Vivaldi

“As quatro estações”

A obra mais famosa de Vivaldi, da música barroca e uma das mais célebres de todos os tempos: “As quatro estações”, conjunto de quatro concertos para violino composto em 1723 e publicado dois anos depois dentro de um set maior, de doze concertos, chamado “O confronto entre a harmonia e a invenção”.

Esse conjuntão é o Opus 8 de um compositor que compunha muito e publicava muito pouco. Só que o que Vivaldi publicava se espalhava rapidamente pela Europa inteira. Músicos de todo o continente tinham paixão pelos concertos desse misterioso padre veneziano. Bach, lá em Leipzig, tinha partituras de várias peças de Vivaldi entre seus pertences. Chegou a arranjar alguns de seus concertos para outros instrumentos. E não só ele – “recompor” Vivaldi era prática corrente (bom, é até hoje).

A explicação é óbvia à primeira audição: as obras instrumentais de Vivaldi são tão simples e criativas que praticamente imploram por uma abordagem de reconstrução. Elas são um poderoso combustível para a imaginação. E o próprio nome do Opus 8 já entrega isso: um confronto entre harmonia (a “moderação” artística) e invenção (a “chama” da ousadia que cria o novo).

Os concertos d”As quatro estações” que se tornaram tão famosos são praticamente uma prova de conceito, uma espécie de happening barroco. Quatro sonetos sobre as estações do ano são a base de quatro concertos para violino, que, sem escapar da forma vivaldiana de concerto (três movimentos, rápido-lento-rápido), são verdadeiros desfiles de imagens e alusões simbólicas. É mega fácil ouvir cachorros latindo, pássaros cantando, o calorão que dá moleza, tremores de frio, uma tempestade de verão, a chuva que cai na janela…

Também é mega fácil transformar esse monte de imagens em um festival de clichês edulcurados para o deleite de preguiçosos. “Ah, o pintassilgo, que lindo” e melífluos violinos a botar-lhe uma moldura dourada. Os Vivaldis que foram criados pela posteridade – o Vivaldi de sabonete, o Vivaldi de lata kitsch de biscoito amanteigado, o Vivaldi escrito em cursivas douradas – não poderiam ser mais distantes do Vivaldi real. Em cada um desses concertos mais-do-que-batidos encontra-se uma mente que fervilhava, que queria muito mais soltar a imaginação (e chocar mesmo!) do que agradar.

As gravações abaixo, de Rinaldo Alessandrini e seu grupo Concerto Italiano, representam uma visão muito mais adequada d”As quatro estações”. Pelo menos para mim. São recheadíssimas de improvisos, pausas dramáticas, abruptas mudanças de direção. Chegam ao ponto do maneirismo? Ah, algumas vezes. Mas são, acima de tudo, vivas e radicais. E não consigo pensar Vivaldi de outro jeito.

As gravações de Alessandrini não estão disponíveis no Spotify. Abaixo, a excelente, porém mais tradicional, versão de Trevor Pinnock com Simon Standage.

Strauss

“As alegres travessuras de Till Eulenspiegel”

E chegamos ao final de nossa série “Mágico, fantástico, lendário”! Nos cinco episódios anteriores vimos diversas peças baseadas em antigas lendas ou contos de fada. Além da origem folclórica, essas obras tinham dois pontos em comum: subtextos sombrios e sobrenaturais; e o tom moralizante.

Para encerrar a série, vamos a algo um pouquinho diferente. A origem continua a mesma – histórias da carochinha – e o tom moralizante segue forte, mas o aspecto mágico dessa vez é substituído por um realismo cru e cômico. Trata-se do poema sinfônico “As alegres travessuras de Till Eulenspiegel”, composto por Richard Strauss em 1895.

O plot da obra é centrado na figura de Till Eulenspiegel, um personagem lendário medieval alemão, famoso por pregar peças de maneira compulsiva. Till não respeitava absolutamente ninguém – seu único drive vital era fazer troça e brincar com os outros. Claro que essa total falta de tato acabou mal. Vejamos.

