficientemente lembrado. O cara criou uma linguagem inteiramente nova, quase do zero, que influenciou de maneira decisiva a história da música do século 20. E é bem menos ouvido do que deveria.

Contemporâneos como Mahler e Strauss seguem bem mais populares. Todos foram muito relevantes, mas na minha opinião o “som” criado por Debussy foi absolutamente fundamental para a produção pós-Segunda Guerra.

A principal obra de Debussy é, certamente, “O mar”, suíte sinfônica de 1905. Não: “O mar” é uma das maiores obras-primas do século 20. Não: “O mar” é uma das maiores obras-primas da HISTÓRIA, uma peça totalmente merecedora do SELO DE EXCELÊNCIA DO GRANDE CARVALHO e, principalmente, de nossa audição. Então vamos lá! \o/

Falei suíte sinfônica e é esse o nome que Debussy escolheu para classificar sua obra. Mas poderia ter chamado de “Sinfonia” e estaria perfeito! “O mar” é dividido em três movimentos, cada um deles descrevendo um aspecto do oceano. Aliás, vale ressaltar: é uma descrição mesmo, quase pictórica. Nenhum “evento” acontece. Não há seres humanos, embarcações, deuses, fadas, ninfas, espíritos ou mesmo animais no mar debussista. Apenas água, ondas, rochas, o vento, a luz do sol…

O caveat acima pode ter passado a impressão de monotonia, mas não. Debussy opera aqui o milagre de construir uma música que se renova o tempo todo, com material que praticamente não se repete e que cativa o ouvinte a cada instante!

Voltemos ao pedigree sinfônico de “O mar”: seus três movimentos já revelam a ligação com a forma tradicional de sinfonia. A primeira parte, dita “Da madrugada ao meio-dia no mar” lembra um primeiro movimento com a costumeira introdução lenta; a segunda parte, “O movimento das ondas”, é em tudo um scherzo; o último trecho, “Diálogo do vento e do mar” serve como um finale dinâmico, que injeta algum drama a uma peça que, em geral, é muitíssimo mais contemplação que ação.

Há muita novidade em “O mar”. A orquestração é maravilhosa, “recheada” mas transparente, muito diferente da tradição germânica, por exemplo. O jeito como Debussy desenvolve seus temas, dá unidade à obra e cria grandes arcos narrativos é profundamente original. E, acima de tudo, o “som” geral é totalmente único – Debussy opera diversas revoluções, mas é mais revolucionário ainda na harmonia!

Gente, é DO GRANDE CARVALHO demais – então chega de papo e vamos ouvir. Clicaê!

Brahms

“Requiem alemão”

Para quem são oficiadas as missas de requiem? Se pegarmos o texto latino do Próprio (i.e., da parte da missa que é específica do rito dos mortos) fica muito óbvio que elas são feitas em intenção dos mortos, ou seja, para eles: “que descansem em paz”, “libertai as almas dos que têm fé”, “que a luz eterna os ilumine” etc.

Nosso amigo Johannes Brahms, lá em 1865, imaginou algo um pouquinho diferente: e se houvesse um requiem que fosse direcionado aos vivos, às pessoas que sofrem com a morte (de entes queridos também, mas principalmente com a própria ~perspectiva da morte~)?

Foi com essa ideia que ele compôs sua primeira grande obra-prima, um oratório que chamou de “Um requiem alemão”. Alemão principalmente porque, ao contrário do rito católico tradicional, não é cantado em latim, mas em alemão mesmo. Brahms escolheu sete textos da Bíblia (antigo e novo testamentos) que tratam da temática da morte sob a perspectiva dos vivos. Vale listar:

  • “Abençoados, os que sofrem” (Mateus)
  • “Toda a carne é como a relva” (1 Epístola de Pedro)
  • “Faze-me conhecer meu fim, Senhor” (Salmo 39)
  • “Como é agradável tua morada” (Salmo 84)
  • “Agora sois tristes” (João)
  • “Aqui não temos morada permanente” (Hebreus)
  • “Abençoados, os mortos” (Apocalipse)

Em geral, o que chama a atenção é a falta de um tom “proselitista” ou religioso. Não há menção direta a nenhuma crença específica. Os textos escolhidos por Brahms são propositadamente genéricos em suas menções a Deus ou à salvação. Há mais a preocupação geral em representar a angústia pelo mistério da vida e da morte (as partes 2, 3 e 6) e trazer certo alívio (as partes 1, 4, 5 e 7).

