Saint-Saëns

Concerto para piano no. 4

E chegamos ao último capítulo de nossa saga romântica! Começamos lá com Field e Chopin, passamos por Schumann e Grieg e concluímos com Liszt e seu parzinho inseparável: Camille Saint-Saëns!

Saint-Saëns foi, ao lado de Franck, figura de proa da música francesa da segunda metade do século 19. Vale lembrar que a cena musical da França dessa época era amplamente dominada pela ópera. Música instrumental ficava relegada a um longínquo segundo plano. Essas polaridades só se inverteram nas últimas décadas dos 1800, e Saint-Saëns tem muito a ver com isso – apesar de não ter escapado de tentar emplacar uma ópera bem ao gosto da freguesia, com cenários exóticos e um monte de balés, bacanais etc. OK, deixa pra lá ;-)

Apesar de ser visto costumeiramente como um conservador, Saint-Saëns tinha grande atração pela obra de Liszt e suas inovações formais. E prova maior dessa filiação é este soberbo Concerto para piano no. 4, de 1875. O quanto ele bebeu na fonte do Concerto no. 1 de Liszt é até difícil medir…!

Vamos lá: quatro movimentos quase sem interrupção (dessa vez a breve pausa acontece entre o movimento lento e o scherzo, bem no meio da obra); um tema domina todo o concerto, que é praticamente transformado numa grande variação; a ênfase, portanto, está no desenvolvimento e nos processos de transformação temática. É uma obra muito mais cerebrina que virtuosística, de engenharia realmente notável.

A ordem dos movimentos é similar à da obra de Liszt: allegro-andante-scherzo-finale. Mas o allegro inicial é desta vez bastante contido, todo em meios-tons, e já é em si algo como um tema-e-variações. Outra diferença: o motivo principal do concerto não está ali, mas no segundo andamento. É uma melodia em formato de hino, muito saintsaensiana (lembra a Sinfonia “Órgão”?). Esse motivo que é, na verdade, o motor do concerto.

Prova disso está na passagem do scherzo para o finale: ao contrário do que acontece no Liszt, aqui é o andante que é convocado para construir essa transição. Saint-Saëns elabora cuidadosamente essa ponte para que o tema-hino ressurja em toda a sua glória. É a conclusão triunfal e lógica de toda uma estrutura que foi construída justamente para este momento.

Para o ouvinte é uma delícia. Há uma satisfação quase tátil com a melodia meio grudenta do finale, e o ouvinte não sabe bem o motivo. Revelo a mágica: ela é tão interessante porque Saint-Saëns já havia dado gostinhos dela desde o começo, através de fragmentos, variações e insinuações espalhados por toda a obra. Quando o tema-hino desenvolve todo o seu potencial no último movimento, ele já nos é familiar.

Isso, amigos, é storytelling. Afinal, tão importante quanto o quê é contado, é como é contado. Certo? ;-)

Assim encerramos nosso passeio pelo concerto para piano do século 19. Foi só um recorte, claro. Há muita música que poderíamos ter comentado (por exemplo, Brahms, ele em si um capítulo à parte), mas o essencial está aí. Espero que tenham curtido a jornada – porque semana que vem começa outra!

Honegger

Sinfonia no. 3, “Sinfonia litúrgica”

Guerras são eventos terríveis, que afetam mais que o cotidiano de países – ficam marcados permanentemente na psiquê de gerações. E é através da arte que esse processo fica visível. Incontáveis obras literárias, visuais, cinematográficas, teatrais foram criadas tendo a guerra como assunto, direta ou indiretamente.

Na música não foi diferente. A minha “era de ouro musical”, a primeira metade do século 20, sofreu não somente com uma guerra de grandes proporções, mas DUAS. Duas gerações de compositores lidaram diretamente com esses conflitos. Ravel, por exemplo, dirigiu caminhão na Primeira Guerra. Vaughan Williams foi maqueiro – carregava soldados feridos. Berg serviu o exército austro-húngaro e sua experiência de caserna foi grande inspiração para “Wozzeck”.

Apesar de nacional de um país neutro no conflito, a Suíça, Arthur Honegger viveu intensamente a Segunda Guerra Mundial. Morava em Paris à época da ocupação nazista e fez parte da Resistência Francesa. Foi fortemente afetado pela situação e, pouco após o fim da guerra, compôs uma das obras mais emblemáticas do período: sua Terceira Sinfonia, dita “Sinfonia litúrgica”.

