Ligeti

Concerto para violino

E chegamos ao post de número 200 de nosso blog! Quando chegamos ao post 150, falei – por sugestão de vocês leitores – de uma grande obra contemporânea: o Concerto para violino de Thomas Adès, de 2005. Hoje reedito: o tema será outra obra-prima recente, o Concerto para violino do húngaro György Ligeti, de 1992.

Na semana passada falamos do concerto de Bartók. Este de Ligeti é um sucessor imediato, e igualmente bem-sucedido! O concerto de Ligeti é das obras mais empolgantes do século 20. Ligeti – que você provavelmente conhece de “Lux aeterna“, a peça coral usada em “2001”, filme de Stanley Kubrick – foi uma figura de proa da música do final dos 1900. Morreu em 2006 e soube unir uma pesquisa profunda de linguagem a uma relativa acessibilidade de expressão. Tal qual Lutoslawski, fez música moderna e original sem romper os laços com o passado (e com a audiência).

Este Concerto para violino é prova disso. Ligeti o estruturou em cinco movimentos, alternando partes rápidas e lentas – é mais ou menos a forma concêntrica bartokiana, mas ao contrário (com uma parte rápida no centro). Essa forma só foi alcançada após uma primeira versão com apenas três movimentos já ter sido estreada, na verdade – consta que Ligeti havia pensado originalmente em algo como oito (!) movimentos. Ficou nos cinco e a estrutura parece perfeitamente equilibrada.

O primeiro andamento é um prelúdio bastante curto que já introduz o ouvinte ao mundo extraterreno de texturas cambiantes típicas de Ligeti – é incrível, e ele desemboca sem interrupção na parte mais extraordinária do concerto, o segundo movimento, “Ária, hoquetus e coral”. Hoquetus é uma forma medieval de contraponto, na qual as vozes conduzem uma melodia, uma após a outra, em diversos registros, criando um efeito “soluçante” muito curioso. Ligeti aqui introduz um maravilhoso tema (“ária”), de sabor popular húngaro, e elabora variações (“hoquetus”). Em dois momentos o tema é assumido por quatro ocarinas, que soam deliciosamente desafinadas; a segunda intervenção das ocarinas acaba levando a uma reexposição da melodia (“coral”). Genial!

O coral de ocarinas não é a única brincadeira de Ligeti com instabilidade tonal. Há, na orquestra reduzida, um violino e uma viola com scordatura – ou seja, afinados diferentemente do normal. Como as cordas alteradas soam junto às cordas “normais”, o efeito resultante é uma distensão muito interessante. As flautas devem também dobrar flautas doces, em diferentes registros. A percussão é variada e numerosa. No final das contas, Ligeti exige não somente um solista virtuose, mas uma orquestra composta de instrumentistas realmente excepcionais.

O terceiro movimento retorna ao modo rápido-porém-breve da introdução. O quarto lida novamente com formas antigas de variação – é uma lenta passacaglia, quase uma versão sombria e noturna do segundo movimento. O finale brinca novamente com texturas, como o prelúdio, e nele Ligeti abre um grande espaço para o solista, que deve improvisar uma cadenza (como manda a tradição). Criar cadenzas em obras modernas é um desafio à parte. Saschko Gawriloff, o violinista ao qual o concerto foi dedicado, optou por usar trechos descartados do concerto como base de sua cadenza. Parece uma boa solução, e a transição entre o composto e o “improvisado” é perfeitamente suave para o ouvinte.

Não consegui pensar em uma obra mais adequada para o post 200: uma obra-prima do final do século 20, extremamente sofisticada mas ao mesmo tempo super acessível. De alguma maneira, o Concerto para violino de Ligeti representa muito dos meus ideais em várias coisas – até mesmo o jeitão desta Ilha :)

Haydn

Sinfonia no. 104, “Londres”

Como um compositor ganha a vida? A resposta óbvia seria: compondo, ué. Mas, alto lá, não é tão simples assim. Vamos pensar um pouquinho no aspecto financeiro da profissão. Uma obra de fôlego – uma sinfonia, digamos – pode levar meses ou mesmo anos para ser composta. Depois de pronta, ela é enviada a um editor, que publicará a peça, cujas partituras são destinadas aos músicos que apresentarão a obra ao público. Invertendo a lógica: público paga para o músico que paga para o editor que paga para o compositor.

Com o advento da gravação, o ciclo acima pode ser estendido: público paga para a loja que paga para a gravadora que paga para o músico que paga para o editor que paga para o compositor. Há sempre, portanto, no mínimo duas camadas entre o compositor e o consumidor final, entre o criador e o dinheiro. Enquanto esse ciclo não é fechado, como o autor vive para criar sua demorada arte? A conclusão é que riqueza e criação musical não costumam andar juntas.

