Já comentei aqui, quando falei de obras de Shostakovich e Dvorák, que tenho especial carinho por um gênero: quintetos para piano e cordas. Talvez porque seja uma união entre o mundo arquitetônico do quarteto de cordas e o lirismo da música para piano.
Embora Mozart e Beethoven tenham composto quartetos para piano anteriormente, o quinteto para piano, nesse formato, só se consolidou graças a uma obra: o Quinteto para piano de Robert Schumann, de 1842. Depois de Schumann vieram Brahms, Franck, Elgar, Martinu e um monte de outros compositores – a forma tornou-se clássica.
Schumann foi, por toda a juventude, um autor primordialmente de música para piano. Já comentamos duas de suas obras-primas pianísticas – “Carnaval” e “Kreisleriana” – e acho mesmo que é o Schumann do piano que permanece mais fortemente hoje em dia. Mas, assim que se casou com Clara Wieck, Schumann se sentiu mais à vontade para começar a abordar diversos gêneros, em surtos criativos muito curiosos.
Em 1840 resolveu compor canções: praticamente só fez isso, e foi muitíssimo feliz. Em 1841 foi a vez da orquestra: compôs o Concerto para piano, as Sinfonias de números 1 e 4, e várias outras peças sinfônicas, com resultados até hoje meio polêmicos. Em 1842, enfim, a música de câmara. Iniciou com três quartetos de cordas muito belos mas meio esquisitos, que não conseguiram entrar no repertório. O desconforto com o meio foi tão grande que Schumann resolveu a partir daí só fazer música de câmara que incluísse o seu velho conhecido piano – e daí nasceu este Quinteto.
Acertou em cheio! O Quinteto é das obras mais felizes do repertório camerístico do século 19, o que é um BAITA DE UM ELOGIO (uma época que teve Beethoven, Schubert e Brahms!). Em termos formais ou expressivos, nele simplesmente não há o que retocar.
A peça começa vibrante e memorável, com um tema que vale guardar na memória – ele volta no finalzinho ;-) O segundo movimento é o mais famoso: uma marcha fúnebre de sóbria beleza (o cinema saberia fazer-lhe bom uso), cuja escuridão é quebrada por uma bem-vinda seção mais agitada. Em seguida, um lindo e contrastante scherzo, de todo leveza e felicidade, com dois (!) trios de arrepiar os cabelos. (Schumann gostava de colocar duas seções moderadas no meio de seus scherzos.)
O finale é especialmente interessante: uma espécie de moto perpétuo de intensa atividade contrapontística. Na última das várias fugas, o tema principal do primeiro movimento retorna para se fundir ao tema do finale e dar ao Quinteto a prova definitiva de sua maravilhosa unidade.
Nossa série “V” adentra ao século 20! Começamos pela Quinta de Beethoven e passamos pela Quinta de Bruckner. Hoje chegamos à ultrafamosa Sinfonia no. 5 de Gustav Mahler, a Quinta mais conhecida desde Beethoven, provavelmente uma das obras mais populares do compositor austríaco.
Mahler dedicou sua carreira à criação de sinfonias, compondo canções lá e cá para dar uma variada. São nove sinfonias (uma Décima, inacabada, resta em esboços bastante avançados). Começou com uma Primeira nos quatro movimentos tradicionais, mas com referências extramusicais e um certo gosto pelo bizarro que lhe dão tempero especial. Nas três sinfonias seguintes, fugiu completamente à convenção: a Segunda tem um final coral absolutamente colossal, e a Terceira é um mamute de seis movimentos, com parte para contralto, coro infantil e o diabo-a-quatro. A Quarta, com sua carinha mozartiana, já indica um certo retorno à forma tradicional de sinfonia, mas o finale que é uma canção d”A trompa mágica do jovem” subverte tudo.
É na Sinfonia no. 5, composta em 1902, que Mahler segura um pouco a onda. (Ele só voltaria a pirar com coro e solistas na Oitava, de 1910.) A Quinta é quase uma sinfonia convencional, só para orquestra, com… hmmm… cinco movimentos. Vejamos :)
A Quinta começa como a Segunda, com uma marcha fúnebre. O início é marcante: uma fanfarra para trompete solo que desencadeia em uma grande explosão orquestral. BIG WOW!
