Lutoslawski

“Livro para orquestra”

Uma das minhas maiores motivações para manter esta Ilha é ter o prazer de apresentar música diferente. Vocês já repararam que esta é a série “oculta” das nossas sextas, né? :)

Por isso fico MEGA FELIZ de ter a chance de falar aqui do polonês Witold Lutoslawski, um dos caras mais fodas da segunda metade do século 20!

Até 1945 vivemos uma era de ouro musical, repleta de autores e estilos diferentes e cativantes – é mesmo meu período favorito. Mas depois da Segunda Guerra o cenário político fez os compositores optarem por uma busca radical de uma nova linguagem. As experiências do pessoal de Viena – Schoenberg, Webern et al – foram adotadas universalmente como padrão de música livre de qualquer viés ideológico ou de mercado.

Lutoslawski, que é de 1913, percorreu mais ou menos esse caminho, mas achou uma linguagem mais pessoal. Começou como um autor nacionalista, muito próximo a Bartók. Nos anos 1950 virou para o experimentalismo. A diferença é que ele descobriu, nas Bienais de Música de Veneza, o recurso da aleatoriedade, e começou a usar conscientemente o aleatório como elemento formativo de sua música.

Música aleatória é um assunto meio polêmico porque o nome nos leva a imaginar as experiências de Nancarrow recortando rolos de piano mecânico, ou de Cage compondo através do I-Ching. Não é isso. Lutoslawski enveredou pela “aleatoriedade controlada”, em que o compositor fornece ao intérprete um ponto de partida definido para a improvisação (algumas notas, um padrão rítmico, um acorde). A música resultante é, sim, nova a cada execução, mas sempre reconhecível e coerente.

Provavelmente o que fascinava Lutoslawski era a capacidade que longos trechos semi-improvisados têm de de gerar de texturas e harmonias novas. Graças a esse recurso ele conseguiu fugir da secura saariana do serialismo integral, tão em voga em sua época. Acrescente a essa receita uma personalidade artística um tanto romântica (Lutoslawski acreditava na “grande narração”, em detrimento do lirismo pontilhista weberniano) e chegamos a uma produção que é ao mesmo tempo novíssima, surpreendente e acessível.

Talvez minha peça favorita de Lutoslawski seja este “Livro para orquestra”, composto em 1968. Por que a obra tem esse nome? Lutoslawski imaginava escrever um conjunto de peças soltas, no espírito de uma coletânea barroca – por isso o termo “livro”. Mas seu gosto pela narrativa o levou a montar uma obra em um fôlego contínuo, em que quatro “capítulos” se encadeiam sem interrupção.

PARA PARA PARA! Sem interrupção, vírgula! Entre as quatro grandes partes, Lutoslawski colocou pequenos trechos à guisa de interlúdios. E o mais legal, optou por fazer as seções de ligação aleatórias, ou “controladamente” aleatórias. Fica mais ou menos assim: trechos “narrativos” alternam-se com seções de forma muito livre.

O efeito é incrível e, ao contrário do que parece, reforça o arco geral da obra, que flui suavemente do início ao fim. A música de Lutoslawski é cativante, repleta de texturas e efeitos instrumentais modernos (glissandos, fanfarras quebradas nos metais, pancadas na percussão, cordas dissonantes) aliados a um sentido infalível de tema e melodia (sim!).

Gente, é o seguinte: para tudo aí, pega o fone de ouvido, fecha o olho e embarca no “Livro para orquestra”. É diferente de tudo o que você imagina. Vai, confia em mim! :)

Handel

Concerto grosso op. 6, no. 11

Handel é um dos meus compositores prediletos, mas curiosamente falei muito pouco dele nesta Ilha. Sei lá, acho que ele é bem melhor de ouvir do que de comentar :)

Um aspecto muito curioso da personalidade handeliana era a mistura de faro apurado para o negócio, para o show biz, com musicalidade muito acima do normal. Quando se estabeleceu na Inglaterra, seu foco principal era o teatro de ópera. O modelo operístico italiano estava na moda e Handel conseguiu fazer fama e fortuna compondo e montando grandes óperas históricas em Londres.