O poema sinfônico começa com uma introdução lenta classicamente descrita como um “era uma vez” musical. Em seguida, dois temas ligados a Till, um comicamente heroico na trompa, outro escancaradamente farsesco no clarinete. Ambos os motivos serão repetidos ad nauseam – a obra é estruturada como um rondó (a cada seção nova, o retorno do tema principal). Descrito o protagonista, começam suas peripécias:

  • Ele entra montado a cavalo no mercado, destruindo as barracas e as mercadorias.
  • Ele se veste de padre e faz um sermão falso para o povo.
  • Ele flerta e persegue de maneira inconveniente as meninas da cidade.
  • Ele tira sarro dos sérios e solenes professores locais.

Obviamente isso não poderia ficar barato. A comunidade decide prender e enforcar Till Eulenspiegel. Está tudo na música: as pilhérias do protagonista, a perseguição a ele, sua prisão e rápido julgamento, e sua execução. Com direito a um último suspiro esganiçado no clarinete – requintes de crueldade. Todos, inclusive Strauss e os ouvintes, querem se vingar de Till.

O poema sinfônico se encaminha para o final com o “era uma vez” novamente, pacífico e tranquilo; a ordem foi restaurada após darem cabo de Till. Mas o finzinho é em tom de farsa, como se a peça fosse começar outra vez. Strauss parece estar deixando uma pergunta no ar: morto o zombeteiro, cessa a zombaria?

Na verdade, essa velha historinha alemã tem – além da lição contida na punição exemplar do protagonista – uma segunda moral: existe um Till Eulenspiegel escondido dentro de cada um de nós. Só que não conseguimos enxergá-lo direito. A própria figura do Till serve para percebermos o quão sacana e cruel pode ser o homem. Ou seja, nós mesmos.

Ah, sábio folclore…!

Widor

Sinfonia para órgão no. 5

Você já deve ter ouvido falar que o órgão é o rei dos instrumentos e que sua variedade de timbres é comparável à de uma orquestra sinfônica miniaturizada. Esse é um conceito relativamente recente. Foi somente na segunda metade do século 19 que conscientemente tentou-se obter um som orquestral do órgão. Se for possível dar um pai para essa ideia, ele é Aristide Cavaillé-Coll, construtor de instrumentos francês, que inventou mecanismos pneumáticos e formatos de tubos e pistões que deram colorido novo ao órgão e multiplicaram-lhe as possibilidades timbrísticas.

Cavaillé-Coll construiu o órgão da igreja de Santa Clotilde, em Paris, cujo organista era César Franck. Franck ficou maravilhado. Outra das primeiras igrejas que receberam os novos órgãos de Cavaillé-Coll foi a igreja de São Sulpício. O titular em São Sulpício era o jovem Charles-Marie Widor, que foi inspirado pelo seu novo instrumento a compor… sinfonias! Como assim?

Sim, sinfonias para órgão solo! As primeiras quatro surgiram de uma só vez, em 1872. Apesar das sonoridades cheias, predominantemente homofônicas, essas quatro primeiras peças não são muito sinfônicas na forma – os movimentos são bastante desconectados entre si. Foi a partir da Quinta Sinfonia, de 1879, que Widor aos poucos chega a um estilo mais consolidado de sinfonia para órgão solo. E é essa justamente sua obra mais popular.

Quem está procurando a grandiosidade e o esplendor típicos da música organística vai estranhar muito essa sinfonia. (Talvez a Sexta Sinfonia lhe apeteça mais.) A Quinta tem cinco movimentos, sendo os quatro primeiros de feição bem contemplativa. O primeiro é um tema-com-variações (com um episódio intermediário independente), que raramente torna-se mais agitado. O segundo é praticamente uma canção. O terceiro é o que acho mais interessante, um andantino semi-estático, com uma seção no meio muito original e comovente. O quarto é o movimento lento em si, muito bonito.

A obra conclui, de modo contrastante, do modo mais exterior e brilhante possível: uma famosíssima tocata, com seus arpejos repetidos sobre um baixo constante, combinação que dá uma sensação de movimento perpétuo. Esse trecho foi massacrado de todas as maneiras: como música de casamento, de cerimônias religiosas, do que você quiser. E eclipsou totalmente o restante da sinfonia, que, sim, é bem interessante e vale conhecer como um todo.