O segundo movimento, que continua o clima tenso e sombrio do primeiro, tem algumas dissonâncias “gritadas” deliciosas e é um mistério de se classificar. Não é scherzo, não é nada. Parece mais um ( ) segundo primeiro movimento, ou ( ) uma continuação do primeiro movimento, ou ( X ) o real primeiro movimento. Gosto da última opção: a marcha fúnebre é uma introdução à parte da sinfonia, que começa de fato no segundo andamento. Intrigante.
No final desse segundo-primeiro movimento, o clima se transforma. Chega-se a um clímax engraçadamente wagneriano. Guarde ele na memória. Parece que Mahler aqui enfim se livra de sua proverbial morbidez – a partir desse evento o tom da sinfonia vai mudar. Após uma grande pausa, começa o scherzo em si, que é quase uma canção d”A trompa mágica” em seu clima meio pastoral meio fantástico, totalmente irônico com seus ritmos de valsa.
Mais uma grande pausa, e começa o trecho mais famoso da sinfonia e de toda a produção mahleriana: o quarto movimento, o celebérrimo Adagietto, somente para cordas e harpa. A razão da fama, além da beleza quase imaterial da música, é sua utilização no filme “Morte em Veneza”, do cineasta italiano Luchino Visconti (sobre romance homônimo de Thomas Mann). O filme é de 1971 e começa e termina com música de Mahler. (Vale dizer que Mahler havia recentemente voltado à moda, curiosamente associado com a contracultura que emergia na época.)
Após essa música celestial, com suas modulações incríveis estrategicamente realçadas por portamentos (cada uma delas, um pequeno ataque cardíaco!), um tema bobocamente feliz começa o finale, quase sem interrupção. Segue-se uma cadeia de ultrajes: 1. esse teminha tolo é base de não uma, mas várias fugas caricatas; 2. que encaminham para a volta do clímax em estilo wagneriano (sim, aquele do segundo movimento); 3. que leva ao retumbante e circense final.
Ó o Mahler tirando com a cara da plateia! O que ele quis com esse finale tão propositadamente quadradinho e exterior, que tem a maior cara de espertão da história da música? Mistério! Dois fatos: o happy ending dessa sinfonia que começou tão sombria é até legal, se assumirmos esse seu lado galhofa; e Mahler faria a mesma coisa novamente, na Sétima. Por outro lado, a Sexta, que um dia hei de comentar, termina maaaaaaaaaal…
Mahler é fascinante: dá pra debater infinitamente. E você, o que acha? Ouça a sinfonia… e diga suas impressões abaixo!
Esta é a obra de número 150 de nosso blog – exatamente a metade de nossa jornada!
Antes de tudo, queria agradecer a todos pela honra da conversa nesses últimos meses: tem sido muito, muito legal! Pedi ontem a vocês que sugerissem uma pauta para este post. O feedback foi ótimo – prometo atender a todos os pedidos, que são muitíssimo interessantes, sem exceção!
Mas foi o pedido do Matheus Antônio da Silva que me sensibilizou mais: música clássica do século 21. Assunto pra lá de intrigante! Existe música clássica no século 21? Não é coisa de gente morta de peruca? Ora, claro que não! Música clássica não é uma época ou um estilo, mas um jeito de pensar. Imaginar que é algo do passado é como achar que não se escreve mais poesia, ou não se faz mais teatro – afinal de contas, Shakespeare é do século 16. Bullshit.
Já falamos um pouco sobre a dicotomia música clássica vs música popular, e isso tem muito a ver com a música do século 21. Tentarei explicar. Senta que lá vem história.
O que hoje chamamos de música clássica é descendente de uma linha histórica que remonta à música eclesiástica da Idade Média. Além do contexto religioso, o que a caracterizava fortemente era o fato de ser notada – a música folclórica era transmitida oralmente, totalmente dependente da poesia e da técnica instrumental. A música escrita, justamente por ser escrita, era difundida, influenciava e era influenciada, e evoluía.