Por isso tudo compositores na maioria das vezes não dependem somente de compor. A maior parte também é músico intérprete, encurtando aí o ciclo. Muitos também dão aulas, abrindo fontes de renda complementares. Outros tornam-se empresários, criando orquestras, festivais ou companhias de ópera. Vários outros têm atividades não-musicais. (A história traz exemplos curiosos: Ives vendia seguros, Berwald tinha uma vidraçaria, Borodin era químico, Harris foi caminhoneiro.) Ocioso mesmo, que eu me lembre, só Gesualdo, que era príncipe.

Até o final do século 18 o principal jeito de um compositor poder viver, ter um teto e se alimentar, era se submeter a algum tipo de patrão. Muitas vezes foi alguma igreja, muitas vezes foi a nobreza. Bach, por exemplo, passou pelas duas experiências: como regente do príncipe de Köthen e como professor e diretor musical da igreja de São Tomás em Leipzig. Vivaldi era padre e equilibrou sua atividade no orfanato com a vida maluca de empresário de ópera. Nosso amigo Haydn foi provavelmente o mais conservador de todos: trabalhou de 1761 até o dia de sua morte, em 1809, para a família Esterházy, de condes e príncipes húngaros.

Seu grau de dependência dos patrões foi diminuindo aos poucos, graças à sua lendária habilidade com os negócios. Haydn soube ampliar seus direitos. Até 1779 era um empregado comum, e tudo o que criava era de propriedade dos Esterházy. Depois disso começou a poder enviar suas obras para editores e atender encomendas. Em pouco tempo, tornou-se o compositor mais procurado de toda a Europa, mesmo sem sair do castelo dos patrões. Enquanto a reputação de Haydn crescia, a riqueza dos Esterházy diminuía… e em 1790 pôde liberar-se quase completamente da rotina do emprego em troca de uma redução considerável de seu salário.

Graças a seu novo status, Haydn foi procurado pelo famoso empresário Johann Peter Salomon. A proposta era tentadora: passar um tempo na Inglaterra e estrear seis sinfonias novas em folha, em troca de um caminhão repleto de barras de ouro que valem mais que dinheiro (ou algo assim). Isso aconteceu entre 1791 e 1792, foi um super sucesso, e Salomon quis repetir a dose dois anos depois. Foi prontamente atendido: o mundo ganhou então seis novas sinfonias e Haydn levou pra casa mais um barril cheio de notas de cem dólares (ou algo assim). “Essas coisas só acontecem em Londres”, teria dito o compositor, enquanto contava os zeros de sua conta bancária (ou algo assim).

Parabéns a ambos, Salomon e Haydn – as doze sinfonias que Haydn escreveu para as duas turnês londrinas estão entre as mais espetaculares já criadas! Duas ou três obras de tal nível já seria espantoso… mas DOZE já beira o milagoroso! Foi um feito tão incrível que ele encerrou a produção sinfônica haydniana. Também, pudera, 104 sinfonias! Tenho especial adoração pelas quatro últimas. Já comentei sobre a 100 e sobre a 103, a minha predileta. Porém a mais famosa é mesmo esta 104, que ganhou um apelido que resume toda a história: “Londres”.

Qualquer outra coisa que eu disser será chover no molhado. A sinfonia apresenta a clássica estrutura haydniana: introdução lenta e solene, allegro inicial, um andante meio em forma variada, minueto e um finale animado. Acho que a principal marca distintiva da sinfonia é mesmo o finale com dupla inspiração popular – o tema, que dizem ser retirado do folclore croata, e o acompanhamento inicial, um simples e único acorde sustentado por 14 compassos. É tão direto, tão inventivo, tão delicioso, tão DO GRANDE CARVALHO, que só posso pedir uma coisa: OUÇAM!

Schubert

Octeto

Pensamos sempre na música de câmara como um veículo hiper inimista e intelectualizado, apropriado para emoções profundas e estruturas complexas. OK, muitas vezes isso é verdade: os quartetos de Beethoven, Brahms e Bartók, os quintetos de Mozart, o sexteto de Schoenberg. Mas é só um lado da história. Se lembrarmos que o fonógrafo foi inventado somente no final do século 19, constatamos imediatamente que música de câmara foi, por bastante tempo, um substituto acessível para a música orquestral. Por isso, há sim, muita música de câmara de “circunstância”, mais leve.

As serenatas de Mozart são um bom exemplo – música leve e divertida, para “encher ambientes” (OK, muito mais que isso no caso de Mozart POR MOTIVOS DE MOZART). Os primeiros românticos continuaram a tradição, embora evitassem o nome “serenata” – o termo foi resgatado um tanto depois. Beethoven, por exemplo, escreveu ainda jovem uma obra que ficou imensamente popular na sua época, o Septeto em mi bemol maior (para violino, viola, violoncelo, contrabaixo, clarinete, fagote e trompa; praticamente uma mini-orquestra!). Característica básica, herdada das serenatas: muitos, muitos movimentos. No caso de Beethoven, seis. Em geral, é uma sonata com um scherzo extra e um tema-e-variações leve bem no meio.