(A posição religiosa de Brahms pode ser a chave para essas escolhas. Tradicionalmente Brahms é classificado como ateu, ou no mínimo como um humanista livre-pensador, o que certamente era. Há cartas em que o compositor relata certa inquietude com alguns dos textos que escolheu, principalmente os trechos do Evangelho de João da parte 5.)

Musicalmente o “Requiem alemão” marca o início da fase madura de Brahms. Como já comentamos, suas obras anteriores são tipicamente superromânticas e transbordantes; aqui Brahms torna sua linguagem mais equilibrada e sua expressão mais comedida. Chamam a atenção a grande ênfase coral do “Requiem” (os dois solistas vocais só aparecem em três dos sete movimentos) e a maestria das fugas das partes 3 e 6 (uma forma tão esquecida pelo romantismo!).

A obra impressiona pela profundidade de seu pensamento, pela sensação de paz e consolo que realmente transmite (apesar das tempestades das partes 2 e 6) e pela perfeita estrutura. A originalidade da abordagem religiosa e a beleza da música fazem do “Requiem alemão” uma das partituras obrigatórias do século 19. Tem de ouvir!

Shostakovich

Sinfonia no. 5

Chegamos ao fim de nossa série “V“! E a Quinta de hoje resgata um compositor tão querido quanto polêmico: Dmitri Shostakovich.

Todas as sinfonias que mostramos até agora, com exceção da de Bruckner, têm claramente a luta como tema. A Quinta de Beethoven é uma longa batalha que só se resolve no fim. A de Mahler parece-se mais com uma batalha interior cuja paz só é alcançada no penúltimo movimento – o último é uma bizarra euforia. A de Nielsen é somente metade luta – o conflito é resolvido no meio da obra, sendo que o restante da sinfonia serve para dar um rumo definitivo à vida pós-guerra.

Já esta Quinta de Shostakovich já começa com a batalha encerrada. Toda a ação está aqui na busca de uma acomodação pós-conflito.

Como sempre em Shostakovich, buscamos entender melhor sua obra através de sua vida. A Quinta foi escrita em 1937, um ano particularmente complicado para o compositor. Em 1936 Shostakovich sofreu um duro golpe do regime soviético quando sua ópera “Lady Macbeth de Mtsensk” foi o pivô de um artigo demolidor no Pravda, o jornal oficial. A burocracia stalinista, através do tal artigo anônimo, mandava um recado ao compositor: a estética do regime era outra e ele ~~precisava se enquadrar~~.

Era uma proposta que Shostakovich não poderia recusar. Vale lembrar que o “Grande Terror” stalinista estava começando e vários artistas, na maioria amigos ou conhecidos de Shostakovich, foram presos e assassinados pelo regime. No meio da confusão, aterrorizado, o compositor mandou cancelar a publicação da Quarta Sinfonia, uma obra que continuava a linguagem de “Lady Macbeth de Mtsensk”. E #partiu compor a Quinta.

A nova sinfonia era a resposta oficial que Shostakovich precisava dar. Então, reflitamos: se esta Quinta teve seu conflito terminado antes da própria obra, significa que a sinfonia se inicia com… uma derrota! Sim, de todas as quintas que mostramos, esta é a única em que há derrota, acontecida a priori, antes da música começar. Pois é. Nesta sinfonia Shostakovich não luta, mas lambe suas feridas.