Ah, o estilo de Widor? Próximo ao de Saint-Saëns, de quem foi assistente por muitos anos, mas também influenciado por Liszt – quem nunca? – e pela música alemã para órgão. Se não é exatamente marcante, soa bastante único e até mesmo intrigante em muitos pontos.

É música bem escrita e representa um momento importante da música romântica, principalmente a francesa. O estilo francês de órgão sinfônico perdurou até meados dos anos 1950, com Duruflé, último representante dessa escola que começou em Franck e Widor e continuou com Dupré, Vierne e Tournemire, entre outros. Hoje é um gosto “de conhecedor”, mas se estar num nicho é ser hipster… que sejamos hipsters por alguns instantes! :)

Bach

Cantata BWV. 140

Johann Sebastian Bach viveu boa parte da carreira como uma espécie de torneira sempre aberta de cantatas (escreveu cerca de duzentas). OK, mas… o que é uma cantata?

Cantatas são composições vocais – duh! – em vários movimentos, para solistas, coro e orquestra, geralmente sobre temas religiosos. Dá para imaginar uma cantata como uma reflexão musical a respeito de um assunto. Cada parte da cantata é uma manifestação diferente desse pensamento: para solista, para duo, para coro etc.

Com o desenvolvimento do gênero, surgido no início do barroco, foram aparecendo algumas divisões típicas. O componente clássico da cantata é o coral, filho direto do coral luterano, uma espécie de hino. Existem também os coros – grandes formas para coro em forma livre, geralmente de cunho mais contrapontístico que os corais – e as árias da capo – espécie de canções nas quais a última parte é uma repetição ornamentada da primeira.

Entre esses três ingredientes básicos, são distribuidos recitativos, trechos em que um texto é semi-cantado, com acompanhamento mínimo. Os recitativos parecem chatos, mas são muito importantes: eles têm a função de amarrar a obra conceitualmente, fazer a ação “andar” e reforçar a mensagem que se quer passar para a audiência.

O formato da cantata é, portanto, diferente da missa e mais próximo da ópera de números, porém sem o aspecto teatral. Uma cantata ampliada (ou uma coleção de cantatas) é o que se chama de oratório. Há oratórios especiais: um oratório sobre os últimos dias de Cristo recebe o nome de “paixão”, por exemplo.

Bach compunha para seus patrões de Leipzig cantatas para as ocasiões mais diversas. Algumas foram para a Páscoa, outras para o Natal (que foram agrupadas no célebre “Oratório de Natal”) e um monte para as demais datas do recheado calendário litúrgico. Haja imaginação! E nos assombramos mais ainda quando vemos a qualidade da música que Bach criou – é tudo da mais alta qualidade.

Entre as cantatas bachianas mais conhecidas está a de número 140, para três solistas, coro e orquestra, composta em 1731 e que recebeu o nome de “Despertai, a voz nos chama”. O texto-base é o hino de mesmo nome criado por Phillipp Nicolai uns 130 anos antes. Bach estrutura sua cantata em sete partes, nas quais o texto de Nicolai é dividido. A primeira é um coro sobre o primeiro verso do hino; em seguida vêm um recitativo, uma ária para soprano e baixo, um coral sobre o verso “Sião ouve os vigilantes cantarem” (que ganhou tanscrição para órgão muito célebre), outro recitativo, outra ária para soprano e baixo e o coral final.

Note que as duas árias recebem tratamento bem diferente. Bach tinha o costume de fazer os solistas vocais serem acompanhados por solistas instrumentais – os tais “obbligatos”. A primeira ária tem uma linda parte para violino obbligato; a segunda ária tem o oboé como convidado de honra. Note também a expressividade dos recitativos – muito longe de serem secos e sem vida – e o maravilhoso tratamento que Bach dá ao coral luterano, incrivelmente enriquecido.

As cantatas de Bach reservam um monte de riquezas mesmo para quem está bastante distante do mundo luterano; são, antes de tudo, experiências musicais incríveis, puríssimas. Quem tiver ouvidos para ouvir… ;-)

Beethoven

“Fidelio”, aberturas

Beethoven não era um cara ligado a ópera. Um ambiente frívolo demais para o pudico e sisudo compositor, provavelmente. Mas ele compôs uma: “Fidelio”, com o plot deveras beethoveniano de uma injustiça reparada por ato heroico. A história, do francês Jean-Nicolas Bouilly, que trata de um prisioneiro político preso por um ditador e libertado por sua esposa (Leonora, que invadiu a prisão disfarçada como Fidelio, um homem), tinha tudo mesmo para agradar o exigente Beethoven. Nenhum outro enredo faria sentido para ele.

