Dvorák

“O espírito das águas”

Segunda de Carnaval e nossa série “Mágico, fantástico, lendário” continua! Já falamos de quatro obras baseadas em antigos contos folclóricos que têm algo em comum, além do clima sobrenatural: o fundo moralizante.

Se fosse eu um antropólogo/sociólogo, poderia discorrer sobre a necessidade social do “reforço negativo” e de historinhas no modelo alerta-desobediência-punição. Mas prefiro lembrá-los da figura sempre exemplar de J. Walter Weatherman. ;-)

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Não há lição que não possa ser aprendida com o auxílio de um braço falso.

Engraçado notar que as duas primeiras obras de nossa série, ambas óperas, terminam relativamente bem: a mocinha não morre com o tiro amaldiçoado do franco-atirador e o holandês aparentemente safou-se da maldição graças à fidelidade post-mortem de Senta. Acho que finais inteiramente trágicos não pareciam muito auspiciosos para os produtores de ópera da época – bom, não são até hoje para Hollywood, vide Spielberg.

Mas será que na sala de concertos tudo é possível? O público dos concertos seria MACHO PACAS, então por isso Franck e Dukas se sentiram bastante à vontade para fazerem os protagonistas de seus poemas sinfônicos se darem mal? Sei lá. O fato é que os compositores de música instrumental tinham muito menos dó de seus personagens e podiam puni-los à vontade por suas transgressões.

A obra de hoje traz essa super crueldade típica das manifestações populares: trata-se de “O espírito das águas”, poema sinfônico composto por Antonín Dvorák em 1896. Dvorák usou, como base desta e de outras três peças, poemas da coletânea “Um ramalhete de lendas populares” do poeta tcheco Karel Erben, publicada em 1853. O livro de Erben, composto de treze baladas adaptadas de contos populares boêmios, é um clássico em seu país. Serviu de base para um monte de peças de teatro, filmes e obras musicais – entre elas as de Dvorák.

Quase todas as lendas do “Ramalhete” são incrivelmente soturnas e cruéis. E eram lidas para/por crianças! Sabe aquele terrorzinho básico que os pais gostavam de incutir nos filhos até poucas décadas atrás? Pois então. Hoje, tudo que é feito para o público infantil é cuidadosamente “edificante”; à época podia ser francamente traumatizante, sem nenhum pudor.

O primeiro dos poemas sinfônicos que Dvorák compôs sobre o “Ramalhete” é este “O espírito das águas”. A historinha tem como personagens principais uma mocinha, sua mãe e o próprio Espírito das Águas – um ser repugnante que mora no fundo de um lago e que mata desavisados para guardar suas almas em xícaras viradas (tá aí a explicação mítica para afogamentos). Muito resumidamente: a mocinha não liga para os alertas da mãe e vai ao lago. Termina, claro, capturada pelo Espírito das Águas, que a torna esposa e mãe de seu filho.

O tempo passa, numa vida triste no fundo do lago. Pois que um dia a mocinha pede permissão ao Espírito para visitar a mãe. Ele consente, desde que ela deixe o filho com ele e que volte antes das oito horas. Claro que ela perde o horário, o que enfurece o Espírito, que vai à caça de sua esposa. Em uma cena assustadora, o Espírito trava um baita duelo com sua sogra – que não queria deixar a mocinha voltar para o lago – e acaba matando o próprio filho como punição a ambas.

Duplo crime, duplo castigo. De uma lenda sombria e sanguinolenta, Dvorák criou uma música de imenso poder evocativo e de maravilhosa engenharia. Toda a peça é baseada no insidioso tema do Espírito, que não só inicia a obra como lhe fornece o motor rítmico geral – os “saltitos” característicos. Os temas da mocinha e sua mãe, e depois o tema da criança, são comoventes. As sobreposições que Dvorák faz, mesclando os motivos para representar as diversas passagens da história, são impressionantes. E o final é avassalador.