Evoluía e se tornava mais complexa. Sem ilusões: a música escrita nunca foi popular, sempre foi restrita a um punhado de “entendedores” habituados. Até que no século 17 surgiu a ópera, que pegou a linguagem da música escrita e a associou ao teatro. Histórias apelativas, produções grandiosas, música bem acessível e de ligação óbvia com o “mundo real” – pronto, teatros cheios de gente ouvindo e gostando dessa música outrora tão esotérica. No século 19 a coisa explodiu. O povo assobiava na rua as árias de Rossini, Bellini e Donizetti que ouvia nas casas de ópera. Liszt, a pedidos, improvisava sobre esses temas operísticos para o deleite de sua entusiasmada assistência. Verdi era herói nacional e seu nome era pichado nos muros. A chegada de Puccini a Nova York foi anunciada em jornais e seu navio foi recebido por uma multidão.
Entrementes foram inventados a fotografia, o fonograma e a mistura de ambos, o cinema… e a ópera perdeu seu lugar. Os filmes eram mais baratos de se fazer, os ingressos eram mais acessíveis, os recursos narrativos eram melhores, a encenação, mais realista. O público foi fisgado de maneira irremediável. Como escreve Jean Massin, de repente “La fanciulla del West”, a ópera de Puccini, passou a parecer um anacronismo desnecessário em comparação com os filmes de faroeste, um entretenimento muito mais atraente.
O fonograma também deu nova vida à música folclórica, que tornou-se popular. Começou a criar influências, a evoluir historicamente. Com a derrocada da ópera e a ascenção da música popular, a música escrita (clássica, de linguagem, de concerto, erudita, o nome que você quiser) voltou ao seu nicho de sempre. E a coisa ficou ainda mais extremada após a Segunda Guerra Mundial. Regimes totalitários – de direita e de esquerda – utilizaram tanto politicamente uma linguagem musical mais simples e direta (dita “populista”), que os compositores naturalmente voltaram-se à abstração e à complexidade.
Esse contexto – entre outros fatores – fez com que a música contemporânea parecesse hoje tão afastada do público. É, de fato, uma linguagem diferente. O final do século 20 representou o ponto culminante desse afastamento. Mas no século 21 o clima político-artístico já se tornou muito mais ameno – e os compositores, sem abdicar da pesquisa expressiva e de linguagem, já podem estar próximos da audiência novamente.
Um dos principais compositores da geração atual é o inglês Thomas Adès, nascido em 1971. Suas obras aliam profunda expressividade, de intensidade quase mahleriana, à complexidade tonal e timbrística da música do pós-guerra. É uma produção fascinante, e em plena construção. O legal é que, enquanto escrevo este artigo, ele está compondo algo. (Vai que ele dá uma googada no próprio nome e acha este texto? Uau! Hello, Tom!)
Adès é jovem e não compôs tantas obras assim, mas em seu catálogo encontramos várias peças fascinantes: gosto particularmente de “Asyla”, de 1995, e dos MARAVILHOSOS “Três estudos de Couperin”, de 2006. Mas hoje separei seu Concerto para violino, de título “Caminhos concêntricos”, para comentar.
A obra é de 2005. Como a maioria dos concertos, é estruturado em três movimentos. O primeiro é estruturado em torno de uma figura super agitada. É muito fácil perceber, por trás dessa atmosfera lutoslawskiana meio assustadora, um “espectro” de melodia quase romântica. Intrigante! O segundo movimento é o eixo principal da obra: uma espécie de chacona tão estática quanto violenta, absolutamente genial nessa fusão de harmonia moderna e hieratismo barroco. O finale retoma a agitação do início e – interessante – tem um tema que pode, de verdade, ser assobiado.
Sem preconceitos: se você gosta dos concertos de Vivaldi ou de Beethoven ou de Brahms ou de Prokofiev, não vejo porque não gostaria do Concerto para violino de Adès. É criativo, é totalmente acessível e é uma experiência incrível do começo ao fim. Experimente Adès!