A obra inicia propriamente com um movimento lento com um sabor meio de passacaglia (na verdade, é um cânone), quase uma marcha. Esse gesto se tornaria muito típico do autor – várias sinfonias posteriores começariam com um longo e sombrio movimento lento. Há um clímax marcial e a parte termina meio interrogativa.

O scherzo a seguir é calcado totalmente no scherzo da Segunda de Mahler – a “Ressurreição“, lembram? É uma espécie de valsa irônica, ansiosa. Seu amargor é dissipado pelo movimento lento, uma longa e bela elegia, que os estudiosos afirmam ter diversas referências religiosas. Não é difícil pensar nesta parte como um lamento velado pelos mortos do regime.

Dores resolvidas, hora da resposta pública: o finale, de espírito marcial e exterior, que assume de bom grado a estética do realismo socialista que o artigo do Pravda lhe impôs. É de uma alegria e um triunfalismo que não faz sentido frente ao restante da sinfonia, que é francamente azedo. Ou… faz todo o sentido do mundo se entendermos a obra como um caminho que inicia na derrota, passa pelo luto e termina na genuflexão.

É uma sinfonia fascinante, seja por sua narrativa, seja pela própria qualidade musical. É uma mais-que-digna representante das diferentes lutas que definem a grife “Quinta Sinfonia”. Ouçam, comentem! E, segunda que vem, nova série!

Barber

Sinfonia no. 1

Assim como o Brasil, os Estados Unidos têm a sua produção musical bastante concentrada no século 20. Bom, talvez mais concentrada ainda – afinal, antes disso nós tivemos José Maurício e Carlos Gomes; eles, que eu lembre, somente Edward MacDowell.

Dos autores americanos da primeira parte do século 20, certamente Copland é o principal e mais influente – bota influente nisso! Ives e Gershwin são casos muito à parte, por motivos diferentes. Do segundo time, há um monte de compositores, com destaque para Leonard Bernstein – muitíssimo mais famoso como regente – e para Samuel Barber, o assunto de hoje.

A música americana sempre foi razoavelmente conservadora (e é até os dias de hoje), principalmente se compararmos com o que se fazia na Europa continental. Barber é um exemplo desse conservadorismo. Sua produção foi francamente neorromântica, com poucas incursões numa linguagem mais moderna. Em seus melhores momentos, impressiona pela veia melódica exuberante e pelo senso formal muito acurado. Nos piores, é um limão sem sumo.

Mas vamos nos concentrar na parte boa :) Quando inspirado, gosto muito de Barber. É ótimo exemplo de música que é anacrônica, sim, mas muito bem escrita. Sua melhor obra é a Sinfonia no. 1, de 1936. Aliás, para mim, é mais que isso: é a maior sinfonia americana, apesar de Ives.

A Primeira de Barber é daquelas obras em que vários movimentos tocados sem interrupção se transformam em um movimento único graças à reciclagem do material temático. (Oi, Liszt!) Os três temas da primeira parte, no estilo declamatório característico, dão origem às três partes seguintes (um scherzo, um andante e uma passacaglia).

Creio mesmo que é a narrativa que emociona, com essa qualidade tão rara da concisão, mas os temas são lindos e a orquestração é suficientemente variada para carregá-los muito bem. Se a linguagem musical é conservadora? Sim, lembra um Sibelius ou um Nielsen de vinte anos antes. (Oi, Sétima! Oi, “Inextinguível“!) De qualquer maneira, convence. Não é exatamente pessoal, mas funciona!

Olhando em retrospectiva a produção sinfônica americana não-Ives: a Terceira de Copland tenta unir o estilo “apalachiano” ao maior fôlego do gênero sinfônico, mas o resultado é, IMHO, longo e chato; a Terceira de Harris tem uma linguagem mais pessoal e é muito boa, mas tenho certa implicância pela sua falta de contraste. So… I’ll stick with the Barber. Give it a try!