Mas mesmo assim Beethoven sofreu muitíssimo para criar sua ópera. Fez nada menos que três versões dela: uma para a estreia em 1805, outra para uma apresentação em 1806 e, finalmente, a definitiva de 1814, também para uma montagem. Achou muito? Beethoven penou mais ainda para encontrar a abertura ideal. Existem quatro versões dessa abertura. Confira comigo no replay:

  • Para a estreia de 1805, a primeira, hoje chamada de Abertura “Leonora” no. 2 (!).
  • Para a versão de 1806, outra, a maior de todas, a Abertura “Leonora” no. 3.
  • Para uma apresentação em 1808, ainda outra abertura, que ganhou o número de Abertura “Leonora” no. 1 (vai entender).
  • E, ufa ufa, em 1814 chegou à versão final, dita Abertura “Fidelio”.

O material temático é praticamente o mesmo em todas as aberturas – claro, extraído da ópera. O que muda é o conceito básico do que deve ser uma abertura de ópera. Um resumo bastante exato da ação? Um rápido “levantar de cortinas” para “esquentar” o público? Uma solução de compromisso entre essas duas visões? Não há resposta pronta e Beethoven teve dificuldades para satisfazer seu lado sinfônico sem esquecer as necessidades dramáticas da ópera.

A primeira abertura composta, a no. 2, é grande e muito detalhada, com uma longa introdução lenta que culmina no tema principal da ópera e que leva a um desenvolvimento realmente notável, com trompetes fora do palco e diversos artifícios dramáticos. A ideia aqui é reproduzir a ação:

Beethoven não ficou satisfeito. Achou que a abertura não estava retratando suficientemente bem a história e compôs uma peça ainda mais detalhada e dramática, de maravilhosa expressividade. Beethoven expande a abertura anterior, seguindo o modelo geral e acrescentando ideias novas aqui e ali. Sua “Leonora” no. 3 é praticamente um poema sinfônico avant la lettre. É maravilhoso! Você ouve e fica tão satisfeito que, sei lá, dá vontade de mandar cancelar a ópera que deveria vir-lhe em seguida:

O vídeo holandês abaixo é imperdível: note sua direção “experimental” bem bizarra. O que é a cena do solo de flauta? Hahaha!

Foi a inadequação entre a magnífica abertura, WHITE-HOT-mega-hiper-giga-excitante, e o começo bobinho da ópera (uma mocinha suspirando de amores por Fidelio, que na verdade é uma mulher), que fez Beethoven mudar de ideia. O objetivo agora tornou-se concisão e harmonia. Sua “Leonora” no. 1 reflete isso: é muito mais curta e leve, realmente um “acorda, plateia!”. Saca só:

Mas realmente não faz boa figura frente às demais tentativas. Então Beethoven, na revisão geral que empreendeu em 1814, começou de novo. Seguiu a linha de começar a ópera com algo mais simples. Ao contrário das três “Leonora”, a abertura “Fidelio” não tem introdução lenta – já vai com tudo com um motivo curto (e novo) em uníssono, no melhor estilo beethoveniano. A sensação geral é: agora sim temos uma abertura de ópera, não uma sinfonia de Liszt.

A saga das aberturas de “Fidelio” é um fascinante testemunho do árduo processo criativo daquele que é, provavelmente, o maior compositor de todos os tempos. Nada vem de graça – aqui é trabalho, meu filho!

E aí? Qual sua versão favorita? A minha é, sem dúvida, a “Leonora” no. 3, mas tenho minha quedinha pela concisa “Fidelio”. Vote nos comentários! :)

Schumann

“Carnaval”

Que clichê! Hoje é terça-feira gorda e não tive nenhuma dúvida: vou falar sobre “Carnaval”, a obra-prima pianística de Schumann. Nunca ninguém fez isso antes… só que não! Chavão carnavalesco à parte, o fato é que sempre adorei essa peça e acho que toda oportunidade de mostrá-la é valiosa :)

Quando falamos de Mahler, comentei sua capacidade notável de criar um universo próprio. O jovem Schumann das obras para piano é igual. Todas as peças que compôs nessa época compartilham climas, referências, ambientações – é como se fossem movimentos de uma grande obra única.