“Litúrgica”? Sim. Não, não é uma obra sacra, nem há partes vocais. Mas a ideia principal da missa de requiem domina toda a sinfonia – a busca da paz. Obedecendo ao padrão neoclássico dos anos 1940, Honegger estruturou a obra em três movimentos. Todos têm títulos latinos, extraídos do requiem: “Dies irae”, “De profundis clamavi” e “Dona nobis pacem”. O arco, do conflito à paz, é evidente.

Os movimentos externos são agitados e representam o mundo em guerra. O primeiro é das páginas mais agressivas e intensas de todo o repertório – é o próprio caos causado pela guerra. O segundo andamento tem clima completamente oposto: é introspectivo, meditativo. “De profundis clamavi” é uma oração, uma súplica por perdão e salvação.

O terceiro movimento funciona como uma interrupção da oração e uma volta ao mundo real: uma marcha grotesca, insistente, brutal, domina toda a orquestra até alcançar o terrível cataclisma – uma baita dissonância, diga-se de passagem! Esse clímax, porém, marca a mudança à qual a sinfonia ansiava: a “pacem” tão pedida enfim é alcançada. Ela é simbolizada por um tema que já havia aparecido, escondidinho, nos movimentos anteriores. A obra termina da maneira mais delicada e suave possível.

Creio mesmo que esta é a das viradas mais incríveis e emocionantes da história da sinfonia. Curiosamente, outra Terceira Sinfonia, composta dois anos antes, tem arquitetura bastante similar: a de Bohuslav Martinu. Papo para uma outra sexta-feira ;-)

Voltando a Honneger: TEM DE OUVIR. Sua Terceira é uma das grandes obras-primas sinfônicas do século 20; é repleta de música impactante e é profundamente emocionante do início ao fim.

Schubert

Fantasia “Wanderer”

Schubert compôs canções. Muitas, e várias delas serviram de base para obras instrumentais. Vêm à minha cabeça as mais famosas: o Quarteto de cordas no. 14, baseado na canção “A morte e a donzela”, e o Quinteto para piano e cordas, dito “A truta”, sobre a canção de mesmo nome.

Mas de todas as peças schubertianas baseadas em canções, a minha favorita é mesmo a Fantasia para piano, D. 760, de 1822. Ela usa como base a canção “O andarilho” (“Der Wanderer” no original, e por o apelido de Fantasia “Wanderer” que a obra recebeu), de 1816, que é a seguinte:

A canção é estruturada em quatro partes. Preste atenção na segunda parte, a mais lenta e soturna de todas. É desse motivo que Schubert extrairá todo o material temático da Fantasia. Isso fica particularmente explícito no segundo movimento, um conjunto de variações sobre o tema – exatamente como nas peças de câmara citadas acima!

Mas a coisa é ainda mais intrincada e sutil: os outros três movimentos da Fantasia (todos tocados sem interrupção) também são baseados nessa melodia, distorcida ao ponto do não-reconhecimento. A obra resulta, portanto, numa mistura muito sofisticada de sonata e de variação, e é certamente por isso que Schubert chamou a obra de “Fantasia” e não de “Sonata”. Fosse 1850 e ele não teria tal pudor!

O último movimento da Fantasia é especialmente surpreendente: é uma espécie de fuga sobre uma variação do tema da canção. É extremamente difícil para o intérprete, e mega excitante para o ouvinte. Mas minha parte predileta é o movimento lento, em que Schubert – à parte a maravilha da engenharia que sustenta a obra – atinge níveis absurdos de sublimidade. Existe essa palavra? Bom, que seja: é sublime, causa apneia, é DO GRANDE CARVALHO!

Janácek

Sinfonietta

Fanfarras são coisas bem legais. Não parece, mas são. Eu me lembro de duas experiências pessoais com fanfarras: uma no próprio colégio em que eu estudava, cuja banda marcial ensaiava nas noites de quinta-feira; outra quando fui vizinho de uma escola que tinha um grupo que praticava todos os sábados. Era divertido ouvir aquele monte de clarins, tubas, trombones, todos tentando fazer juntos um som coerente.

O tcheco Léos Janácek teve experiência similar lá pelos idos de 1925 e ficou intrigado com a ideia de compor uma fanfarra. A fome juntou-se à vontade de comer quando a organização de um festival de ginástica da cidade de Brno chamou o compositor para criar uma obra para o evento.