O Septeto de Beethoven fez muito sucesso, que estimulou outros compositores a criarem música parecida. Um deles foi Schubert. Isso era natural – afinal, Schubert não era o cara das “schubertíadas”, os grandes festerês musicais que agitavam seu círculo de amigos em Viena? Quando o clarinetista Ferdinand Troyer procurou Schubert e o encomendou algo no estilo da obra de Beethoven, era sucesso garantido. O resultado foi o divertidíssimo Octeto em fá maior, de 1824. Na minha opinião, é obra ainda mais legal que o Septeto.

O modelo beethoveniano, ainda ligado às serenatas clássicas, está todo ali, intacto: seis movimentos. O quarto, central, segue um tema-e-variações: e quantas obras de câmara de Schubert não têm um conjunto de variações? No Octeto, por conta de seu espirito leve, Schubert escolheu como tema base uma ária de seu singspiel “Os amigos de Salamanca”, uma comédia. O modelo de um minueto e um scherzo foi seguido. E, finalmente, Schubert também coloca introduções lentas (e um bocado dramáticas) nos movimentos externos (o primeiro e o último), dando um peso sinfônico à obra.

Acho essas introduções incríveis, principalmente a do movimento final, que é quase sombria. A música que lhe vem em seguida é tão leve e saltitante que o contraste é super divertido. A obra é repleta de música variada, todos os instrumentistas têm solos e chances de brilhar, os temas são bonitos e estimulantes – receita infalível de sucesso. Quer um desafio? Nem presta muito atenção no player abaixo: clica logo na setilha e começa a ouvir. Quando terminar, duvido que você tenha percebido que UMA HORA se passou. É, é rápido mesmo ;-)

Schumann

Sinfonia no. 3, “Renana”

E a Tia Augusta continua guiando vocês por vários lugares bacanas da Ilha Quadrada! A parada de hoje é a Alemanha – mais especificamente a Renânia, a fronteira noroeste do país, ao longo do Reno, um dos maiores rios da Europa.

Nosso querido Robert Schumann é nativo de outra região da Alemanha: a Saxônia, na fronteira leste, perto da Polônia e da República Tcheca. Nasceu em Zwickau mas fez toda a vida na vizinha Leizpig. Em 1844 mudou-se para Dresden, a maior cidade saxã, ali nas redondezas. Seis anos depois aceitou um cargo de regente em Düsseldorf, a segunda maior cidade da Renânia – e a numerosa família Schumann (cinco filhos!) teve de atravessar a Alemanha.

Schumann encantou-se logo de cara com o Reno. Emocionou-se por ter ali tão perto o “Vater Rhein”, o rio que era praticamente o pai romântico da nação alemã. Quando viajou para Colônia, um pouco mais ao sul, pôde assistir à cerimônia de posse de um cardeal na famosa catedral e teve uma verdadeira epifania. Poucos meses depois estava pronta sua última sinfonia, a Terceira – conhecida pelo óbvio apelido de “Renana”. As impressões da viagem, do rio e da Catedral de Colônia estavam todas lá, eternizadas.

(Peraí – se Schumann compôs quatro sinfonias e esta é a Terceira, como ela pode ser a última que compôs? A numeração confusa deve-se ao fato de que a segunda sinfonia composta foi engavetada e somente foi publicada dez anos mais tarde – depois das demais, portanto, e por isso recebeu o nome de Sinfonia no. 4.)

A “Renana” é uma obra isolada na produção sinfônica de Schumann. Como já vimos, ele compunha em “surtos”. Até se casar, em 1840, escreveu basicamente só para o piano. Nesse ano cismou com canções e compôs só isso. No ano seguinte resolveu aventurar-se no mundo sinfônico – criou sua Primeira e Quarta sinfonias, mais outras obras para orquestra. Em 1842 dedicou-se somente à música de câmara. E o ano de 1843 foi o da música coral-sinfônica. É curioso.

Portanto, Schumann havia ficado um certo tempo sem escrever sinfonias quando decidiu compôs a “Renana”. Natural que o estilo resultasse um tanto diferente – a estrutura é mais solta, a harmonia mais instável e a orquestração consegue ser ainda mais pesada e opaca. Na verdade, o Schumann sinfônico é um bocado controverso. O conservadorismo da linguagem chama a atenção, principalmente se compararmos com o Schumann pianístico. Mas acho que o principal problema é mesmo a orquestração.