Mas um dia a moda passou e Handel viu seu negócio sofrer. A lenda diz que foi com uma inspiração repentina que projetou “O messias”, obra-prima que praticamente inventou um gênero na Inglaterra: o oratório bíblico. E o sucesso lhe sorriria novamente.

Como intervalo nos oratórios, Handel estabeleceu o hábito de apresentar concertos. Muitas vezes eram concertos para órgão, na qual ele mesmo era solista – dois conjuntos absolutamente maravilhosos chegaram a ser publicados -, em outras ocasiões eram concertos grossos para cordas e contínuo.

Desse hábito nasceu aquele que é provavelmente o maior conjunto de concertos grossos da história, “Brandenburgos” à parte: os doze Concertos grossos op. 6, publicados em 1739. Alguns eram obras completamente novas, outros eram reciclagens de peças anteriores (Handel sempre foi um exímio reciclador de sua própria música). Aliás, o meu Opus 6 favorito, aqui destacado, é ele mesmo reciclado de um concerto para órgão (o de número 14, que não foi publicado nas duas coletâneas dos op. 4 e 7).

Diferentemente dos concertos de Vivaldi e Bach, geralmente formatados no estilo italiano de três movimentos, os concertos handelianos são quase suítes no molde francês, com várias partes. Fácil de reparar isso neste Op. 6 no. 11, com seus dois primeiros movimentos que formam, em conjunto, uma perfeita abertura francesa (lento e solene, depois fugado).

Só que a esse início francesado segue um segundo díptico, agora totalmente à italiana – um movimento lento muito típico e um finale cantante em forma tripartida. Poderia ter saído da pena de um Vivaldi!

Saca só o mix: um concerto meio francês meio italiano, composto por um alemão para um oratório bíblico montado para ingleses… Totalmente típico de Handel, o mais cosmopolita e universal dos compositores barrocos – e uma delícia do começo ao fim!

Smetana

“Minha pátria”

Franz Liszt criou o poema sinfônico, mas tenho cá pra mim que a maior de todas as obras neste molde não é dele: é este incrível ciclo “Minha pátria”, composto entre 1874 e 1879 pelo tcheco Bedrich Smetana. É tão maravilhoso que não hesito – “Minha pátria” recebe agora o SELO DE EXCELÊNCIA DO GRANDE CARVALHO, com todos os méritos, com todas as justiças!

A biografia de Smetana, que já comentei antes, é das mais agitadas do século 19. Seu final de vida foi trágico. Ficou surdo e doente, e morreu num manicômio. A composição de “Minha pátria” acontece mais ou menos ao mesmo tempo da descoberta da perda da audição – na verdade, o compositor nunca pôde ouvir sua maior criação.

Smetana passou boa parte da vida tentando estabelecer uma arte tcheca, principalmente através da ópera. “Minha pátria” é a tentativa de Smetana de representar – ou mesmo “fundar”, se me permite usar esse termo – musicalmente sua Boêmia natal, tanto do ponto de vista histórico-cultural quanto do natural.

O ciclo é composto de seis poemas sinfônicos. Smetana não imaginava que fossem executados como uma grande suíte; mas, ao mesmo tempo, criou ligações temáticas entre as partes que tornaram irresistível a prática da audição integral. Acho que faz muito mais sentido assim – a obra se fecha melhor e soa exatamente como deveria ser, um grande e emocionante épico nacional.

“Minha pátria” começa, aliás, com o tema unificador do ciclo – um motivo de quatro notas na harpa. Decore :) Toda a primeira parte simboliza a construção do castelo Vysehrad, lar dos primeiros reis tchecos e berço do país. O tema representa tanto o castelo (que aliás dá nome ao primeiro poema sinfônico) quanto a própria nação tcheca; a harpa evoca imediatamente a figura de um bardo começando a contar uma história.