Antes do piano, havia o cravo. Pelo menos foi assim que aconteceu em termos de repertório. Mas em termos de construção de instrumentos não foi desse jeito: cravo e piano pertencem a linhagens mecânicas diferentes. Ambos têm teclados, mas o cravo soa ao “beliscar” suas cordas, enquanto o piano soa ao martelá-las. E o piano que conhecemos hoje não surgiu de uma só vez: antes dele, houve o “pianoforte”, um instrumento de quatro oitavas e som bem mais apagado. Beethoven mesmo compôs para pianofortes de cinco ou seis oitavas. Se ele visse um Steinway moderno de sete oitavas…
De qualquer maneira, o piano tomou o lugar psicológico reservado ao cravo. Isso aconteceu com o desenvolvimento do instrumento, no final do século 18. As carreiras de Mozart e Haydn aconteceram exatamente nessa época de transição. Em Mozart esse momento passa um pouco batido, dada a predileção do compositor pelo pianoforte. Mas em Haydn essa confusão fica bem clara: suas obras podem ser executadas tanto ao piano como ao cravo – e às vezes até mesmo ao órgão. Melhor dizer que são “para teclado” e pronto…
Entre essas peças estão concertos. Haydn é famoso principalmente por suas sinfonias, quartetos de cordas e oratórios, mas também compôs concertos. Para teclado, são doze – um deles não recebeu numeração, outro tem autoria duvidosa e um terceiro é na verdade um concerto duplo para violino e teclado. De todos esses, apenas o décimo-primeiro, de 1783, permanece sendo ouvido com regularidade. E é uma obra admirável!
Não tem muito o que comentar aqui: o primeiro movimento é em estilo galante (note que o solista participa durante a introdução orquestral, atuando como baixo contínuo, algo comum para a época); o segundo movimento é um belíssimo andamento lento; mas gosto especialmente do finale, um rondó à húngara absolutamente delicioso (com aquelas harmonias e ritmos totalmente viciantes). Você escuta, escuta, escuta… e quer escutar ainda mais! Haydn é assim. Ô cara FODA!
Abaixo, uma execução ao cravo:
Outra ao pianoforte:
E mais uma, agora num piano moderno de concerto. Ouça todas!
Já comentei aqui bastante sobre o gênero do poema sinfônico, sempre associado à figura pioneira de Franz Liszt. Ouvimos obras de Dvorák, Strauss, Sibelius, Franck, mas – curiosamente – nunca abordamos uma obra do próprio Liszt! Será que o legado se tornou mais relevante que o criador?
Olha, pode até ser. Liszt compôs treze poemas sinfônicos, num período de tempo entre 1848 e 1858 (com exceção do último, composto em 1882). Foi ele que inventou o nome “poema sinfônico” e o formato geral do gênero – obras em movimento único que seguem de maneira relativamente fiel uma história ou argumento.
(OK, tem gente que vai dizer que não é bem assim, que isso já existia, que antes de Liszt houve Beethoven, Berlioz e até mesmo Franck. Só que uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa: foi Liszt quem conscientemente bolou a estrutura que se eternizou como poema sinfônico.)
Voltando: Liszt bolou o gênero e compôs um monte de obras nesse molde, mas as peças em si não entraram no repertório. Uia! O que aconteceu? Provavelmente nem todas delas têm a melhor música do mundo, admitamos. Porém, mais ainda, elas saíram de moda: os temas que Liszt escolhe e, mais ainda, a maneira que Liszt os aborda nos soam engraçadamente datados hoje em dia. É muito diferente da Sonata em si menor ou da Sinfonia “Fausto”, obras eternamente frescas. Acontece.
Na verdade, dois dos treze poemas sinfônicos de Liszt continuam sendo (pouco) tocados: o terceiro, “Os prelúdios”, e o sexto, “Mazeppa”, assunto de hoje. Esses permanecem bem escutáveis :) Os demais, hmmmmm…
Liszt compôs “Mazeppa” em 1851, e usou como base a história do revolucionário ucraniano Ivan Mazepa (que realmente existiu), que chegou a ele via Victor Hugo, inspirado em um poema de Byron. A história de Mazepa é relativamente simples: após seduzir uma nobre, ele é amarrado nu em cima de um cavalo selvagem, que sai galopando loucamente. Depois de muito sofrer, é libertado pelos cossacos, que acabam o tornando rei.