A sinfonia tem, ao contrário das demais, cinco movimentos. O primeiro é o motor da obra – um estouro do começo ao fim. Tanta energia torna evidente a orquestração problemática de Schumann: uma massa pesadíssima, meio sem contraste, atacando essa música tão incrivelmente dinâmica. Os temas são lindíssimos, a força propulsora da música é notável, mas a instrumentação espessa torna a audição um bocado cansativa. (O uso dos tímpanos é particularmente estranho – ele é usado o tempo todo, como se fosse uma bateria…)

Depois do choque em 220 V, Schumann nos traz dois movimentos moderados, bem leves, muito bonitos. O segundo é quase visual: um scherzo em forma de tema-e-variações, no qual é impossível fugir da ideia de um passeio de barco (no Reno). O terceiro é uma espécie de canção, de caráter muito tranquilo, pastoral até. Note que nenhum deles é exatamente um movimento lento de sinfonia – é como se fossem dois intermezzi, na sequência.

O papel de andamento lento é assumido pelo quarto movimento – para mim, o centro emocional e, de longe, o trecho mais inspirado da sinfonia. É um andante solene que parece retratar a cerimônia que Schumann assistiu em Colônia. O coral inicial nos trombones marca o clima religioso do movimento. O tema, belíssimo, é desenvolvido contrapontisticamente e culmina em uma gloriosa e radiante fanfarra. O movimento, emocionante do início ao fim, termina suavemente. LONGO SUSPIRO.

Contraste: Schumann volta abruptamente à terra no finale, bem festivo e dançante – é a Renânia rústica, das festas populares, que ele quer evocar aqui. Mas, puxa, eu queria ficar na catedral. Estava tão lindo lá! Posso colocar o quarto movimento no PLAY FOREVER?

Essa é a Terceira de Schumann – um cativante passeio pelo Reno que, mesmo com alguns probleminhas, é tão profundamente genial quanto tudo o que Schumann compôs. E o que é esse quarto movimento? OH DEUS OH DEUS OH DEUS.

Dvorák

“A roca de ouro”

O ser humano é de uma crueldade absurda. Infelizmente não precisa, mas há uma prova tocante disso: se prestarmos atenção nas lendas e contos populares, de qualquer cultura, vamos nos deparar com uma infinidade de cenas dantescas, sádicas mesmo. As historinhas folclóricas, muitas vezes contadas para crianças, refletem a dureza de uma vida cuja permanente escassez gera permanente violência.

Falo isso por conta do “Ramalhete”, a fabulosa coletânea de poemas populares tchecos, publicada em 1853 e imensamente popular até hoje em seu país. São doze (depois treze) poemas e as histórias são em geral as mais terríveis. Quatro deles se transformaram em incríveis poemas sinfônicos nas mãos de Antonín Dvorák, entre 1895 e 1897. Já comentamos aqui sobre o primeiro deles, “O espírito das águas“. Hoje é dia de falar do terceiro, “A roca de ouro”.

O plot é tenebroso. Basicamente: em uma casa muito, muito pobre, no meio do mato, moravam uma mãe e suas duas filhas gêmeas. Vamos chamá-las de Ruth e Raquel, porque é exatamente isso: são fisicamente idênticas mas uma delas é muito boazinha e a outra, um demônio interesseiro. Certo dia o jovem rei, que caçava pela floresta, esbarra em Ruth e se apaixona por ela. A mãe e a irmã não gostam disso – querem que o rei se case com Raquel, não com Ruth. Pois então, as duas não só PLANEJAM O SEQUESTRO de Ruth como ARRANCAM SEUS BRAÇOS, SUAS PERNAS E SEUS OLHOS, que são guardados em pequenos embrulhos (irc!). Ruth é abandonada na floresta e Raquel se casa com o rei, que não sabia que ela era a gêmea errada.

(Fico pensando se esse lance de gêmeas boa/má disputando o amor de um homem rico é um clichê ou se Ivani Ribeiro teve contato com a lenda tcheca. Ah, provavelmente é clichê. Imagine uma cena de ESQUARTEJAMENTO na novela das seis… não, melhor não.)

Como na novela, o plano deu certo. Mas enquanto isso, na floresta, um velho ermitão, com poderes mágicos, encontra Ruth, milagrosamente viva. Ele cuida dela, que acaba contando toda a história, e resolve “remontá-la” (Robocop, alguém?). A estratégia escolhida pelo ermitão é trocar, com a nova rainha Raquel, as partes faltantes do corpo de Ruth por partes de um tear de ouro: ofereceu a roda de fiar em troca das pernas, a roca em troca dos braços, e o fuso em troca dos olhos (é o Mercado Livre mais grotesco que já tive notícia). Funcionou – o ermitão agora tinha o corpo inteiro de Ruth, e Raquel um lindo tear de ouro (em substituição ao anterior, que havia sumido).