A segunda parte é a mais famosa. Trata-se de “O Moldava” e seu tema é o rio que banha Praga. O rio, na verdade, é uma desculpa para Smetana nos levar a um passeio panorâmico pela Boêmia. Começamos na nascente do Moldava (os pedacinhos do tema surgindo aqui e acolá e se fundindo para formar a grande e célebre melodia), passamos pelos bosques (caçada; festa de camponeses; fadas e criaturas da noite), por uma queda d’água (o desenvolvimento dramático) e finalmente chegamos a Praga (o tema do castelo! olha ele aí!).

Do turismo à mitologia – no terceiro poema sinfônico, “Sárka”, o assunto é a lenda das amazonas tchecas, que odiavam os homens e declararam guerra a eles. Sárka, a rainha guerreira, finge-se de vítima, atrai um nobre e infliltra-se em um acampamento de soldados. Espera caírem no sono, chama suas colegas amazonas e… BANHO DE SANGUE. Não sobra nenhum cara pra contar a história. Caramba, porque lendas tchecas precisam ser assim tão violentas?

Na quarta parte Smetana se embrenha na natureza, em grande estilo. “Dos bosques e das florestas da Boêmia” é uma descrição apaixonada do interior tcheco. Vai do esplendor da floresta boêmia no auge do verão – a música é incrivelmente excitante – e chega ao folclore, com uma série de danças que não se afastam muito do espírito de “A noiva vendida“. (É uma delícia!)

Os dois últimos poemas sinfônicos foram planejados como um díptico e tratam dos hussitas, os reformadores religiosos do século 15 que, em sua luta contra a igreja, representaram todo o anseio tcheco por emancipação nacional. A dissidência religiosa acabou gerando uma guerra de verdade, com exércitos e mortos.

“Tábor”, a primeira parte do díptico, representa a resistência dos hussitas, reunidos na cidade de Tábor. A peça é toda estruturada em torno de um canto de guerra (o “hino hussita”, muito célebre, também citado por outros compositores). A crueza de sua linguagem propositalmente representa a força dos que lutavam por liberdade de culto e independência política. É talvez o trecho mais sisudo de todo o ciclo, e tem uma modernidade realmente surpreendente.

“Blaník” vem em seguida para terminar “Minha pátria” de maneira monumental. A parte se inicia com o “hino hussita”, exatamente como no fim de “Tábor” – a sensação é de exata continuidade -, mas faz o caminho da batalha à reafirmação da identidade nacional, simbolizada no retorno do tema do castelo de Vysehrad, habilmente misturado ao próprio “hino hussita”.

Musicalmente, “Minha pátria” é um milagre de originalidade e força expressiva. Smetana adota de bom grado a herança de Liszt, mas vai além, fundindo a engenharia lisztiana às cores nacionais (nem poderia ser diferente) e a um vigor muito, muito pessoal. Smetana tinha uma voz própria – e uma voz que gritava bem forte!

São 80 minutos de música da mais alta qualidade, emocionante e inspiradora. Um tesouro para os tchecos e para todos os que amam arte verdadeiramente DO GRANDE CARVALHO.

Villa-Lobos

“Bachianas brasileiras” no. 4

Já falamos aqui sobre a célebre série das “Bachianas brasileiras” de Villa-Lobos. Duas das “Bachianas” que comentamos são orquestrais: as de número 2 e 7. Hoje o papo é sobre a “Bachianas” que Villa compôs para piano solo, a de número 4. (Depois o próprio compositor orquestrou a peça… mas deixa isso pra lá! ;-))

Tenho cá comigo que esta Quarta “Bachianas” é tanto a mais próxima de Bach como a mais próxima do Brasil de toda a série. Explico!

Bach: o primeiro movimento é um maravilhoso prelúdio todo construído sobre o tema da “Oferenda musical”! É genial: Villa pega o tema bachiano (que, diz a lenda, lhe foi ditado pelo rei da Prússia) e o adapta, o transformando num lamento tristonho que é brasileiro até a raiz dos cabelos…

Brasil: … e por isso acabou sendo transformado novamente para gerar o “Samba em prelúdio“, de Baden Powell (o fundador do escotismo. não, mentira!), com letra de Vinícius de Moraes.