(Gente, agora para tudo: que maravilha de mundo é esse em que um EVENTO REGIONAL DE GINÁSTICA pode encomendar obras de… JANÁCEK!)

Foi assim, meio prosaicamente, que nasceu uma das obras mais conhecidas de Janácek, que ganhou o nome de Sinfonietta. Não uma sinfonia full-fledged, mas algo no meio do caminho. Acho que a estrutura não usual (cinco movimentos de andamento moderado, bem curtinhos) explica o nome. Mais ainda: a Sinfonietta, no fundo no fundo, é uma experiência com o estilo de fanfarra.

A obra se inicia com um movimento só para os metais e a percussão – exatamente como uma imensa banda marcial. Os demais movimentos são para a orquestra sinfônica usual e exploram o tema exposto pela fanfarra no começo. Toda a obra deriva dessa fanfarra, e o que Janácek faz dela é realmente notável. No final, a fanfarra do início retorna triunfalmente, em repetição literal, mas com a instrumentação enriquecida pelo restante da orquestra. É de arrepiar os pelinhos do dedão do pé!

A Sinfonietta é obra tremendamente original, e não poderia deixar de sê-lo – é a característica maior do autor, dono de um dos estilos mais intrigantes da música do século 20. O que são aquelas melodias malucamente curtas e angulosas, temperados por ritmos inusitados, extraídos da fala, e harmonias inexplicáveis? Como classificar as frases horripilantemente agudas nas cordas ou os vários efeitos estranhos nos sopros? É tudo tão bonito, novo, único, tão demais… TEM DE OUVIR!

Liszt

Concerto para piano no. 1

E continuamos a série “Concerto romântico”! Já vimos os primeiros passos do concerto para piano no século 19, com Field e Chopin, a mudança promovida por Schumann, e a solução de compromisso proposta por Grieg. Hoje é dia de vermos que o maior pianista de sua época foi, surpreendentemente, o compositor que mais se preocupou em fazer a estrutura do concerto avançar: Franz Liszt!

O nosso amigo Liszt, um dos motores de inovação do romantismo musical, esboçou desde sempre seu primeiro concerto para piano, mas só conseguiu finalizá-lo em 1848. A demora se justifica: a obra é finamente trabalhada, muito mais uma enorme variação do que um concerto de roupagem tradicional. Liszt repetiria a dose em seu segundo concerto (composto na mesma época) e na Sonata em si menor, de 1853. São três obras de ousadia formal realmente notável.

Este Concerto para piano no. 1 foi estruturado em quatro breves movimentos tocados (quase) sem interrupção – há uma pequena pausa entre o primeiro e o segundo. Os dois primeiros andamentos expõem os temas principais da obra, que serão desenvolvidos nos movimentos posteriores. São duas partes, portanto, e elas têm igual duração e importância: apesar da cara de rapsódia, o concerto é, na verdade, muito simétrico e equilibrado.

A obra já começa a todo vapor, com o motivo principal do concerto, super famoso. Acostume-se com ele – Liszt está tão preocupado em reforçar sua importância que essas sete notinhas serão repetidas à exaustão. O piano é soberano mas não “dissolve” a orquestra que o acompanha – na verdade, ela tem igual importância na condução dessa estrutura, de maneira quase camerística. Há inclusive diversas ocasiões em que instrumentos são convidados a montar pequenos duetos com o piano (clarinete, flauta, triângulo… triângulo?).

Aliás, é o triângulo que marca a passagem da primeira para a segunda metade do concerto, do movimento lento para o scherzo. A partir desse momento, Liszt passa a reapresentar os temas já expostos, a criar novos baseados nestes, a variá-los infinitamente. A cada citação do motivo principal nos lembramos da estrutura em espelho do concerto. Até que chegamos ao ponto crucial da obra: a transição do scherzo para o finale, que é feita justamente com uma recapitulação praticamente literal da abertura, mas interpolada a material emprestado do movimento lento!

Daria para escrever muito mais linhas descrevendo as aventuras dos temas que aparecem e reaparecem neste concerto. Mas não vou ficar fazendo SPOILER, até porque essa é a graça maior da obra: a engenharia. Escute, escute várias vezes até começar a perceber os truques de Liszt. É delicioso: toda vez que reconhecemos uma artimanha (“uia, esse cara aqui veio lá do movimento lento”, “ha, de novo o scherzo!”, “olha o tema principal disfarçado, SAFADENHO!”) rola aquela alegria tipo coelho-saindo-de-cartola, sabe? Liszt era mesmo mágico!