“O espírito das águas” é um dos poemas sinfônicos mais incríveis do século 19. Se é muito menos conhecido do que deveria, culpa nossa. Comece sua redenção agora: é só clicar :)

Ah, sim, claro! O Leonardo T. Oliveira, do Euterpe, escreveu um artigo fabuloso explicando detalhe por detalhe desta obra-prima. Vale conhecer a peça toda e depois ler o post dele com calma – tenho certeza de que vários detalhes preciosos vão ser revelados!

Tchaikovsky

“Souvenir de Florence”

Tchaikovsky, esse ultrarromântico, criador de trágicas e dramáticas sinfonias, óperas e balés, um mestre da intimista e formal música de câmara? Pois é. Por trás desse pathos romântico, estava escondido um certo formalismo e uma necessidade de equilíbrio. O autor da Sinfonia “Patética”, quase um bilhete de suicida posto em música, admirava a música do século 18 e tinha Mozart como ídolo e modelo. Go figure…!

Tchaikovsky compôs uma série de obras que representam seu lado mais clássico. As quatro suítes orquestrais são as mais evidentes – a última delas se chama inclusive “Mozartiana”. As célebres Variações sobre um tema rococó, para violoncelo e orquestra, também. E há a hiperbatida Serenata para cordas. Mas acho que a sua produção de câmara representa uma união bem legal entre a expressão romântica e a feição mais clássica do compositor. É muito mais interessante do que parece.

Da relativamente pequena produção de câmara tchaikovskiana, gosto particularmente do seu sexteto de cordas, dito “Souvenir de Florence” (em francês: “Lembranças de Florença”), de 1892. É revelador que uma peça de câmara, no modelo bem certinho de quatro movimentos, receba título e tenha uma origem tão oitocentista: uma viagem de “escapada” de verão para a Itália.

Vale lembrar que Tchaikovsky vivia uma espécie de pesadelo social na Rússia. Homossexual em uma sociedade repressora, fez de tudo para escapar dos olhares vigilantes. Chegou a fazer um casamento fajuto com uma fã psicótica, que só gerou imenso transtorno e infelicidade. Para extravasar seus desejos e necessidades, Tchaikovsky fugia. Viajava, principalmente para a quente Itália. Anônimo, livre, sem ninguém a vigiar, vivia LA VIDA LOCA.

Essa felicidade está bem evidente no início frenético da peça, a todo vapor, seguido por um lânguido tema, cheio do caráter do verão italiano. O segundo movimento é uma espécie de serenata. O terceiro é um scherzo um pouquinho mais sombrio, bem intrigante, enquanto o finale volta à efervescência do início, mas com um sabor meio eslavo que curiosamente foge completamente à Florença. E como o ouvinte pode tirar o grudento tema do finale da cabeça? Impossível!

O sexteto é tão expressivo e tem som tão cheio e “sinfônico” que foi rapidamente arranjado para orquestra de cordas. A obra é maravilhosamente rica e envolvente e merece ser muito mais conhecida. É de uma perfeição germânica? Não, mas é quente e viva e representa belamente uma faceta muito intrigante da vida e da obra desse compositor tão popular que é Tchaikovsky.

Bach

Suíte orquestral no. 3

O que é uma suíte? Essa é uma palavra de origem francesa que significa simplesmente “sequência”. Tipo, uma coisa atrás da outra. Só isso.

O gênero musical da suíte é exatamente isso: vários trechos, com pouca ou nenhuma ligação entre si, enfileirados. Pense numa coleção. Ele surgiu na segunda metade do barroco como uma maneira de fazer música variada para entreter cortes e cidadãos ávidos por novidades. Era, afinal, o barroco, época amante de exageros e contrastes… e de variedade!

A suíte barroca se estabeleceu como uma coleção de danças de diversas origens. Mais ou menos todos os ritmos que a Europa conhecia na época: a espanhola sarabanda, a inglesa giga, a italiana forlana e, como o gênero era essencialmente francês, as francesas gavota, bourrée e passepied (fora as mais universais courrant e minueto). É uma espécie de feira mundial ou Almanaque Abril em forma de música…!