Bach: o segundo movimento é um coral, à maneira de um hino lento, exatamente como as harmonizações bachianas presentes no “Pequeno livro para órgão“, mas…

Brasil: … durante toda a peça uma araponga, pássaro comum no sertão, não pára de piar. Sim! Presta só atenção numa nota aguda, isolada, repetida constantemente. É o bicho, piando.

Bach: o terceiro movimento é uma ária, uma melodia acompanhada à maneira de uma canção, com o mesmo espírito das árias das suítes e partitas do mestre de Leipzig. Só que…

Brasil: … o tema desta vez veio de uma cantiga folclórica nordestina, “Ó, mana, deixa eu ir” (e daí quem seguiu Villa-Lobos no empréstimo foi Milton Nascimento).

Bach: a obra termina com uma dança. E que suíte barroca que não tem dança, um monte delas?

Brasil: a diferença é que esta “Bachianas brasileiras” termina com uma dança não da Alemanha ou da Escócia ou da França, mas do interior de São Paulo. É um tema folclórico que o próprio Villa já havia recolhido e registrado, chamado “Vamos, Maruca“.

Na versão para piano, as convergências entre as linguagens barroca e brasileira, entre Bach e Villa-Lobos, ficam mais evidentes. Sim, a orquestração é linda, engenhosa (o prelúdio em cordas divididas, a araponga no xilofone) e merecidamente famosa. Mas gosto particularmente da Quarta “Bachianas” ao piano – com toda a sua pureza original.

Field

Concerto para piano no. 2

Hoje começa mais uma nova série aqui na Ilha! Serão seis episódios temáticos, sempre às segundas-feiras, e o assunto não poderia ser mais cativante: o concerto para piano romântico!

Mas a abordagem desta vez será um pouquinho diferente. Ao invés de seguirmos na usual ordem cronológica, a ordem será feita em duplas, agrupando obras de parentesco estilístico evidente. Concertos gêmeos? Às vezes sim, às vezes nem tanto, mas sem dúvida ligados. Com esses pares tentaremos mostrar como o estilo de concerto para piano evoluiu no século 19.

Quando penso em concerto para piano inevitavelmente penso em Mozart e Beethoven. São realmente o ponto de partida desta saga. Mas ao olharmos a história do concerto para piano verificamos um salto estilístico entre esses grandes pioneiros e os autores que lhe sucederam. Acompanhe: o modelo mozartiano é clássico e equilibrado, com as vozes de solista e orquestra se entrelaçando e se completando. Já o estilo concertante de Beethoven é basicamente sinfônico, com ênfase no desenvolvimento temático e no diálogo entre opostos – piano e orquestra.

A modalidade romântica de concerto não é nem uma coisa nem outra. Ela privilegia o solista, não tem o aspecto camerístico mozartiano nem a narrativa sinfônica que imaginamos do estilo beethoveniano. O típico concerto oitocentista é uma peça criada por um compositor-virtuose para servir de oportunidade de demonstração de seu domínio do instrumento. Tem que ter música variada, passagens difíceis e colocar sempre o solista em evidência – esta é a fórmula.

Em busca do “elo perdido” do concerto romântico encontrei o encantador Concerto para piano no. 2 do irlandês John Field. Quem? É, este camarada, contemporâneo próximo de Paganini, sumiu do repertório, mas ele foi um bocado influente em sua época. Concorrido virtuose do piano, após peregrinar pela Europa se estabeleceu na Rússia, onde praticamente criou sozinho a escola russa de piano. Não somente: inventou um gênero que Chopin tornaria célebre, o “noturno”, e compôs sete concertos que foram avidamente consumidos por seus pares.

Este segundo concerto, que era amado por Schumann, é uma curiosa mescla do estilo mozartiano (principalmente no desenho dos temas) com características pessoais que se transformariam em padrão na primeira metade do século 19: um primeiro movimento longuíssimo, cheio de episódios meio desconectados, e domínio completo do piano sobre a orquestra (muito evidente no movimento central, um belo e breve noturno).