E, muito conscientemente, operou pequena revolução: o concerto para piano era o refúgio para o qual corríamos para ouvir o piano derramar belas e numerosas notas. Ninguém precisava pensar, só se deleitar. Liszt transformou o concerto para piano num palco de engenharias formais de calibre sinfônico – o concerto lisztiano é um maravilhoso quebra-cabeça nível DESAFIO COBRÃO.

Claro que este Concerto no. 1 deixou pelo menos um filhote notável. Alguém se arrisca a dizer qual é? Assunto do próximo post! Palpites? COMENTE!

Mendelssohn

Quarteto de cordas no. 6

Felix Mendelssohn teve uma infância aparentemente perfeita: filho de um rico banqueiro de Berlim, era frequentado por artistas e intelectuais e teve a melhor das educações para fazer florescer seu gênio. Ele cresceu, foi imensamente bem-sucedido como intérprete e compositor. Tinha uma personalidade afável, feliz, e sua obra espelhava isso. Mas guardava uma angústia oculta: remorso pelo destino de sua irmã mais velha, Fanny.

Na infância, era Fanny a mais promissora dos Mendelssohn. Hoje parece ok, mas na primeira metade dos anos 1800 não era de bom tom que uma moça “de família” se tornasse profissional de algo, mesmo que esse algo fosse a música. Ainda mais se tivesse um irmão talentoso. O fato é que Abraham, o pai, e Felix trataram de sabotar a carreira de Fanny, que no final se casou como esperado e manteve a música apenas como hobby. Felix chegou mesmo a “roubar” composições de Fanny e publicá-las como se fossem suas! (De novo: se as coisas não são justas para as mulheres ainda em 2014, imagine em 1825.)

Quero crer que ninguém, no fundo, acredita em injustiças; Mendelssohn sabia o que estava fazendo, mas era pressionado pelo pai e pelas convenções sociais da época e se sentia mal. Fanny morreu subitamente em 1847, com pouco mais de 40 anos, e Mendelssohn sofreu demais com essa perda. Provavelmente, o acúmulo de culpa e remorso veio à tona. Passou meses recolhido, sem fazer nada.

Para retomar a vida após o choque, Mendelssohn foi para a Suíça e lá compôs o absurdamente incrível Quarteto de cordas no. 6, que não nos deixa mentir: ele estava MUITO, MUITO PUTO DA VIDA. Tudo aquilo que ele não transparecia ele deixou transbordar neste quarteto. É das obras mais esporrentas e angustiadas do século 19 – e talvez de todo o repertório de câmara! Justo Mendelssohn…!

O início é uma tempestade, e todo o agitado e austero primeiro movimento é belíssimo par do Quarteto “Serioso” de Beethoven. Aliás, nesta obra Mendelssohn mostra toda sua dívida com o mestre de Bonn: temas curtos e incisivos, dissonâncias, ritmos inusitados, objetividade e foco no desenvolvimento temático.

O movimento que lhe segue é ainda mais assombroso – um scherzo todo escuro, pessimista, tenso. Só encontramos certo alívio no andamento lento, de beleza mais melancólica que resignada. O finale retoma o clima do início, sem trazer real solução: ao que parece, o objetivo da obra era mais urrar do que curar.

O Quarteto no. 6 parece uma desopilação, um expurgo. Mendelssohn PRECISAVA por para fora. Criou uma obra-prima estonteante, total DO GRANDE CARVALHO…. e que ficou meio esquecida pela posteridade. Como assim? Muita obra menos interessante é ouvida por aí para podermos nos dar ao luxo de ignorarmos tal colosso. Então repare esta falha AGORA MESMO! É UMA ORDEM!

Gente, o vídeo abaixo é maravilhoso. TEM QUE ASSISTIR! Depois aproveite a versão disponibilizada no Concertmaster.

Holst

“Os planetas”

Hora de quebrar alguns mitos. Mito número 1: “Os planetas”, do inglês Gustav Holst, é uma obra menor, um mero showcase orquestral. Mito número 2: “Os planetas” trata do sistema solar sob os olhares da mitologia greco-romana. Mito número 3: “Os planetas” é uma obra incompleta, cadê a Terra, cadê Plutão?