Chopin

Prelúdios, op. 28

Algumas obras musicais exercem fascínio extra por serem tão enigmáticas. Os magníficos 24 Prelúdios, op. 28, de Chopin, estão entre elas.

Começa pelo próprio nome: “prelúdio”. Prelúdio é algo que antecede outra coisa, que vem antes de um acontecimento principal. Igual à preliminar no futebol – alguém se lembra dos curiosos campeonatos de aspirantes, cujos jogos aconteciam antes das partidas principais? Pois que no Opus 28 de Chopin não há atração principal. Só os prelúdios, que antecedem… uns aos outros.

Na verdade, o termo aqui é usado como sinônimo de “improviso”, uma espécie de floreio lírico, geralmente muito breve. E aqui está o maior enigma da obra: cada um dos 24 prelúdios é bem curtinho. Alguns estão à beira do mero gesto. O de número 14, por exemplo, dura meio minuto, e termina como se não tivesse nem começado.

Chopin estruturou a coleção na tradição não de um Bach (e seu “Cravo bem temperado”, duas coletâneas de prelúdios e fugas em todas as tonalidades) mas na dos compositores-pianistas novecentistas, como Hummel e Moscheles. Optou por escrever somente prelúdios, nas 12 tonalidades maiores e menores, na ordem do círculo das quintas.

Provavelmente Chopin nem imaginava uma audição completa, na ordem, como se tornou padrão depois. Ouvir os prelúdios assim, de fato, é uma experiência desconcertante, mas que faz muito sentido. A alternação maior-menor dá movimento ao conjunto, a evolução tonal é cativante e o desfile de climas e eventos musicais não para de surpreender o ouvinte.

A uma abertura que parece um borrão, seguem prelúdios muito sérios e estáticos (4 – não, não é Tom Jobim!), outros que são verdadeiros coriscos (10), uma mazurca ali (7 – saca as sílfides?), uma cena feérica acolá (23), uma marcha fúnebre (20), uma tempestade eventual (22), uma declamação épica (24). O meu favorito e provavelmente o mais famoso também é o de número 15, com uma seção central assustadoramente dramática e pesada.

Junto com sua Sonata no. 2, também repleta de enigmas, este conjunto de 24 Prelúdios é das obras mais modernas de Chopin. Nada nela é convencional, fácil ou – como no clichê associado ao compositor – “comportado mas sonhador”. É música com eme maiúsculo, das mais anticonvencionais do século 19.

Bach

“A paixão segundo São Mateus”

Todas as quartas mostramos obras monumentais, imensas, gigantescas, mamúticas e gargantuescas, todas merecedoras do SELO DE EXCELÊNCIA DO GRANDE CARVALHO. Hoje vamos dar um salto ainda maior. Chegou o dia de comentarmos o que muitos alegam ser a maior peça musical de todos os tempos: “A paixão segundo São Mateus” de Johann Sebastian Bach. BEHOLD!

Composta para a sexta-feira santa de 1727, executada na Igreja de São Tomás de Leipzig da qual Bach era o diretor musical, desde sempre essa “Paixão” foi planejada como algo importante. Já comentamos que Bach teve, por bom tempo, que compor cantatas semanais para a igreja. A “Paixão” se diferencia de todas elas não comente pela duração maior, mas pela ambição maior. Índice melhor disso é sua instrumentação: oito solistas vocais, dois coros, órgão e DUAS orquestras. A obra é grande por design.

Mais exemplos: lembram quando falei da estrutura básica da cantata bachiana, com seu esquema coro-ária-recitativo-coral? Ela está presente aqui, mas em grande escala e com vários twists. Bach aqui brinca de fundir seus moldes, criando compósitos incrivelmente expressivos. Vejam só: a obra já inicia LOGO DE CARA com dois coros sobrepostos a um coral, em que comentários poéticos de Picander são cantados em antífonas, e um hino luterano é cantado por um terceiro coro, ao mesmo tempo. É eletrizante! Funciona como se Bach mostrasse suas credenciais, desse um roundhouse kick e dissesse: “agora o BICHO VAI PEGAR!”.