Essa insistência do piano em ficar “pianando” incessantemente é um dos traços clássicos do concerto oitocentista. A orquestra, onde está? Criando muito carinhosamente um cenário bonito para o piano derramar suas milhões de notas :)

Apesar de ser uma obra menor, acho o Concerto no. 2 de Field incrivelmente intrigante por ser essa mescla do antigo com o novo. Acho que faz sim um bonito papel de “elo perdido” entre as obras-primas concertantes de Mozart e Beethoven e o que os grandes românticos vão criar em seguida.

Aliás, qual é o concerto que faz parzinho com este Field? Assunto do próximo episódio! :) Alguém arrisca? Tá fácil! Ouve aí e dê seus palpites! ;-)

Roussel

“Baco e Ariadne”

Todo mundo tem um ano bom. O ano bom de Albert Roussel foi 1930. Nele ele compôs suas duas grandes obras-primas: a Sinfonia no. 3 e este incrível balé “Baco e Ariadne”. Salve 1930!

Antes, Roussel não havia encontrado uma linguagem própria. Estava indefinido entre o impressionismo de seus contemporâneos próximos Debussy e Ravel, e o formalismo germânico que lhe chegava via Franck e a Schola Cantorum. Foi com essas duas peças que Roussel firmou um estilo mais pessoal, vigorosamente neoclássico. E ele é realmente impressionante.

(Preciso confessar que não consigo engolir muito bem o Roussel anterior… nem o posterior, que estica o neoclassicismo de 1930 a um extremo de secura e sisudez.)

Acho mesmo que “Baco e Ariadne” é o apogeu da obra de Roussel e uma das jóias esquecidas da música do século 20. Como o nome adianta, o balé se passa na Grécia mitológica. O casting de sua estreia impressiona: coreografia de Serge Lifar e cenários de De Chirico, uau! Mas foi um fracasso. A obra acabou vingando na sala de concertos, na forma de duas suítes que nada mais são que as duas cenas do balé, ipsis litteris.

O plot lida com os eventos posteriores à vitória de Teseu sobre o Minotauro (logo no início da peça). Ariadne, filha de Mino, rei de Creta, havia se apaixonado por Teseu e o ajudara a andar no famoso labirinto (graças ao novelo!). Na fuga de Creta, Teseu levou Ariadne a Naxos e, enquanto ela dormia, foi embora para o mar. Ela acorda, abandonada. Desesperada, quer se jogar dos rochedos, quando é salva pelo deus Dioniso. Não sem uma longa corte, repleta de idas e vindas, ele a beija e a transforma em sua esposa, a alçando à imortalidade.

A música criada por Roussel reflete o dinamismo e a atmosfera ensolarada da lenda grega. Ela começa já a todo vapor, com ritmos vigorosos, cheios de acentos irregulares, que agarram o ouvinte pelo pescoço – é, meu amigo, você vai ficar na ponta do sofá, com o coração acelerado, até a música cessar!

No meio de tanta ação, um tema absurdamente maravilhoso surge – é o tema da união entre Ariadne e Baco, que fica mais claro quando os dois se beijam e, bem no finalzinho, após a incrível “bacanal”, quando Ariadne enfim se torna deusa. É lindo demais. A respiração para, o olho fica marejado, de repente as coisas ao nosso redor se transformam…

A gente escuta “Petrushka“, a gente escuta “Dáfnis e Cloé”, mas não ouve “Baco e Ariadne”! Por quê? Repare este erro AGORA! Se a sua vida não mudar, pode vir falar comigo – aqui é satisfação garantida ou seu dinheiro de volta! :)

Dvorák

Quarteto de cordas no. 12, “Americano”

Antonín Dvorák sempre viveu modestamente na sua Boêmia natal. Na verdade, demorou para se livrar de preocupações materiais mais imediatas. Em 1874, quando tinha uns 33 anos, ganhou um prêmio do governo austríaco e chamou a atenção de Brahms, mas permaneceu relativamente obscuro. Em 1877 ganhou o prêmio novamente e aí sim veio o sucesso – Simrock, o mesmo editor de Brahms, acabou por lhe encomendar as “Danças eslavas” e uma carreira internacional começou.