Duas partes se diferenciam nessa ONU de danças: um momento mais lírico e cantável (e por isso chamado de “ária”) e, principalmente, a abertura. Composta invariavelmente em estilo francês – primeira parte solene e lenta, com marcante ritmo pontuado, segunda metade rápida e fugada – é tão característica e importante que o gênero da suíte é muitas vezes conhecido como “abertura”, simplesmente.

Bach não era um cara muito dançante, mas compôs quatro suítes (ou aberturas) orquestrais. Provavelmente serviam como agrado eventual aos patrões de Leipzig, já que Bach sempre foi um empregado meio rebelde e cheio de reivindicações. O fato é que, compostas em diferentes épocas, quase certamente baseadas em música escrita anteriormente, as suítes ficaram muito populares.

Principalmente a Terceira, de orquestração mais brilhante, com trompetes e tímpanos, e dona de uma tocante ária, que com a abertura forma os dois centros de gravidade da obra. (A ária, coitada, recebeu inúmeros arranjos, em geral melífluos e xaroposos, que fazem pouco jus a Bach.) Seguem a essas partes duas gavotas, uma bourrée e uma giga para finalizar espetacularmente.

Além da gravação acima, coloquei abaixo um vídeo bem extremo da Suíte no. 3 de Bach para choc, digo, mostrar para vocês: Reinhard Goebel e seus tempos ultrarrápidos. Goebel é veloz até na ária, que fica bem diferente das versões bregófilas que muitas vezes se ouve por aí. É diferente e legal. E prova que tocar com instrumentos de época, a essa velocidade, é muito difícil – ô povo desafinado!

Mahler

Sinfonia no. 2, “Ressurreição”

Escrever sobre, digamos, sinfonias de Haydn é relativamente fácil. É mais ou menos assim: depois de um primeiro movimento FODA, vêm um movimento lento LINDO, um minueto DEMAIS e um finale DO GRANDE CARVALHO. Pronto, acabou, viva Haydn!

Mas sinfonias de Mahler são o inferno do comentarista. Ele se vê obrigado a pesquisar literatura, ler poesia, estudar filosofia, antropologia e religião, entender a biografia do compositor, sacar as idas e vindas na gestação da obra, assobiar, chupar cana e ainda correr o risco de ter escrito um monte de besteiras!

Correrei o risco. Porque a obra de hoje merece: trata-se da Sinfonia no. 2 de Mahler, dita “Ressurreição”, de 1894.

Mahler é um compositor muito especial. É um dos poucos que conseguiu criar um mundo próprio, com mitologia própria, para as suas obras habitarem. Ele não era um compositor, mas um demiurgo! Cada sinfonia, um país de um imenso continente chamado Mahler. É, é rico assim!

Creio que as duas sinfonias que exemplificam melhor isso são a Segunda e a Terceira. Mas, se a Sinfonia no. 3 permanece até hoje um gosto adquirido, a “Ressurreição” conquistou o grande público desde sua estreia e é, provavelmente, a obra de Mahler mais popular.

Fácil de perceber, pelo nome, que a temática da sinfonia é morte, redenção e renascimento. Para expressar isso, Mahler criou uma forma imensa em 5 movimentos, com dois blocos distintos. O primeiro bloco tem apenas um andamento, e é uma enorme e intensa marcha fúnebre. De arrepiar os cabelos! Grande pausa. O segundo bloco começa com um andamento moderado, em ritmo de valsa rústica – um quebra-clima, um deixa-disso, um pega-leve depois de um começo tão forte.