Coincidência: a Primeira Sinfonia de Mahler recebeu o subtítulo de “Titã”, após o romance do escritor alemão Johann Paul Richter, aka Jean Paul. E justamente a maior influência literária de Schumann foi Jean Paul. Foi a partir de um livro de Jean Paul que Schumann compôs sua obra inaugural, “Papillons”, de 1831, que introduz o mundo schumanniano de mascarados, disfarces, enigmas e desencontros de quase todas as peças seguintes. O mundo do jovem Schumann é derivado do mundo de Jean Paul, que também influenciou o jovem Mahler. Há aí uma conexão.

“Carnaval” é de 1835 e leva adiante a ambientação de “Papillons”. Como o nome explicita, trata-se de um baile de máscaras. Schumann estruturou seu baile como uma espécie de tema-e-variações de forma muitíssimo livre, a partir de alguns fragmentos melódicos: o subtítulo é “Pequenas cenas sobre quatro notas”. As quatro notas a que Schumann se refere formam, na notação musical alemã, os acrônimos ASCH, AsCH e SCHA. Essas siglas podem significar um monte de coisas: o nome de Schumann, a cidade natal de sua então noiva (Asch), carnaval em alemão (Fasching) e assim por diante.

Esses motivos aparecem nesse baile de várias maneiras: como personagens da commedia dell’arte italiana (Pierrô, Arlequim, Pantaleão, Colombina), como os próprios pseudônimos de Schumann (Eusebius, Florestan), como eventos (um flerte, o reconhecimento entre os amantes, um passeio) e como retratos de amigos e conhecidos de Schumann: estão lá Chopin, Paganini, sua futura esposa Clara Wieck e sua então noiva, Ernestine von Fricken, além dos imaginários “Companheiros de Davi” (a confraria fantástica de Schumann), que lutam contra os “filisteus” na marcha final.

Como dá para notar, Schumann dá vazão aqui a uma imaginação fertilíssima. Essa enorme quantidade de conceitos é retratada em música a partir daquelas míseras quatro notinhas de base. O estilo é o típico schumanniano: melodias curtinhas, de desenho meio anguloso, harmonizadas de maneira muito original. Isso cria um clima meio “fora-do-mundo”, surreal, que acho que só será revisitado pelos expressionistas vienenses um século depois.

Há trechos rapidíssimos (“Paganini”), partes bem-humoradas (“Pantaleão”) e outras de expressiva sensibilidade (“Chiarina” e “Aveu”). No baile de Schumann acontece de tudo! E ele termina com uma parada imaginária contra a mesquinharia e o conservadorismo na arte (e também no mundo, por quê não?), simbolizada por um engraçado tema alemão, a “Dança do vovô”.

Por suas incontáveis inovações musicais e artísticas, por ser um retrato tão pungente das aspirações de sua época, e por ser um transbordamento de fantasia e imaginação, “Carnaval” merece o SELO DE EXCELÊNCIA DO GRANDE CARVALHO. E aqui na Ilha é assim: se merece, ganha DEZ! \o/

Dvorák

“O espírito das águas”

Segunda de Carnaval e nossa série “Mágico, fantástico, lendário” continua! Já falamos de quatro obras baseadas em antigos contos folclóricos que têm algo em comum, além do clima sobrenatural: o fundo moralizante.

Se fosse eu um antropólogo/sociólogo, poderia discorrer sobre a necessidade social do “reforço negativo” e de historinhas no modelo alerta-desobediência-punição. Mas prefiro lembrá-los da figura sempre exemplar de J. Walter Weatherman. ;-)

34688344

Não há lição que não possa ser aprendida com o auxílio de um braço falso.

Engraçado notar que as duas primeiras obras de nossa série, ambas óperas, terminam relativamente bem: a mocinha não morre com o tiro amaldiçoado do franco-atirador e o holandês aparentemente safou-se da maldição graças à fidelidade post-mortem de Senta. Acho que finais inteiramente trágicos não pareciam muito auspiciosos para os produtores de ópera da época – bom, não são até hoje para Hollywood, vide Spielberg.