Quando o rei voltou de uma batalha, Raquel foi logo mostrar pra o marido sua nova aquisição. Pois que, assim que foi usada, a roca começou a cantar (!) – e contou toda a história tenebrosa para o rei. A cada girada na roda, mais detalhes do crime cruel o treco contava. O tear dedo-duro enfim contou a localização de Ruth, na floresta. O rei, claro, foi direto ao seu encontro, e o casamento certo é enfim realizado. E Raquel e sua mãe? Bom, nelas o próprio Diabo deu um jeito. Sério.

História rocambolesca e sanguinolenta contada, vamos à música. Dvorák, em 1896, estava no auge de seus poderes criativos, e seu estilo estava cada vez mais moderno e pessoal. Acho mesmo que os quatro poemas sinfônicos sobre o “Ramalhete” – mais um quinto poema sinfônico independente, “Canto heróico” – estão entre as obras mais mais avançadas do compositor. Trechos de “A pomba do bosque”, a última obra do “Ramalhete”, parecem até Janácek. A junção do grotesco com o heroico, do antigo com o moderno aproximam muito Dvorák de Mahler – mas Dvorák é menos irônico.

Estão entre as obras mais poderosas e originais do século 19. Gosto especialmente de “A roca de ouro”. É uma peça grandona, de quase meia hora, com uma orquestração absurdamente fabulosa, repleta de temas LINDOS DE URRAR – o motivo que representa o amor verdadeiro entre Ruth e o rei é pra lá de maravilhoso – e MUITA AÇÃO – caçadas, festas populares, reviravoltas e clímaces de todo tipo.

De verdade – “A roca de ouro” é uma das obras mais cativantes do repertório, e nem é tão célebre assim. Corrija essa falha agora: TEM QUE OUVIR!

[Em tempo: Ruth na verdade se chamava Dobrunka; Raquel, Zloboha. Você pode ler uma versão em prosa, em inglês, da história aqui.]

Handel

“Música aquática”, suíte no. 1

Barroco, era da extravagância, do exagero, do grandioso. Pense num grande desfile fluvial, em que o barco do rei é acompanhado por outro barco, sobre o qual há uma orquestra de 50 músicos tocando a todo vapor, horas a fio. Pois isso aconteceu, em 17 de julho de 1717, em Londres. Curiosamente, nos dois barcos haviam alemães que entrariam para a história da Inglaterra. Dois Jorges: Georg Friedrich Haendel e Georg Ludwig, a.k.a. George Frideric Handel e o rei Jorge I.

Muitas coincidências ligando os Jorges alemães em Londres: eles já haviam trabalhado juntos antes em Hanover, onde Jorge era príncipe-eleitor (uma espécie de governador do Sacro Império Romano Germânico). Handel foi para a Inglaterra pouco depois. Quando a rainha Ana morreu, Jorge era o mais próximo parente não-católico… e assim um alemão se tornava rei da Inglaterra. Foi o primeiro monarca da Casa de Hanover, que durou até a rainha Vitória, já no século 20.

(Esse papo de Casa isso, Casa aquilo… parece coisa de “Game of Thrones”!)

Aguente o papo real mais um pouquinho :) A morte de Ana fez Jorge I e Handel se reencontrarem. E um lance político os uniu – o filho do rei, o príncipe Jorge, brigara com o pai e começou a enfiar o pé na jaca organizando festas e mais festas. Para deixar claro para a cidade toda que ele era O REI e ainda se divertia melhor ainda, Jorge I inventou o desfile de barco. Handel, o maior músico do reino, foi convocado. Garantia de grandiosidade nota 1000.

Handel escreveu mais ou menos uma hora de música. O rei gostou tanto que pediu uns três bises durante o festerê. Anos depois, essa hora foi dividida em três suítes, batizadas como “Música aquática”, e assim são executadas até hoje. Mas não é uma coisa assim tão fixa – há outras coleções possíveis, e a ordem dos movimentos varia conforme o regente. Minha suíte favorita é a em fá maior, de grande fôlego e brilho.

Como toda suíte barroca, esta primeira “Música aquática” começa com uma abertura francesa – entrada solene, de ritmo pontuado, depois rápido e fugado -, e depois encaminha para a sucessão usual de danças. Como se tratava de música para uma festa num barco, Handel usa e abusa dos sopros e dos metais, que soavam muito melhor ao ar livre que cordas. Então, entre os clássicos minuetos e bourées, há hornpipes – espécie de danças militares em forma de fanfarra.