E pegou mesmo! Seguem a esse coro-coro-coral absurdo mais 67 números de arrepiar os cabelos, em duas grandes partes (1-29, 30-68). É um desfile de momentos de beleza e profundidade inacreditáveis, que não somente contam a história do martírio de Jesus, mas despertam reflexões muito além de qualquer religião.

São cerca de duas horas e meia de música e é até difícil listar minhas partes favoritas. Em geral gosto dos coros (ah, os de abertura e fim de obra!), e das fusões, como o duo/coral do número 27, o recitativo/coro/ária/coro dos números 19-20 ou o recitativo/coro do número 67, o penúltimo. Várias árias ficaram imensamente célebres, como a de número 39, para voz de contralto (e violino obbligato); a de número 35, para tenor (e violoncelo obbligato); e especialmente a de número 65, para baixo, um dos supremos exemplos de alegria triste (ou tristeza alegre?) da história da música.

E pensar que tal monumento tenha passado quase 100 anos na obscuridade? Bach certamente promoveu mais uma ou duas audições da “Paixão” depois da estreia, mas depois disso a obra sumiu. Foi resgatada em 1829 por Mendelssohn e, aí sim, nunca mais deixou de ser reverenciada – universalmente, por músicos e plateia, cristãos e ateus, são-paulinos e corintianos…

Qualquer outro comentário que eu faça vai chover no molhado. O Amancio Cueto do blog Euterpe publicou no começo de 2013 uma série sensacional que destrincha a “Paixão” em detalhes. O melhor que todos temos a fazer agora é ler o texto do Amancio e – acima de tudo – ouvir a música incrível que Bach nos deixou. Obrigado.

Ravel

Concerto para piano em sol maior

Chicotada! Marchinha de soldadinho de chumbo! Jazz!

Não, eu não fiquei maluco. É mais ou menos esse o esquema da exposição do primeiro movimento do famoso Concerto para piano em sol maior de Maurice Ravel, obra de 1931. O maluco, no caso, é ele :)

Ravel compôs dois concertos para piano e orquestra. O primeiro foi uma peça para ser tocada somente com a mão esquerda, em ré maior. Pouco tempo depois Ravel teve a ideia para um segundo concerto, para as duas mãos, fortemente influenciado pelo jazz americano.

Vale lembrar que o jazz estava na moda na França no anos 20 e 30. Gershwin mesmo esteve em Paris em 1928 e fez muito sucesso com sua “Rhapsody in blue“. O resultado é que vários compositores de concerto, como Poulenc e Milhaud, incorporaram tiques jazzísticos a suas obras.

Ravel não ficou imune, é claro. Seu primeiro contato com o jazz foi com as diversas bandinhas de New Orleans que visitavam Paris e depois nos EUA mesmo (quando conheceu Gershwin). Em 1927 ele já havia escrito sua Sonata para violino, com um movimento inteiro chamado “Blues”. O caminho para este Concerto em sol já havia sido traçado.

Chicotada! Marchinha de soldadinho de chumbo! Jazz! A mistura do primeiro movimento é tão inusitada e funciona muitíssimo bem. As milhares de blue notes, com seu som tão típico, são as responsáveis pela cor predominantemente jazzística do movimento. E o solo de piano nunca, nunca deixa de lembrar o da “Rhapsody in blue”…

É muito legal, mas arrisco dizer que é mesmo o segundo movimento que deixa a impressão mais duradoura no ouvinte. Nada de jazz – é um adagio de tranquilidade absoluta, no qual o solista derrama lirismo sobre a paisagem estática fornecida pela orquestra. É de uma simplicidade e uma beleza inacreditáveis! Vários outros compositores tentaram roubar-lhe o molde: penso imediatamente no americano Samuel Barber, mas tem também Camargo Guarnieri, o português Lopes Graça… Ravel criou aqui o formato do moderno movimento lento de concerto.