O tema, ultrarromântico, provavelmente fascinava Liszt. Já em 1837 havia escrito um estudo para piano sobre essa história. Esse estudo fazia parte de um grupo de peças que, revisadas em 1852, se tornariam os famosos “Estudos de execução transcendental”, talvez as mais intrincadas partituras pianísticas do século 19. O poema sinfônico de 1851 é uma versão bastante ampliada do estudo para piano – ambos compartilham os temas principais e a ambientação geral.
A obra começa com o galope do cavalo selvagem ao qual o pobre Mazepa está amarrado. Impossível resistir ao movimento e ao caráter épico do tema principal. A seção lenta que se segue retrata o estado do herói quando cai do cavalo – literalmente – e é socorrido pelos cossacos (trompetes). O final é festivo e grandioso, pois retrata a transformação de Mazepa em rei.
“Mazeppa” é uma obra divertida, representante digna de sua época e do esforço visionário de seu criador. Por pior fama que os poemas sinfônicos de Liszt tenham hoje, creio que “Mazeppa” mereça reabilitação. Dê uma chance a ele! :)
Abaixo, para efeito de comparação, o “Estudo de execução transcendental” no. 4, também “Mazeppa”. É interessante notar o quão menos detalhada é a narrativa, em detrimento do (assustador) virtuosismo instrumental:
Hoje, 5 de março, é o aniversário do maior músico brasileiro de todos os tempos, Heitor Villa-Lobos. Nada mais apropriado do que comemorarmos com uma de suas obras mais emblemáticas e importantes: o inacreditável “Choros” no. 10, de 1925, provavelmente a peça que mais perfeitamente simboliza o que é música clássica brasileira.
Quando comentei sobre o “Choros” no. 6, mencionei o sentido que Villa-Lobos dá à palavra: seus “Choros” são releituras da tradição do chorinho popular, no qual um instrumento dialoga incessantemente com os demais, tecendo um emaranhado tão complexo quanto fascinante.
Na série dos “Choros” isso é levado às últimas consequências: o formato do chorinho é o framework perfeito para Villa-Lobos realizar suas incríveis misturas e dar vazão a todas as suas influências. E são inúmeras!
A imaginação do nosso Villa era fervilhante e isso fica claro ao vermos que os dezesseis “Choros” foram escritos para formações instrumentais bastante diversas. Este de número dez é para coro misto e orquestra. Ele é estruturado como um bloco sonoro único, mas é fácil discernir-lhe duas metades: uma puramente orquestral e outra coral. Na minha cabeça, Villa-Lobos quis, em seu “Choros” no. 10, mostrar duas facetas do Brasil: a natural e a humana.
O Brasil natural inicia a obra, com seus sons de floresta tropical e suas inúmeras citações de cantos de pássaros. É impossível não se lembrar de Olivier Messiaen e sua fixação por aves. Aliás, o “Choros” no. 10 começa exatamente como se fosse Messiaen, com aquelas sequências de acordes pesados que parecem enormes rochas, ao estilo da “Turangalîla“. Só que a obra de Villa-Lobos foi composta 23 anos antes – quem influenciou quem? ;-)
A segunda metade do “Choros” é o Brasil humano. E aí o Villa faz uma fantástica e emocionante mistura: a música dos índios com a música das cidades. Ele pega um tema indígena coletado em 1912 nas excursões amazônicas de Roquette-Pinto, “Macocê-cê-maká”, e o sobrepõe a um xote de Anacleto de Medeiros, “Iara”, de 1896.
O xote original, “Iara”, pode ser ouvido aqui, na versão quase irônica de Rogério Duprat:
O lance é que, em 1907, Catulo da Paixão Cearense acrescentou à música de Anacleto de Medeiros uma letra, transformando o xote em uma canção que ficou célebre, “Rasga o coração”:
Foi a partir dessa “Rasga o coração” que Villa-Lobos construiu a parte coral de seu “Choros”, inclusive citando o texto. O engraçado (ou trágico) é que Villa só pediu autorização para a família do já falecido Anacleto de Medeiros, esquecendo-se de falar com Catulo. E não é que Catulo processou Villa-Lobos, que foi obrigado a remover a letra da parte coral? “Funhé. Então que seja cantado só com vogais”, deve ter pensado…
A união da canção urbana com o canto indígena, mais os pássaros e os sons da floresta, é eletrizante! Nunca a confusão que é a chamada “essência do Brasil” foi expressa de maneira tão perfeita – creio que não somente em música, mas em qualquer outra arte. O “Choros” no. 10 é A música brasileira e ponto final. Merecidamente DO GRANDE CARVALHO. Viva Villa! \o/
Depois de um longo e tenebroso inverno, eis que a Ilha Quadrada retorna à sua programação normal!