O ápice desse reconhecimento veio em 1892, quando foi convidado para chefiar o Conservatório de Nova York. A oferta foi irrecusável! Os Estados Unidos eram uma jovem nação em busca de respeitabilidade, e importar grandes nomes da Europa era uma das estratégias – Tchaikovsky regeu o concerto inaugural do Carnegie Hall um ano antes, Mahler repetiria a jornada dvorakiana quinze anos depois.

Feliz da vida, Dvorák rumou à América. O começo foi incrível – compôs e estreou sua Nona Sinfonia no que provavelmente foi o maior triunfo de sua carreira -, mas logo teve seu salário diminuído e as pressões, ampliadas. Um de seus refúgios americanos era uma pequena comunidade rural tcheca no estado de Iowa, meio-oeste dos EUA, na qual passava os verões. Nela, matava um pouquinho da saudade de casa e, ao mesmo tempo, travava contato com a música local.

E voltou a compor! A primeira obra de Spillville foi este Quarteto de cordas no. 12, que muito cedo recebeu o apelido de “Americano”. Faz jus ao epíteto. Ele é repleto de melodias pentatônicas, que lembram imediatamente tanto a música folclórica branca americana quanto o spirituals negro. Dvorák inventa aqui uma fórmula que se provou eficaz: o perfume modal combinado com certa ênfase em ritmos sincopados são a base de muito do que imaginamos “Velho Oeste” em música.

(Sim! Essa linguagem “americana” não existia até aparecer Dvorák, um tcheco, para criá-la! Só depois é que foi usada à exaustão por compositores nativos como Chadwick e Parker. Parker, aliás, foi professor de Charles Ives. Ouça lá sua Sinfonia no. 1 e me diga se é ou não puro Dvorák!)

O Quarteto no. 12 é delicioso e permanece como um dos mais famosos do repertório. O segundo movimento tem um sabor nostálgico aparentado ao spirituals e é maravilhoso do início ao fim. E o terceiro, um scherzo, tem um convidado especial, um passarinho chamado sanhaçu-escarlate, cujo canto insistente atormentava Dvorák. Acabou inserido no quarteto – preste atenção numas figuras repetidas do violino :)

Dvorák voltou a Europa dois anos depois. Mas da estada americana ficaram várias obras-primas: a Nona Sinfonia, este Quarteto “Americano”, um quinteto de cordas, uma sonatina para violino, o supremo Concerto para violoncelo… e principalmente um estilo novo, que deixou de presente para os anfitriões. Esse cara era demais!

Debussy

“O mar”

Creio que o legado de Claude Debussy não seja suficientemente lembrado. O cara criou uma linguagem inteiramente nova, quase do zero, que influenciou de maneira decisiva a história da música do século 20. E é bem menos ouvido do que deveria.

Contemporâneos como Mahler e Strauss seguem bem mais populares. Todos foram muito relevantes, mas na minha opinião o “som” criado por Debussy foi absolutamente fundamental para a produção pós-Segunda Guerra.

A principal obra de Debussy é, certamente, “O mar”, suíte sinfônica de 1905. Não: “O mar” é uma das maiores obras-primas do século 20. Não: “O mar” é uma das maiores obras-primas da HISTÓRIA, uma peça totalmente merecedora do SELO DE EXCELÊNCIA DO GRANDE CARVALHO e, principalmente, de nossa audição. Então vamos lá! \o/

Falei suíte sinfônica e é esse o nome que Debussy escolheu para classificar sua obra. Mas poderia ter chamado de “Sinfonia” e estaria perfeito! “O mar” é dividido em três movimentos, cada um deles descrevendo um aspecto do oceano. Aliás, vale ressaltar: é uma descrição mesmo, quase pictórica. Nenhum “evento” acontece. Não há seres humanos, embarcações, deuses, fadas, ninfas, espíritos ou mesmo animais no mar debussista. Apenas água, ondas, rochas, o vento, a luz do sol…

O caveat acima pode ter passado a impressão de monotonia, mas não. Debussy opera aqui o milagre de construir uma música que se renova o tempo todo, com material que praticamente não se repete e que cativa o ouvinte a cada instante!