Mas será que na sala de concertos tudo é possível? O público dos concertos seria MACHO PACAS, então por isso Franck e Dukas se sentiram bastante à vontade para fazerem os protagonistas de seus poemas sinfônicos se darem mal? Sei lá. O fato é que os compositores de música instrumental tinham muito menos dó de seus personagens e podiam puni-los à vontade por suas transgressões.

A obra de hoje traz essa super crueldade típica das manifestações populares: trata-se de “O espírito das águas”, poema sinfônico composto por Antonín Dvorák em 1896. Dvorák usou, como base desta e de outras três peças, poemas da coletânea “Um ramalhete de lendas populares” do poeta tcheco Karel Erben, publicada em 1853. O livro de Erben, composto de treze baladas adaptadas de contos populares boêmios, é um clássico em seu país. Serviu de base para um monte de peças de teatro, filmes e obras musicais – entre elas as de Dvorák.

Quase todas as lendas do “Ramalhete” são incrivelmente soturnas e cruéis. E eram lidas para/por crianças! Sabe aquele terrorzinho básico que os pais gostavam de incutir nos filhos até poucas décadas atrás? Pois então. Hoje, tudo que é feito para o público infantil é cuidadosamente “edificante”; à época podia ser francamente traumatizante, sem nenhum pudor.

O primeiro dos poemas sinfônicos que Dvorák compôs sobre o “Ramalhete” é este “O espírito das águas”. A historinha tem como personagens principais uma mocinha, sua mãe e o próprio Espírito das Águas – um ser repugnante que mora no fundo de um lago e que mata desavisados para guardar suas almas em xícaras viradas (tá aí a explicação mítica para afogamentos). Muito resumidamente: a mocinha não liga para os alertas da mãe e vai ao lago. Termina, claro, capturada pelo Espírito das Águas, que a torna esposa e mãe de seu filho.

O tempo passa, numa vida triste no fundo do lago. Pois que um dia a mocinha pede permissão ao Espírito para visitar a mãe. Ele consente, desde que ela deixe o filho com ele e que volte antes das oito horas. Claro que ela perde o horário, o que enfurece o Espírito, que vai à caça de sua esposa. Em uma cena assustadora, o Espírito trava um baita duelo com sua sogra – que não queria deixar a mocinha voltar para o lago – e acaba matando o próprio filho como punição a ambas.

Duplo crime, duplo castigo. De uma lenda sombria e sanguinolenta, Dvorák criou uma música de imenso poder evocativo e de maravilhosa engenharia. Toda a peça é baseada no insidioso tema do Espírito, que não só inicia a obra como lhe fornece o motor rítmico geral – os “saltitos” característicos. Os temas da mocinha e sua mãe, e depois o tema da criança, são comoventes. As sobreposições que Dvorák faz, mesclando os motivos para representar as diversas passagens da história, são impressionantes. E o final é avassalador.

“O espírito das águas” é um dos poemas sinfônicos mais incríveis do século 19. Se é muito menos conhecido do que deveria, culpa nossa. Comece sua redenção agora: é só clicar :)

Ah, sim, claro! O Leonardo T. Oliveira, do Euterpe, escreveu um artigo fabuloso explicando detalhe por detalhe desta obra-prima. Vale conhecer a peça toda e depois ler o post dele com calma – tenho certeza de que vários detalhes preciosos vão ser revelados!

Tchaikovsky

“Souvenir de Florence”

Tchaikovsky, esse ultrarromântico, criador de trágicas e dramáticas sinfonias, óperas e balés, um mestre da intimista e formal música de câmara? Pois é. Por trás desse pathos romântico, estava escondido um certo formalismo e uma necessidade de equilíbrio. O autor da Sinfonia “Patética”, quase um bilhete de suicida posto em música, admirava a música do século 18 e tinha Mozart como ídolo e modelo. Go figure…!

Tchaikovsky compôs uma série de obras que representam seu lado mais clássico. As quatro suítes orquestrais são as mais evidentes – a última delas se chama inclusive “Mozartiana”. As célebres Variações sobre um tema rococó, para violoncelo e orquestra, também. E há a hiperbatida Serenata para cordas. Mas acho que a sua produção de câmara representa uma união bem legal entre a expressão romântica e a feição mais clássica do compositor. É muito mais interessante do que parece.