Sorte nossa que Jorge I quis duelar em extravagância com seu filho – a disputa fez com que Handel compusesse provavelmente sua mais famosa obra orquestral. Muito difícil imaginar algo mais barroco – com toda a pompa exagerada, clovisbornayseana, característica – que a “Música aquática”. E é Handel – como não ser delicioso? :)

Bartók

Concerto para violino no. 2

Nosso amigo Béla Bartók é um dos compositores mais consistentemente geniais de todos os tempos. Prova disso está cá no blog: contando hoje, das quatro obras suas que comentamos, três delas ganharam o SELO DE EXCELÊNCIA DO GRANDE CARVALHO – uma performance notável!

O segredo do sucesso está no gosto de Bartók pela ciência e pelo método investigativo que ela pressupõe. Nada – ou muito pouco, se descontarmos alguma obra de juventude – que ele compôs é fruto de inspiração sem trabalho. Acho que a experiência de Bartók como musicólogo de campo, recolhendo cantos folclóricos húngaros com o rigor de quem coleta vestígios arqueológicos, tem muito a ver com a perfeição cerebral de sua música.

Um dos melhores exemplos está no maravilhoso Concerto para violino no. 2, que compôs em 1938. A obra foi encomendada pelo amigo Zoltán Székely, violinista virtuose. Bartók, a princípio, estava disposto a compor um conjunto de variações para violino e orquestra, e propôs isso para Székely. O instrumentista repeliu – queria um concerto tradicional, em três movimentos. O compositor não se fez de rogado: fez do movimento lento um conjunto de variações, super estritas, de um cerebralismo bachiano (e ao mesmo tempo lindas de morrer!).

Calma que não acabou. Variações sobre um tema são uma coisa. E uma variação sobre um movimento inteiro? Ha! Foi o que Bartók criou aqui: o terceiro movimento é uma variação perfeita do primeiro, com os mesmos temas e mesma forma geral. É mais ou menos como se Bartók tivesse recomposto o movimento inicial de novo. Isso dá ao concerto um caráter parrudo, sinfônico – ao invés de encerrar com o usual rondó, ou algo dançante e leve, Bartók nos dá outra dose de música espessa como uma sopa grossa. É genial!

Volto ao primeiro movimento para comentar algo fascinante. Lembra quando eu comentei dos estudos etnomusicológicos de Bartók? Eles não serviram somente para dar ao compositor esse hábito científico. O contato com o folclore magiar forneceu a Bartók muita, muita inspiração, principalmente melódica e rítmica. Ouçam o comecinho do concerto – a harpa, a trompa, os pizzicatos, o tema dado ao solista. É incrivelmente moderno, novo… e fortemente baseado no folclore. E é de uma beleza absurda!

Vamos fazer uma eleição rápida? De qual obra é o início mais incrível de todo o repertório? O Concerto para violino de Beethoven? A Nona de Mahler? O Concerto para violino de Barber? O Requiem de Mozart? A “Sagração da primavera”? Nada – pra mim é o Concerto para violino no. 2 de Bartók. E tenho dito!

Debussy

Quarteto de cordas

Debussy franckista? Escrevendo forma-sonata? Empregando temas recorrentes? O GERENTE FICOU LOUCO? Pois não é loucura minha, não – aconteceu mesmo, e numa das obras de câmaras mais interessantes do dito “impressionismo” musical: o seu único Quarteto de cordas, composto quando tinha 30 anos.

Engraçado como a música instrumental francesa evoluiu de modismo em modismo. Já comentamos aqui a questão da sinfonia romântica na França, que explode com a Terceira de Saint-Saëns, cujo sucesso gerou uma nova obra por ano: d’Indy, Franck, Chausson, Dukas. O mesmo aconteceu com o quarteto de cordas. Em 1890 estreou o Quarteto de cordas de Franck, e o exemplo foi imitado prontamente por d’Indy em 1891… e por Debussy, em 1892! O jovem Debussy ainda não era tão rebelde assim…

A influência dos colegas mais velhos faz-se notar principalmente no uso da forma cíclica, que ambos tanto gostavam. O tema principal do primeiro movimento reaparece no scherzo, no movimento lento, e um milhão de vezes no finale, dando imensa unidade à obra. Legal. Mas o tema é modal, em modo frígio! Além desse motivo principal modal, há outros temas pentatônicos e em escalas não usuais. Franckista até a página dois, esse Debussy!

O tema modal que amarra o quarteto também lhe dá seu som tão característico – a música anterior está presente, mas aqui em Debussy a sonoridade é tão mais crua, mais visceral, mais… moderna! O scherzo, repleto de pizzicatos e de acentos ciganos/espanhóis, reforça o quanto Debussy consegue ser mais natural e original que seus quadrados antecessores.

Intrigantemente, meu movimento predileto é o lento, o mais próximo talvez de Franck. Quando o tema cíclico retorna, bem disfarçado, lá pelo clímax do andamento… PUTZ, é de suspender a respiração! O finale tem uma introdução lenta e é todo desenvolvido sobre o motivo cíclico. Não é contrapontístico como se espera de um final de quarteto de cordas – mas encerra de maneira memorável essa obra tão marcante.