Legal mesmo é o movimento central, um scherzo de tons fantásticos. É a minha parte predileta da sinfonia. Mahler recorre aqui à autocitação: a base desse trecho é uma canção do ciclo “A trompa magica do jovem”, chamada “A prédica de Santo Antônio de Pádua aos peixes”, de 1893. A historinha é a seguinte: o santo resolve pregar aos bichos, que não estão nem aí. Cagam e nadam. o santo chega à igreja e ninguém está ali. Resolve então pregar aos peixes, que ouvem maravilhados. Mas em seguida voltam a fazer o que sempre fizeram – tipo, como os seres humanos ;-) (Valeu, Leonardo T. Oliveira!)

Interpretação possível (essa é a minha, traga a sua!): de que adiantam as idéias e os palavrórios humanos para a natureza (das coisas, das pessoas, de tudo)? Ela segue seu luxo, de vida e morte, de criação e destruição, de evolução, de maneira imparável e inclemente. E a música é INCRÍVEL. Você ri, você chora, você urra, você faz tudo, menos ficar indiferente.

Pausa. E uma voz de contralto começa algo bem distinto. É uma outra canção da “Trompa mágica”, desta vez a sublime “Luz primordial”, que expressa o desejo pela reparação eterna, extramaterial, pelos sofrimentos da vida terrestre (os peixes, os peixes!). Sem interrupção, começa o finale. Primeiro uma longa introdução orquestral, que recapitula alguns temas anteriores e cria todo o cenário para o impressionante final coral (com soprano solo), baseado no poema “A ressurreição”, de Friedrich Klopstock.

Não precisa nem falar: é um final grandioso, redentor, emocionante. Mahler aqui fez mais que uma sinfonia: sintetizou toda uma angústia existencial e uma filosofia ao redor dela. Em música. Não à toa que Mahler é o autor moderno que tem maior “séquito” hoje. Creio que até mais que Wagner. A mensagem wagneriana ficou meio desbotada com o tempo; a mahleriana segue atual e fascinante.

É DO GRANDE CARVALHO e merece um, dois, três, quatro SELOS DE EXCELÊNCIA. Ouça! E depois comente ;-)

Bartók

Concerto para orquestra

Olha a reciclagem de texto aí gente! Eu já disse que homem é homem, menino é menino, sinfonia é sinfonia, concerto é concerto, concerto grosso é concerto grosso, sinfonia concertante é sinfonia concertante… e concerto para orquestra, que raios é isso?

Siga a lógica: se concerto é para solista e concerto grosso é para um grupo principal de instrumentistas, o concerto é para orquestra quando esse grupo principal é a orquestra toda. Entendeu? Há algo de “comunismo” nesse conceito – todos os intrumentos são importantes, todos têm frases virtuosísticas e claramente destacadas, todos são de alguma maneira solistas. (Na sinfonia não há isso: a orquestra sempre soa homogênea, “sinfônica”.)

Esse lance todo surgiu no começo do século 20, com os neoclássicos dos anos 1920. Parece que o primeiro a cunhar o termo foi Paul Hindemith. Desde Hindemith dezenas de concertos para orquestra apareceram no repertório. Desses, alguns se estabeleceram: Kodály, Lutoslawski, Carter e, principalmente, o de Béla Bartók, de 1943.

Bartók foi um dos cabras mais machos da história da música. Passou até fome, mas nunca se curvou a nenhum ditador, nunca puxou o saco de ninguém e manteve-se artística e politicamente íntegro até o fim. Sofreu um bocado. Se pensarmos que sua Hungria foi um barril de pólvora constante desde sempre, com a chegada constante de austríacos, fascistas, nazistas, soviéticos, incas venusianos (não, esses não!)…

Quando um regime nazifascista se estabeleceu na Hungria durante a Segunda Guerra Mundial, Bartók, totalmente discordante dele, imigrou para os Estados Unidos. Lá, passou perrengue. Doente e paupérrimo, foi sobrevivendo graças à ajuda de amigos. Um deles foi fundamental: Serge Koussevitzky, regente russo que dirigiu a Sinfônica de Boston por 25 anos.