Da relativamente pequena produção de câmara tchaikovskiana, gosto particularmente do seu sexteto de cordas, dito “Souvenir de Florence” (em francês: “Lembranças de Florença”), de 1892. É revelador que uma peça de câmara, no modelo bem certinho de quatro movimentos, receba título e tenha uma origem tão oitocentista: uma viagem de “escapada” de verão para a Itália.

Vale lembrar que Tchaikovsky vivia uma espécie de pesadelo social na Rússia. Homossexual em uma sociedade repressora, fez de tudo para escapar dos olhares vigilantes. Chegou a fazer um casamento fajuto com uma fã psicótica, que só gerou imenso transtorno e infelicidade. Para extravasar seus desejos e necessidades, Tchaikovsky fugia. Viajava, principalmente para a quente Itália. Anônimo, livre, sem ninguém a vigiar, vivia LA VIDA LOCA.

Essa felicidade está bem evidente no início frenético da peça, a todo vapor, seguido por um lânguido tema, cheio do caráter do verão italiano. O segundo movimento é uma espécie de serenata. O terceiro é um scherzo um pouquinho mais sombrio, bem intrigante, enquanto o finale volta à efervescência do início, mas com um sabor meio eslavo que curiosamente foge completamente à Florença. E como o ouvinte pode tirar o grudento tema do finale da cabeça? Impossível!

O sexteto é tão expressivo e tem som tão cheio e “sinfônico” que foi rapidamente arranjado para orquestra de cordas. A obra é maravilhosamente rica e envolvente e merece ser muito mais conhecida. É de uma perfeição germânica? Não, mas é quente e viva e representa belamente uma faceta muito intrigante da vida e da obra desse compositor tão popular que é Tchaikovsky.

Bach

Suíte orquestral no. 3

O que é uma suíte? Essa é uma palavra de origem francesa que significa simplesmente “sequência”. Tipo, uma coisa atrás da outra. Só isso.

O gênero musical da suíte é exatamente isso: vários trechos, com pouca ou nenhuma ligação entre si, enfileirados. Pense numa coleção. Ele surgiu na segunda metade do barroco como uma maneira de fazer música variada para entreter cortes e cidadãos ávidos por novidades. Era, afinal, o barroco, época amante de exageros e contrastes… e de variedade!

A suíte barroca se estabeleceu como uma coleção de danças de diversas origens. Mais ou menos todos os ritmos que a Europa conhecia na época: a espanhola sarabanda, a inglesa giga, a italiana forlana e, como o gênero era essencialmente francês, as francesas gavota, bourrée e passepied (fora as mais universais courrant e minueto). É uma espécie de feira mundial ou Almanaque Abril em forma de música…!

Duas partes se diferenciam nessa ONU de danças: um momento mais lírico e cantável (e por isso chamado de “ária”) e, principalmente, a abertura. Composta invariavelmente em estilo francês – primeira parte solene e lenta, com marcante ritmo pontuado, segunda metade rápida e fugada – é tão característica e importante que o gênero da suíte é muitas vezes conhecido como “abertura”, simplesmente.

Bach não era um cara muito dançante, mas compôs quatro suítes (ou aberturas) orquestrais. Provavelmente serviam como agrado eventual aos patrões de Leipzig, já que Bach sempre foi um empregado meio rebelde e cheio de reivindicações. O fato é que, compostas em diferentes épocas, quase certamente baseadas em música escrita anteriormente, as suítes ficaram muito populares.

Principalmente a Terceira, de orquestração mais brilhante, com trompetes e tímpanos, e dona de uma tocante ária, que com a abertura forma os dois centros de gravidade da obra. (A ária, coitada, recebeu inúmeros arranjos, em geral melífluos e xaroposos, que fazem pouco jus a Bach.) Seguem a essas partes duas gavotas, uma bourrée e uma giga para finalizar espetacularmente.

Além da gravação acima, coloquei abaixo um vídeo bem extremo da Suíte no. 3 de Bach para choc, digo, mostrar para vocês: Reinhard Goebel e seus tempos ultrarrápidos. Goebel é veloz até na ária, que fica bem diferente das versões bregófilas que muitas vezes se ouve por aí. É diferente e legal. E prova que tocar com instrumentos de época, a essa velocidade, é muito difícil – ô povo desafinado!