Bom, de fato Plutão foi descoberto uns quinze anos depois de obra composta e estreada. Holst estava vivo e sequer cogitou emendar a suíte. Acho que ele foi esperto, porque de lá pra cá Plutão já deixou de ser considerado um planeta, e a obra ficou atual novamente ;-)

A Terra não está presente porque “Os planetas” não é uma suíte sobre astronomia, mas sobre ASTROLOGIA, com L, e a Terra não é um planeta astrológico. Sim! E não tem nenhum deus grego envolvido. Os subtítulos dos movimentos falam de “O portador da guerra”, “O portador da velhice” etc, mas sempre se referindo aos planetas em si e os efeitos que a eles são atribuídos na astrologia. Te peguei nessa, hein?

Holst era fascinado por astrologia. Acho que, logo de cara, percebeu o potencial que as diferentes caracterizações astrológicas tinham para uma abordagem sinfônica, com todos os tipos de música que uma sinfonia, ou uma suíte, exigem. E estruturou sua peça dessa maneira, desrespeitando a ordenação astronômica (e astrológica) dos planetas em busca de coerência musical.

A obra começa com Marte, não com Mercúrio, o que faz todo o sentido: um movimento enérgico, guerreiro, de ritmo marcante. Segue Vênus, não Júpiter, trazendo alívio com um movimento lento e delicado. Volta para Mercúrio, um scherzo leve, diáfano. E pula tudo direto para Júpiter, um movimento massudo, vigoroso, potente. É uma sinfonia!

Mas a suíte continua com Saturno, um segundo movimento lento, sóbrio e solene. Urano é um segundo scherzo, galhofeiro e grotesco. E, enfim, Netuno, um epílogo em que um coro feminino participa para dar encerramento misterioso à obra – depois dos planetas, o enigma do espaço sideral? O vácuo?

A ordem astronômica nesta segunda parte é respeitada, mas primariamente porque musicalmente faz muito sentido: o conjunto fica assim equilibrado, com Júpiter no meio e dois movimentos lentos, dois scherzos, introdução e epílogo orbitando (pun intended) ao redor. E isso reforça o óbvio que muitas vezes se esquece: “Os planetas” é, antes de tudo, uma obra musical perfeitamente realizada, que seria plenamente autossuficiente sem o apoio das descrições astrológicas. Vale lembrar que o nome original da suíte era bem abstrato, meio schoenbergiano até: “Sete peças para orquestra”. Pois é…

Se a linguagem nos lembra filme de George Lucas com música de John Williams, é porque a posteridade bebeu muito na fonte holstiana. A culpa é deles, não de Holst! Hoje nos parece semi-banal: as explosões e rasantes de “Marte”, a secura modal de “Saturno”, o desajeitado “Urano” foram copiados e VIRARAM clichês. Mas posso garantir: eram recursos incrivelmente frescos, excitantes e originais quando Holst os concebeu. E podem soar assim até hoje, se ouvirmos com os ouvidos certos.

Bach

Concerto italiano

Aprendamos com mestre Bach e vamos compactar!

O que é um concerto? Já falamos isso aqui: é uma obra para solista e orquestra. Mas, diachos, o que Bach quis com este Concerto italiano, BWV. 971, que é para cravo solo? Compactar, queridões, Bach quis compactar!

Bach era incrível nisso – compactador muito mais eficiente que o RAR! Suas suítes para violoncelo, ou suas partitas para violino são impressionantes por serem contrapontísticas mesmo em instrumentos monofônicos, que só conseguem soar uma única nota simultaneamente (OK, há exceções). Ele sabia criar a ILUSÃO de contraponto no ouvinte, graças à manipulação hábil da linha melódica e dos registros do instrumento. É endoidecedor.

Este Concerto italiano é para cravo, um instrumento naturalmente polifônico. Mas o bach.rar aqui é de outra natureza: o objetivo era emular um concerto para solista (violino?) e orquestra apenas no teclado. Hmm, legal, e FUNCIONA! O truque usado foi fazer o cravo soar delicado para representar o “solista”, e massivo, cheio de acordes, para representar a orquestra.

Presta lá atenção. A obra começa com um tutti – super acordões a todo vapor. Exposição passada, o cravo passa a desenvolver uma linha melódica ornamentada, graciosa, com acompanhamento simples – eis aqui representados o solista e sua obediente orquestra! Conforme a música vai ficando mais densa, as duas maneiras de se tocar o cravo começam a dialogar, a compartilhar os temas, a tornar o conjunto mais complexo… mas a distinção entre “solista” e “orquestra” virtuais está sempre presente, clara como água.