A obra termina com um moto-perpétuo curtinho e mega virtuosístico, agora sim cheio de jazz. Ele consegue nos colocar de volta em solo firme após o movimento lento de sonho. E termina, sem muita cerimônia. Essa brevidade é esquisita de início, mas, sei lá, acho que faz sentido. Eu não conseguiria imaginar a graça de um finale muito elaborado após tamanha beleza. Chicotada! Pá pum! Tinha que terminar assim mesmo :)

Nielsen

Sinfonia no. 5

Após um longo e tenebroso inverno, estamos de volta! \o/

Quando a primeira temporada deste blog foi inesperadamente interrompida, estávamos no meio de uma série – “V“, dedicada a algumas Sinfonias no. 5 especialmente interessantes. Já falamos de três: a de Beethoven, a de Bruckner e a de Mahler.

Hoje é dia de comentarmos uma menos conhecida mas igualmente sensacional: a Quinta Sinfonia do dinamarquês Carl Nielsen, de 1922.

Esse camarada é dono de uma das produções mais originais do século 20. Contemporâneo exato de Sibelius e pouca coisa mais novo que Strauss e Debussy, Nielsen foi aparentemente o mais conservador da turma. Sua obra de juventude nunca se afasta muito de Brahms ou Dvorák, e até o fim da vida manteve-se razoavelmente fiel à tradição germânica. Compôs seis sinfonias, três concertos, um monte de música de câmara e duas óperas, sem nunca vestir a roupa de revolucionário.

Mas que música diferente a dele! O traço mais importante de seu estilo vem de sua aptidão natural para o teatral: a presença constante de “personagens” e eventos musicais inesperados que surgem na maioria de suas obras para causar disrupção, instabilidade. Vejamos:

  • Os cantores que aparecem no meio da Terceira Sinfonia;
  • O duelo de timpanistas no final da Quarta Sinfonia;
  • O maldito trombone que importuna o solista no Concerto para flauta;
  • A onipresente caixa do Concerto para clarinete;
  • O final maluco da Sonata para violino no. 2;
  • O longo trecho ad libitum do poema sinfônico “O sonho de Gunnar”;
  • O bizarro scherzo da Sexta Sinfonia.

E, claro, a Quinta Sinfonia que é nosso assunto de hoje. Chama a atenção nessa obra sensacional sua disposição inusitada (dois movimentos compostos por duas e quatro partes, respectivamente, tocadas sem interrupção) e o papel importante da caixa no primeiro movimento. (De fato, daria para classificar a metade inicial da obra como um confronto entre a orquestra e a caixa. Nielsen chegou a escrever na partitura a instrução para o percussionista: “improvise para impedir, a todo custo, a orquestra de tocar”. Uau. SPOILER: a orquestra vence no final!)

A sinfonia começa num cenário desolado, com figuras nas violas ao estilo de um sismógrafo ou um contador geiger. Será que Nielsen pensou mesmo num mundo pós-apocalíptico? Aos poucos a presença da já mencionada caixa se faz perceber e, realmente, ela briga com todo mundo. Só depois de um tempo surge um belo tema nas cordas graves que parece rivalizar com a secura destrutiva da caixa; repetida por toda a orquestra, não sem muita batalha, essa melodia sela o clímax da primeira parte e a vitória final dos “sentimentos positivos”.

Já dava para terminar aí? Hmmm. Ao contrário da Quinta de Beethoven, que só resolve seu conflito no final, a Quinta de Nielsen o resolve no meio. Mas não houve resolução real – quer dizer, a tal da caixa foi derrotada, mas ainda é preciso levar a sinfonia para algo diferente daquela desolação completa do “contador geiger” inicial.