No final das contas, mesmo sem descolar tanto do convencional, Debussy dá aqui as coordenadas para seus sucessores. Seu Quarteto teve um descendente famoso – o de Ravel, composto dez anos depois. Mas esse é assunto para outro dia ;-)

Mendelssohn

Sinfonia no. 3, “Escocesa”

Música pode expressar um monte de coisas. Se isso vem da força do hábito, de mera sugestão ou de alguma misteriosa associação cerebral intrínseca, não sabemos. Mas desde o seu surgimento a música é usada para evocar todo tipo de sentimento, sensação, emoção… e lugares. Sim – há um montão de obras de descrição geográfica! E esse é o tema de nossa nova série: “Tia Augusta na Ilha Quadrada”. Venham, amiguinhos! :)

A primeira das seis obras de turismo musical que vamos visitar (ops) é talvez a minha preferida de todas: a Sinfonia no. 3 de Mendelssohn, dita “Escocesa”, de 1842. (Aliás, Mendelssohn tem outra sinfonia turística, a Quarta, “Italiana”, que um dia comentaremos.) A numeração é confusa – na verdade esta é a última das cinco sinfonias mendelssohnianas, e certamente a mais madura delas. Mendelssohn é um sinfonista alemão clássico, de linha beethoveniana evidente. Da escola alemã, acho mesmo que a “Escocesa” é a mais interessante sinfonia antes de Brahms.

A inspiração para esta obra veio bastante antes, quando Mendelssohn foi à Grã-Bretanha e conheceu a Escócia. Ficou tão impressionado com o lugar que, durante uma visita às ilhas do oeste escocês, teve uma ideia musical imediata, que anotou num cartão postal enviado à sua irmã Fanny: era o tema inicial da Abertura “As Hébridas”. As sensações da visita à Escócia renderam ainda mais – Mendelssohn anotou diversos temas que lhe viam à cabeça enquanto conhecia ruínas, castelos, montanhas, e começou a planejar a sinfonia. Uns bons dez anos se passaram até a obra ficar pronta, mas valeu a pena!

A sinfonia começa com uma introdução lenta, de cunho muito épico – certamente o romantismo de Walter Scott e seu mundo de cavalaria influenciou Mendelssohn. Após esse intróito, um tema agitado, meio ansioso, muito mendelssohniano, que irá carregar todo o primeiro movimento, de tintas lendárias. É a Escócia dos romances medievalistas que aqui está presente.

O segundo movimento é talvez o mais famoso: um scherzo muito rápido, de cores folclóricas. Sabe o Mendelssohn feérico, da Abertura “Sonhos de uma noite de verão” ou do Octeto de cordas? Olha ele aqui novamente :) Nesse tipo de evocação ele era mestre consumado. Impossível não imaginar uma agitada festa popular neste trecho – seria uma festa em 1840 ou uma festa em 1240?

(Permitam-me um adendo: excelente uso da música de Mendelssohn faria Woody Allen, em seu “Sonhos eróticos de uma noite de verão“. Allen sempre soube inserir bem música clássica em seus filmes, aliás.)

O andamento lento é um noturno muito evocativo, quase uma canção sem palavras, de grande beleza. O finale retoma o espírito épico do primeiro movimento, mas é quase tão agitado quanto o scherzo, com diversas passagens bastante contrapontísticas. É em Beethoven em quem pensamos aqui. A surpresa está no finalzinho: a sinfonia tem um epílogo, um hino grandioso e solene que resgata de alguma maneira o clima do começo.

Esse desfecho me faz ter certeza: muito mais que a Escócia real, Mendelssohn nos faz visitar aqui uma Escócia lendária, a Escócia de Scott e Ossian. Nada poderia ser mais romântico!

Sibelius

“Kullervo”

A Finlândia é uma nação que remonta ao ano 1000 mas que nunca foi um país independente até 1917. Até 1809, era parte da Suécia; depois foi anexada à Rússia, que só largou o osso durante a Revolução Bolchevique. O resultado de 600 anos de jugo sueco reflete-se até hoje: apesar da língua sueca ser falada por somente 5% da população, a Finlândia é um país bilíngue, com o sueco obrigatório nas escolas e no governo.

Jean Sibelius, talvez o finlandês mais famoso de todos os tempos, era de família falante de sueco – o sobrenome latino não deixa mentir. Foi mais tarde que trocou o prenome sueco Johan pelo francês Jean, mais neutro. Também foi mais tarde que aprendeu o finlandês. Mas logo cedo engajou-se na luta pela emancipação cultural da Finlândia – a arte como forma de criar uma identidade nacional.