Voltemos ao pedigree sinfônico de “O mar”: seus três movimentos já revelam a ligação com a forma tradicional de sinfonia. A primeira parte, dita “Da madrugada ao meio-dia no mar” lembra um primeiro movimento com a costumeira introdução lenta; a segunda parte, “O movimento das ondas”, é em tudo um scherzo; o último trecho, “Diálogo do vento e do mar” serve como um finale dinâmico, que injeta algum drama a uma peça que, em geral, é muitíssimo mais contemplação que ação.

Há muita novidade em “O mar”. A orquestração é maravilhosa, “recheada” mas transparente, muito diferente da tradição germânica, por exemplo. O jeito como Debussy desenvolve seus temas, dá unidade à obra e cria grandes arcos narrativos é profundamente original. E, acima de tudo, o “som” geral é totalmente único – Debussy opera diversas revoluções, mas é mais revolucionário ainda na harmonia!

Gente, é DO GRANDE CARVALHO demais – então chega de papo e vamos ouvir. Clicaê!

Brahms

“Requiem alemão”

Para quem são oficiadas as missas de requiem? Se pegarmos o texto latino do Próprio (i.e., da parte da missa que é específica do rito dos mortos) fica muito óbvio que elas são feitas em intenção dos mortos, ou seja, para eles: “que descansem em paz”, “libertai as almas dos que têm fé”, “que a luz eterna os ilumine” etc.

Nosso amigo Johannes Brahms, lá em 1865, imaginou algo um pouquinho diferente: e se houvesse um requiem que fosse direcionado aos vivos, às pessoas que sofrem com a morte (de entes queridos também, mas principalmente com a própria ~perspectiva da morte~)?

Foi com essa ideia que ele compôs sua primeira grande obra-prima, um oratório que chamou de “Um requiem alemão”. Alemão principalmente porque, ao contrário do rito católico tradicional, não é cantado em latim, mas em alemão mesmo. Brahms escolheu sete textos da Bíblia (antigo e novo testamentos) que tratam da temática da morte sob a perspectiva dos vivos. Vale listar:

  • “Abençoados, os que sofrem” (Mateus)
  • “Toda a carne é como a relva” (1 Epístola de Pedro)
  • “Faze-me conhecer meu fim, Senhor” (Salmo 39)
  • “Como é agradável tua morada” (Salmo 84)
  • “Agora sois tristes” (João)
  • “Aqui não temos morada permanente” (Hebreus)
  • “Abençoados, os mortos” (Apocalipse)

Em geral, o que chama a atenção é a falta de um tom “proselitista” ou religioso. Não há menção direta a nenhuma crença específica. Os textos escolhidos por Brahms são propositadamente genéricos em suas menções a Deus ou à salvação. Há mais a preocupação geral em representar a angústia pelo mistério da vida e da morte (as partes 2, 3 e 6) e trazer certo alívio (as partes 1, 4, 5 e 7).

(A posição religiosa de Brahms pode ser a chave para essas escolhas. Tradicionalmente Brahms é classificado como ateu, ou no mínimo como um humanista livre-pensador, o que certamente era. Há cartas em que o compositor relata certa inquietude com alguns dos textos que escolheu, principalmente os trechos do Evangelho de João da parte 5.)

Musicalmente o “Requiem alemão” marca o início da fase madura de Brahms. Como já comentamos, suas obras anteriores são tipicamente superromânticas e transbordantes; aqui Brahms torna sua linguagem mais equilibrada e sua expressão mais comedida. Chamam a atenção a grande ênfase coral do “Requiem” (os dois solistas vocais só aparecem em três dos sete movimentos) e a maestria das fugas das partes 3 e 6 (uma forma tão esquecida pelo romantismo!).