O movimento lento é outro exemplo supremo dessa dinâmica. Ele começa já num modo “orquestra” diferente, o do acompanhamento suave. O modo “solista” entra um pouco depois, num registro mais agudo e com uma linha melódica mais contínua. É lindo demais, e é uma ária, típico momento de relaxamento dos concertos barrocos ita…

… sim! Isso explica o nome da obra, claro :) Bach propositadamente repete o modelo concertante praticado na Itália. Quantos e quantos concertos de Vivaldi que Bach não estudou, transcreveu, arranjou? Este é o seu concerto “italiano” original, assim como também compôs suítes perfeitamente “francesas” ou cantatas em tudo “alemãs”.

Bach compactou não só o concerto mas também o mundo inteiro!

Stravinsky

“A história do soldado”, suíte

Aí em cima tá escrito “balé”, mas acho que o mais certo seria “pantomima“. Ou não. “A história do soldado”, de Stravinsky, é uma obra teatral que meio que ~desafia classificações~. Melhor explicar: trata-se de uma peça de teatro, falado (quer dizer, não cantado), mas com música e dança. E o mais curioso: a música é destinada a um septeto (violino, contrabaixo, clarinete, fagote, trompete, trombone e percussão). Seria música de câmara então? Ooooolha…

Com apenas quatro personagens (er, o narrador é personagem?) e sete músicos, “A história do soldado” é claramente uma obra de bolso, para uma companhia ambulante de baixo custo. Isso tem explicação: foi composta em 1918, quando a Primeira Guerra Mundial fazia seus últimos estragos. Tempos bicudíssimos, e Stravinsky foi muito esperto ao criar uma obra viável até com sérias restrições orçamentárias.

“A história do soldado” tem texto escrito por Charles-Ferdinand Ramuz, amigo de Stravinsky na Suíça, onde o compositor morava. O argumento, baseado no folclore russo, é faustiano: um soldado vende sua rabeca ao diabo, em troca de riqueza infinita (na forma de um livro que traz todos os eventos do futuro. Biff, é você?). Ele fica mesmo rico (apostando em resultados esportivos?), mas infeliz, saudoso da vida que levava anteriormente. Procura o diabo novamente, pega seu violino de volta, rasga o livro… mas a rabeca não toca mais.

Calma, ainda não acabou. O soldado descobre que, para se livrar de vez do diabo, deve jogar cartas com ele e perder todo o seu dinheiro de propósito. Faz isso, e fica livre: seu violino volta a soar. Com a rabeca novamente funcional, o soldado faz música para acordar uma princesa doente (hm, longa história) e recebe as mãos dela em troca (pois é!). MAS o diabo é ardiloso, e decreta: o novo casal não pode sair do castelo real.

Só que o tal soldado, esse ser irritante e eternamente descontente, novamente saudoso de sua antiga vida, resolve sair. E daí o diabo vence definitivamente a parada. Musicalmente o triunfo do coisa-ruim é demonstrado por um genial duelo entre o violino e a percussão, em que só a percussão toca até o fim. Ela dá a palavra final, literalmente. Moralmente a mensagem que fica é: quem tudo quer, nada tem. ‘nough said!

Stravinsky leva a sério a mensagem de que ninguém pode ser, ao mesmo tempo, o que já foi e o que ainda será. “A história do soldado” é uma das obras que marcam a ocidentalização definitiva, sem volta, de seu estilo. O compositor já estava há muito tempo fora de sua Rússia natal: desde 1910 morava a maior parte do tempo na Suíça. Mesmo assim, todos os balés que compôs para Diaghlev são marcadamente russos, em argumento e estilo musical. A “História” é um pouquinho russa no plot, mas só – a música é um mélange de circo, ragtime, pasodoble, tango, valsa…

O Stravinsky cosmopolita nasce aí, na junção de um conto russo com ritmos populares urbanos ocidentais. Fora a estilização extrema da linguagem, reduzida ao mínimo na instrumentação de câmara. “A história do soldado”, na verdade, é um fascinante capítulo de “A história de Stravinsky”… ou da própria “A história da música do século 20”.

Ah, sim! Abaixo, a suíte de concerto do balé/pantomima/lo que sea, que Stravinsky reuniu em 1920. Ela basicamente tem toda a música da obra, eliminando as (longas) partes faladas e as repetições. Aos que tiverem interesse pela peça inteira em seu contexto teatral, há diversas gravações (não somente no francês original, mas também em inglês).