Koussevitzky foi um dos mais importantes mecenas da música do século 20, encomendando e estreando dezenas de obras. Ele rapidamente estendeu a mão para o necessitado Bartók e encomendou-lhe uma obra para orquestra, “do jeito que você quiser”. Bartók escreveu o Concerto para orquestra, que se tornaria das peças mais populares do século e certamente a sua mais famosa.

Em termos de estrutura, o Concerto para orquestra tem o formato concêntrico, simétrico, clássico de Bartók: cinco movimentos, allegro-scherzo-andante-scherzo-allegro. Como já comentamos, Bartók era fã de geometria e proporções matemáticas. A forma em cinco partes é provavelmente a mais equilibrada de todas – um fit perfeito!

As marcas do estilo de Bartók não se restringem a isso: o movimento central é uma elegia em tudo devedora da típica “música noturna” bartokiana; os movimentos intermediários destacam características de execução (os pares de solistas bem caracterizados no segundo movimento, e a valsa caricata “invadida” no quarto movimento); e o finale que une a música popular húngara a um contraponto mais cerrado.

O que mais chama a atenção, no entanto, é a transparência da orquestração: o título da obra não é à toa. Cada seção da orquestra é destacada claramente, cada instrumentista tem o seu momento de brilhar e de estabelecer diálogos. Em pouquíssimos momentos a orquestra soa “cheia”. A textura é límpida a todo momento. É quase uma sinfonia, é meio um concerto, é totalmente fascinante.

Chega de falar. O momento agora é de ouvir. Toca Bartók!

Aliás, pega aí um vídeo. Ver o Concerto para orquestra é experiência fundamental!

Dukas

“O aprendiz de feiticeiro”

Segunda-feira é dia de série. “Mágico, fantástico, lendário” segue a todo vapor. Na semana passada falamos de “O caçador maldito” de Franck, compositor de importância capital para a música francesa. Foi com Saint-Saëns e Franck que começaram a ruir as velhas implicâncias com música sinfônica nessa França obcecada por ópera.

Franck, muito mais que Saint-Saëns, conseguiu reunir em torno de si vários compositores mais jovens que, cada um ao seu jeito, passaram a emular o mestre. Cromatismo wagneriano, forma cíclica lisztiana, extremo cuidado arquitetônico, todos os preceitos franckianos foram absorvidos por seus pupilos – entre eles Chausson, Duparc, o próprio d’Indy, Vierne…

O jovem Paul Dukas, colega de Debussy no Conservatório, não foi aluno de Franck, mas não pôde escapar à sua influência. Compôs duas obras que muito devem ao mestre: sua Sinfonia em dó maior, de 1896, e o celebérrimo poema sinfônico “O aprendiz de feiticeiro”, de 1897. Sabe o plot aviso-desafio-punição de “O caçador maldito”? Está todo ali :)

A história, baseada em uma lenda alemã transformada em poema por Goethe, é a de um pequeno camundong… ops, não! “O aprendiz de feiticeiro” conta a historinha de um jovem mago – não, não é o Harry Potter – que, para cabular o trabalho pesado que seu mestre havia lhe passado, decide enfeitiçar uma vassoura e torná-la sua escrava.

O problema é que ele sabia FAZER o feitiço, mas não DESFAZÊ-LO. A vassoura entra em freak mode, começa a destruir a oficina do grande feiticeiro, e o aprendiz, sem saber o que fazer, decide quebrá-la com um machado. Obviamente não dá certo: os pedaços da vassoura se transformam em novas vassouras, o caos impera e só com o retorno do mestre as coisas voltam ao normal.

TODO MUNDO conhece plot e música graças ao filme de Walt Disney, “Fantasia”, que botou Mickey Mouse como o aprendiz. A animação é incrível, de uma qualidade absolutamente inacreditável para 1940, e popularizou a obra de Dukas. O que pouca gente sacou é que Disney pediu para o regente Leopold Stokowski cortar a peça original em mais ou menos um terço de sua extensão, para ficar melhor no filme.