Então a segunda parte começa a todo vapor, realmente “propositiva”, cheia de esperança. Mas o caos logo se instaura, na forma de uma fuga caricata, quase uma marcha, não muito distante da metaleira de um Shostakovich, por exemplo. Só há paz após uma segunda fuga, desta vez lenta e reflexiva, sobre o tema “propositivo” do início do movimento, que justamente retorna para terminar esta obra-prima da maneira mais positiva e majestosa possível.

É um percurso lindo, muito emocionante. Notem que fiz um baita esforço para comentar a obra sem super interpretá-la. A descrição restou abstrata porque Nielsen realmente não dá nenhum background literário ou extramusical para a sinfonia. Nem subtítulo ela tem. O que a caixa simboliza? É uma batalha do quê afinal? O que é esse mundo tão soturno que inicia a obra? Tem a ver, será, com a Europa do pós-guerra (em 1922 a Primeira Guerra Mundial mal havia acabado)?

Não temos como saber. O que fica: uma das maiores sinfonias do século 20 (e de qualquer século), das mais humanas e originais jamais compostas, e que você PRECISA conhecer. Então clica aí! ;-)

Schumann

Quinteto para piano

Já comentei aqui, quando falei de obras de Shostakovich e Dvorák, que tenho especial carinho por um gênero: quintetos para piano e cordas. Talvez porque seja uma união entre o mundo arquitetônico do quarteto de cordas e o lirismo da música para piano.

Embora Mozart e Beethoven tenham composto quartetos para piano anteriormente, o quinteto para piano, nesse formato, só se consolidou graças a uma obra: o Quinteto para piano de Robert Schumann, de 1842. Depois de Schumann vieram Brahms, Franck, Elgar, Martinu e um monte de outros compositores – a forma tornou-se clássica.

Schumann foi, por toda a juventude, um autor primordialmente de música para piano. Já comentamos duas de suas obras-primas pianísticas – “Carnaval” e “Kreisleriana” – e acho mesmo que é o Schumann do piano que permanece mais fortemente hoje em dia. Mas, assim que se casou com Clara Wieck, Schumann se sentiu mais à vontade para começar a abordar diversos gêneros, em surtos criativos muito curiosos.

Em 1840 resolveu compor canções: praticamente só fez isso, e foi muitíssimo feliz. Em 1841 foi a vez da orquestra: compôs o Concerto para piano, as Sinfonias de números 1 e 4, e várias outras peças sinfônicas, com resultados até hoje meio polêmicos. Em 1842, enfim, a música de câmara. Iniciou com três quartetos de cordas muito belos mas meio esquisitos, que não conseguiram entrar no repertório. O desconforto com o meio foi tão grande que Schumann resolveu a partir daí só fazer música de câmara que incluísse o seu velho conhecido piano – e daí nasceu este Quinteto.

Acertou em cheio! O Quinteto é das obras mais felizes do repertório camerístico do século 19, o que é um BAITA DE UM ELOGIO (uma época que teve Beethoven, Schubert e Brahms!). Em termos formais ou expressivos, nele simplesmente não há o que retocar.

A peça começa vibrante e memorável, com um tema que vale guardar na memória – ele volta no finalzinho ;-) O segundo movimento é o mais famoso: uma marcha fúnebre de sóbria beleza (o cinema saberia fazer-lhe bom uso), cuja escuridão é quebrada por uma bem-vinda seção mais agitada. Em seguida, um lindo e contrastante scherzo, de todo leveza e felicidade, com dois (!) trios de arrepiar os cabelos. (Schumann gostava de colocar duas seções moderadas no meio de seus scherzos.)

O finale é especialmente interessante: uma espécie de moto perpétuo de intensa atividade contrapontística. Na última das várias fugas, o tema principal do primeiro movimento retorna para se fundir ao tema do finale e dar ao Quinteto a prova definitiva de sua maravilhosa unidade.

Robert, queridão, você acertou na mosca! ;-)