Essa busca de identidade não era só de Sibelius. Uns trinta anos antes do compositor nascer, um médico chamado Elias Lönnrot viajou pelo país, ouviu um monte de gente e compilou o “Kalevala”, o épico mitológico finlandês. Sim! O texto que praticamente sintetiza o imaginário nacional da Finlândia é relativamente recente – foi publicado em 1835. E não se sabe exatamente o quanto veio da cabeça de Lönnrot e o quanto veio do folclore de fato. De qualquer maneira, a publicação do “Kalevala” explodiu cabeças país afora – se a arte finlandesa precisava de uma pedra fundamental legitimamente nacional para se impor como algo não-sueco não-russo, já tinha à disposição uma. Sibelius e o pintor Gallen-Kallela foram alguns dos artistas que correram para o “Kalevala” para criar essa Finlândia cultural tão ansiada.

O livro de Lönnrot é dividido em 50 poemas distribuídos em dez capítulos (ou “ciclos”), cada um dedicado a um personagem ou arco específico. O grande herói do “Kalevala” é mesmo Väinämöinen, uma espécie de semideus, que ajudou a criar o mundo mas que não consegue arranjar uma esposa por mais que tente. Mas há outros personagens importantes, e um dos mais bizarros é Kullervo, um guerreiro irado, customeiramente sádico e sedento por vingança.

A história de Kullervo fascinou o jovem Sibelius, que compôs em 1891 sua primeira obra-prima: a sinfonia “Kullervo”, em cinco movimentos, para grande orquestra, coro masculino, barítono e mezzo-soprano. Parece muito ambicioso e é mesmo. A obra foi estreada com grande sucesso, os nacionalistas ficaram loucos de alegria, mas Sibelius cismou com ela e a engavetou. Só foi publicada após sua morte, nos anos 1950, e resgatada nos anos 70 pela gravação regida por Paavo Berglund. Que música estávamos perdendo!

“Kullervo” fica no meio do caminho entre uma sinfonia programática berlioziana ou lisztiana e um ciclo de poemas sinfônicos. Há pouca ligação temática entre as partes, mas a estrutura é menos livre. O eixo da obra é o vasto terceiro movimento, no qual o coro e os solistas aparecem pela primeira vez. Os solistas não voltam mais e o coro será usado depois somente no finale da sinfonia – portanto, três dos cinco movimentos são puramente orquestrais.

O primeiro movimento é uma descrição geral do personagem, ao mesmo tempo heróico e trágico. As características da música posterior de Sibelius estão quase todas ali – figuras em ostinato, chamadas nos sopros, grandes temas nos metais, andamento moderado eterno. É lindo, e até acho que poderia ser um poema sinfônico separado, se não fosse pelo final meio sem conclusão. A história começa propriamente no movimento seguinte, com a triste juventude de Kullervo, escravizado. É quase uma marcha arrastada, muito sombria e original.

A primeira música rápida da sinfonia escutamos no movimento central, que começa com Kullervo enfim livre, dirigindo loucamente um trenó em direção à sua cidade natal. O coro masculino entra em seguida, cantando em uníssono KUL-LER-VO, a todo vapor. É incrível, impactante! Os solistas aparecem na cena em que Kullervo conhece e seduz uma bela garota. Após passar a noite com ela, descobre que, na verdade, ela era sua irmã. O clima muda. A irmã reflete longamente sobre a situação e acaba se matando. Kullervo fica possesso de raiva e joga uma praga sobre os seus antigos senhores – irá se vingar por ter uma vida tão merda.

Esse é o tema do quarto movimento – Kullervo vai à guerra. A música é alegrinha, de caráter marcial. A sinfonia volta ao lado mais sombrio no finale, com coro. Kullervo recebe a notícia de que toda sua família foi dizimada. Ele quer mais vingança, mas há um rápido instante de reflexão: Kullervo pergunta à sua espada se um dia ela beberia sangue inocente. Ela responde (!) que já bebeu. Nesse momento, Sibelius repete temas dos movimentos anteriores. Kullervo, tomado de culpa, enfia a espada em si mesmo e morre.

A história, escura e sanguinolenta, gerou música de uma força épica impressionante. Sibelius consegue evocar o mundo mítico do “Kalevala” com perfeição. As figuras repetidas que abrem a sinfonia são quase um pórtico para uma dimensão diferente, de magia e heroísmo. O movimento central revela o talento de Sibelius para a ópera, que acabou não se realizando plenamente (compôs pouco depois uma ópera breve, com libreto sueco, que não vingou). E tem um sopro épico irresistível.

“Kullervo” é uma fascinante premonição do que seria a obra de Sibelius, e uma delícia do começo ao fim. Seja porque você gosta de fantasia e de grandes sagas medievais, seja porque você gosta de boa música – TEM DE OUVIR!