A música é maravilhosa. Começa com um “era uma vez” típico, que descreve o ateliê do feiticeiro, o aprendiz e o aviso do patrão de “não fode com tudo enquanto eu estiver fora”. Em seguida, surge o fodástico tema da vassoura-autômato, aquela marchinha maldita, hilária e aterrorizante ao mesmo tempo, e as muitas tentativas do aprendiz de desfazer a magia (ouça o tema do início retornando, mas nunca plenamente repetido). A cena da machadada é sensacional: o motivo da vassoura é literalmente quebrado em muitos pedaços que aos poucos se reúnem novamente. No final, o tema do mestre retorna e só restam lamúrios para o pobre aprendiz.

É! Está tudo na música! Dukas era mesmo DUKAS – tumdumtssss! (Irresistível. Foi mal.)

(E sempre é interessante ver a versão Mickey Mouse que, por mais mutilada que seja, ainda permanece soberba.)

BONUS TRACK: como o YouTube é mesmo sensacional, abaixo está uma versão da obra para OITO pianos! Putz!

Sibelius

Sinfonia no. 3

A gente muda, a arte muda, o mundo muda. O compositor finlandês Jean Sibelius também mudou. Começou sua carreira como um músico romântico nacionalista. Pense em obras como “Finlândia”, um poema sinfônico que é ao mesmo tempo uma declaração de amor e de guerra, ou a Sinfonia “Kullervo”, um monumento de dimensões lisztianas erigido em honra ao épico nacional, o Kalevala.

Suas duas primeiras sinfonias são nesse mesmo tom. A Primeira, de 1898, é um sombrio e agitado drama tchaikovskiano. A Segunda, de 1902, é uma construção quase bruckneriana de tom afável porém grandioso. Em 1904 compôs um concerto para violino ultrarromântico e virtuosístico, que se inseriu no cânone – feito notável para uma partitura do século 20. Sibelius estava se consagrando com um pós-romântico da estirpe de um Strauss ou Mahler.

E… freada brusca e mudança de direção! Em 1907 Sibelius surgiu com sua Sinfonia no. 3, que é TOTALMENTE DIFERENTE do que ele havia mostrado até então. Ao invés de um agitado dramatismo, um dinamismo clássico e bem delineado. Ao invés da forma expandida, lisztiana, uma construção condensada de rigor lógico. Sibelius descobriu que a sua modernidade, a sua voz própria, estava do outro lado da estrada. Não teve medo de mudar.

A Terceira Sinfonia permanece como obra símbolo dessa transição. Ela, ao contrário das anteriores, é em três movimentos bastante compactos. Os temas são curtos e bem marcados. A sinfonia começa de maneira bem transparente, num estilo “direto-ao-assunto” até inusitado para o autor. O desenvolvimento é maravilhoso! E, surpresa, o movimento termina com um coral absolutamente inesperado. FODA.

O segundo movimento fica em nível ainda mais alto. É um noturno meio lento meio moderado, meio sombrio meio leve, meio triste meio alegre: é a consagração das ambiguidades. Que música maravilhosa! O papel de scherzo que a sinfonia formalmente não tem é, de alguma maneira, preenchido por esse clima incerto – e mais ainda pelo início do finale.

Taí a grande sacada de Sibelius no finale da Terceira: pela primeira vez em sua obra, um movimento de sinfonia é um amálgama de dois tipos diferentes de andamento. Ele se inicia com uma espécie de scherzo em construção, fragmentário, muito original, que só depois de bastante engenharia se transforma em um movimento mais decidido, com um tema em forma de hino que pouco a pouco toma conta do ambiente – até terminar de repente. UAU UAU UAU!

Essa obra maravilhosa, tão cheia de incertezas, é bem complicada de se interpretar. Para ser sincero: conheço um monte de gravações, mas apenas uma me satisfaz completamente, a de Lorin Maazel em Viena (não a de Pittsburgh, bizarríssima!).