A obra impressiona pela profundidade de seu pensamento, pela sensação de paz e consolo que realmente transmite (apesar das tempestades das partes 2 e 6) e pela perfeita estrutura. A originalidade da abordagem religiosa e a beleza da música fazem do “Requiem alemão” uma das partituras obrigatórias do século 19. Tem de ouvir!

Shostakovich

Sinfonia no. 5

Chegamos ao fim de nossa série “V“! E a Quinta de hoje resgata um compositor tão querido quanto polêmico: Dmitri Shostakovich.

Todas as sinfonias que mostramos até agora, com exceção da de Bruckner, têm claramente a luta como tema. A Quinta de Beethoven é uma longa batalha que só se resolve no fim. A de Mahler parece-se mais com uma batalha interior cuja paz só é alcançada no penúltimo movimento – o último é uma bizarra euforia. A de Nielsen é somente metade luta – o conflito é resolvido no meio da obra, sendo que o restante da sinfonia serve para dar um rumo definitivo à vida pós-guerra.

Já esta Quinta de Shostakovich já começa com a batalha encerrada. Toda a ação está aqui na busca de uma acomodação pós-conflito.

Como sempre em Shostakovich, buscamos entender melhor sua obra através de sua vida. A Quinta foi escrita em 1937, um ano particularmente complicado para o compositor. Em 1936 Shostakovich sofreu um duro golpe do regime soviético quando sua ópera “Lady Macbeth de Mtsensk” foi o pivô de um artigo demolidor no Pravda, o jornal oficial. A burocracia stalinista, através do tal artigo anônimo, mandava um recado ao compositor: a estética do regime era outra e ele ~~precisava se enquadrar~~.

Era uma proposta que Shostakovich não poderia recusar. Vale lembrar que o “Grande Terror” stalinista estava começando e vários artistas, na maioria amigos ou conhecidos de Shostakovich, foram presos e assassinados pelo regime. No meio da confusão, aterrorizado, o compositor mandou cancelar a publicação da Quarta Sinfonia, uma obra que continuava a linguagem de “Lady Macbeth de Mtsensk”. E #partiu compor a Quinta.

A nova sinfonia era a resposta oficial que Shostakovich precisava dar. Então, reflitamos: se esta Quinta teve seu conflito terminado antes da própria obra, significa que a sinfonia se inicia com… uma derrota! Sim, de todas as quintas que mostramos, esta é a única em que há derrota, acontecida a priori, antes da música começar. Pois é. Nesta sinfonia Shostakovich não luta, mas lambe suas feridas.

A obra inicia propriamente com um movimento lento com um sabor meio de passacaglia (na verdade, é um cânone), quase uma marcha. Esse gesto se tornaria muito típico do autor – várias sinfonias posteriores começariam com um longo e sombrio movimento lento. Há um clímax marcial e a parte termina meio interrogativa.

O scherzo a seguir é calcado totalmente no scherzo da Segunda de Mahler – a “Ressurreição“, lembram? É uma espécie de valsa irônica, ansiosa. Seu amargor é dissipado pelo movimento lento, uma longa e bela elegia, que os estudiosos afirmam ter diversas referências religiosas. Não é difícil pensar nesta parte como um lamento velado pelos mortos do regime.

Dores resolvidas, hora da resposta pública: o finale, de espírito marcial e exterior, que assume de bom grado a estética do realismo socialista que o artigo do Pravda lhe impôs. É de uma alegria e um triunfalismo que não faz sentido frente ao restante da sinfonia, que é francamente azedo. Ou… faz todo o sentido do mundo se entendermos a obra como um caminho que inicia na derrota, passa pelo luto e termina na genuflexão.

É uma sinfonia fascinante, seja por sua narrativa, seja pela própria qualidade musical. É uma mais-que-digna representante das diferentes lutas que definem a grife “Quinta Sinfonia”. Ouçam, comentem! E, segunda que vem, nova série!