Mahler

Sinfonia no. 2, “Ressurreição”

Escrever sobre, digamos, sinfonias de Haydn é relativamente fácil. É mais ou menos assim: depois de um primeiro movimento FODA, vêm um movimento lento LINDO, um minueto DEMAIS e um finale DO GRANDE CARVALHO. Pronto, acabou, viva Haydn!

Mas sinfonias de Mahler são o inferno do comentarista. Ele se vê obrigado a pesquisar literatura, ler poesia, estudar filosofia, antropologia e religião, entender a biografia do compositor, sacar as idas e vindas na gestação da obra, assobiar, chupar cana e ainda correr o risco de ter escrito um monte de besteiras!

Correrei o risco. Porque a obra de hoje merece: trata-se da Sinfonia no. 2 de Mahler, dita “Ressurreição”, de 1894.

Mahler é um compositor muito especial. É um dos poucos que conseguiu criar um mundo próprio, com mitologia própria, para as suas obras habitarem. Ele não era um compositor, mas um demiurgo! Cada sinfonia, um país de um imenso continente chamado Mahler. É, é rico assim!

Creio que as duas sinfonias que exemplificam melhor isso são a Segunda e a Terceira. Mas, se a Sinfonia no. 3 permanece até hoje um gosto adquirido, a “Ressurreição” conquistou o grande público desde sua estreia e é, provavelmente, a obra de Mahler mais popular.

Fácil de perceber, pelo nome, que a temática da sinfonia é morte, redenção e renascimento. Para expressar isso, Mahler criou uma forma imensa em 5 movimentos, com dois blocos distintos. O primeiro bloco tem apenas um andamento, e é uma enorme e intensa marcha fúnebre. De arrepiar os cabelos! Grande pausa. O segundo bloco começa com um andamento moderado, em ritmo de valsa rústica – um quebra-clima, um deixa-disso, um pega-leve depois de um começo tão forte.

Legal mesmo é o movimento central, um scherzo de tons fantásticos. É a minha parte predileta da sinfonia. Mahler recorre aqui à autocitação: a base desse trecho é uma canção do ciclo “A trompa magica do jovem”, chamada “A prédica de Santo Antônio de Pádua aos peixes”, de 1893. A historinha é a seguinte: o santo resolve pregar aos bichos, que não estão nem aí. Cagam e nadam. o santo chega à igreja e ninguém está ali. Resolve então pregar aos peixes, que ouvem maravilhados. Mas em seguida voltam a fazer o que sempre fizeram – tipo, como os seres humanos ;-) (Valeu, Leonardo T. Oliveira!)

Interpretação possível (essa é a minha, traga a sua!): de que adiantam as idéias e os palavrórios humanos para a natureza (das coisas, das pessoas, de tudo)? Ela segue seu luxo, de vida e morte, de criação e destruição, de evolução, de maneira imparável e inclemente. E a música é INCRÍVEL. Você ri, você chora, você urra, você faz tudo, menos ficar indiferente.

Pausa. E uma voz de contralto começa algo bem distinto. É uma outra canção da “Trompa mágica”, desta vez a sublime “Luz primordial”, que expressa o desejo pela reparação eterna, extramaterial, pelos sofrimentos da vida terrestre (os peixes, os peixes!). Sem interrupção, começa o finale. Primeiro uma longa introdução orquestral, que recapitula alguns temas anteriores e cria todo o cenário para o impressionante final coral (com soprano solo), baseado no poema “A ressurreição”, de Friedrich Klopstock.

Não precisa nem falar: é um final grandioso, redentor, emocionante. Mahler aqui fez mais que uma sinfonia: sintetizou toda uma angústia existencial e uma filosofia ao redor dela. Em música. Não à toa que Mahler é o autor moderno que tem maior “séquito” hoje. Creio que até mais que Wagner. A mensagem wagneriana ficou meio desbotada com o tempo; a mahleriana segue atual e fascinante.

É DO GRANDE CARVALHO e merece um, dois, três, quatro SELOS DE EXCELÊNCIA. Ouça! E depois comente ;-)