E, como é segunda, continuamos com a nossa série “V”, que na semana passada apresentou a Quinta Sinfonia mais famosa de todas, a de Beethoven. Hoje daremos um salto de quase setenta anos (!). Ué? Pois é: peço desculpas a Mendelssohn, Gade, Schubert, Dvorák e todos que compuseram interessantes quintas nesse período, mas a primeira quinta digna de ficar ao lado de Beethoven, é mesmo a de Anton Bruckner. E tenho dito! \o/
A produção sinfônica de maturidade de Bruckner é dividida em três fases: a inicial, com sinfonias trágicas em tom menor (1, 2 e 3); a intermediária, com obras bem mais sorridentes em tom maior (4, 5 e 6); e a final, com peças realmente monumentais (7 em tom maior, 8 e 9 em menor). A Quinta, de 1876, fica bem no meio dessa trajetória. Tal equilíbrio faz com que seja – apesar da Oitava – a minha sinfonia bruckneriana favorita. Mas é uma peça de difícil apreensão. Explico.
É que é na Quinta que a linguagem de Bruckner alcança seu maior nível de abstração. As três sinfonias iniciais são dramáticas; as três finais aspiram a uma profundidade espiritual imediatamente perceptível; a Quarta e a Sexta são afáveis, românticas, com seu clima de “floresta”. E a Quinta? Ela é ela mesma – não faz alusão a nada, não tem atmosfera discernível, nenhum apoio extramusical. É o Bruckner quintessencial, no que há de mais puro. Isso exige do ouvinte uma grande predisposição ao seu estilo e boa dose de paciência.
Mas é recompensador! A Quinta é incrível do começo ao fim. Ela só parece difícil. Sua casca meio dura esconde belezas impressionantes!
A sinfonia começa FODÁSTICA, com a única verdadeira introdução lenta de Bruckner. Cordas em pizzicato e um clima coral, meio de igreja, absolutamente comovente. Em seguida, o tema inicial, que virou lugar-comum associar a isso aqui:
O movimento, imenso, desenvolve os temas principais e é excitante até não poder mais – claro, se você curte os mecanismos característicos brucknerianos de desenvolvimento temático ;-) Pô, mas como não gostar? É BOM DEMAIS!
O segundo movimento, um adagio que atinge incrível intensidade, começa novamente com as cordas em pizzicato. Guarde bem esse iniciozinho. Quando começar o scherzo, preste atenção – é o mesmo motivo (mas não em pizzicato)! Bruckner aqui já mostra a vontade de integrar de maneira mais profunda os movimentos de sua sinfonia.
Isso é levado ao ápice no finale. Escuta lá: sim, o último movimento se inicia exatamente como o primeiro – o mesmo pizzicato, o mesmo clima coral. Quando o ouvido quer seguir adiante nessa introdução, surge um motivozinho no clarinete que interrompe tudo. É uma “vírgula” musical. Pausa. Ressurge o tema “Seven Nation Army” lá do primeiro movimento. Pausa. De novo o tal motivo do clarinete, a “vírgula”. Agora renasce o tema principal do movimento lento. Pausa. “Vírgula” novamente e… fuga sobre ela mesma! Agora sim, começa definitivamente o finale!
Esse último movimento é inteiro marcado por passagens fugadas, todas de enorme engenharia contrapontística. Bruckner queria mostrar que era FERA NENÉM, só pode ser isso – é impressionante! O finale tem duzentas apnéias, sei disso, mas tente reservar alguma energia para o finalzinho: é sem dúvida uma das passagens mais incríveis de toda a literatura sinfônica. Se a Quinta Sinfonia já era espetacular em seus três movimentos iniciais, aqui então… bom, só ouvindo mesmo. Então não hesita, clica!